sexta-feira, 23 de maio de 2014

NÃO HÁ VENCEDORES REAIS

Ganhar e perder é um jogo de azar, diz Sakyong Miphan Rinpoche. De qualquer forma, todo ganho acaba em perda, e tentar alcançar a vitória sobre os outros é desagradável e ilusório.

Eu sempre gostei de esportes – andar a cavalo, golfe, correr. Uma vez perguntei a meu pai, Chögyam Trungpa, o que ele pensava sobre futebol, já que é um esporte que não existia no Tibete. Ele respondeu, “Eles têm ganhado e perdido o mesmo jogo há uma centena de anos”. Eu fiquei chocado pelo seu senso de humor, mas ainda mais pela verdade sutil por trás do que ele havia dito. Por esses cem anos, ganham-se e perdem-se partidas. Os jogadores podem ter ganhado resistência, disciplina e camaradagem, mas no final, não fizeram nenhum progresso, porque eles sempre jogaram com o propósito de ganhar.

No samsara – o eterno ciclo de sofrimento – estamos sempre ganhando e perdendo o mesmo jogo, esperando fazer progresso, de alguma forma. Passamos uma parte de nossa vida juntando as coisas, e a outra parte vendo tudo desmoronar. Não nos damos conta de que, se tentamos ganhar algo, devemos estar preparados para perder. A partir do momento em que temos tempo – “Tenho uma hora inteira livre” – já estamos o perdendo. Trabalhamos duro para construir um relacionamento, e então ele acaba. Reunimo-nos para uma festa de fim de ano, e então ela termina. Compramos um novo carro, e o para-lama amassa.

Tudo o que ganhamos está sujeito à perda. Embora isso seja tão verdadeiro quanto o céu é azul, continuamos tentando fazer um ganho permanente de modo a tentar trazer felicidade para o “eu”. Nós pensamos, “Se ao menos fulano me amasse, eu seria feliz”, “Se ao menos as coisas mudassem, eu seria feliz”, “Se ao menos as coisas continuassem do jeito que estão, eu seria sempre feliz”, e isso só traz mágoa. Esse tipo de querer envolve muita esperança e medo, todos baseados na negação de uma simples verdade: todo o prazer que o mundo pode oferecer eventualmente se transforma em dor. E tentar se segurar nesse prazer só causa mais dor.

Por que colocamos todo esse esforço em ganhar, quando no fim das contas iremos perder? Satisfazer-se com ganhar e perder é como induzir a amnésia. Estamos sempre achando algo novo para ganhar, o que nos faz esquecer a última coisa que perdemos, há apenas alguns segundos atrás. Fabricar essa cadeia de desejos é a forma como nos mantemos no samsara. Diferentemente de qualquer coisa que possuímos, esse padrão pode se manter por várias vidas. Contemplar isso nos permite dar um passo para trás e ver tudo por um ponto de vista mais profundo, de modo a ficarmos menos hipnotizados. Assim, estamos menos aptos a trabalhar fervorosamente em direção ao ganho.

O Buda disse que nossa existência é marcada pela impermanência, da não existência do eu, e do sofrimento. Quando contemplamos essa percepção na nossa meditação da manhã, estamos deixando a verdade da existência penetrar nosso ser. Estamos trazendo essa verdade para dentro de nossa própria experiência: qualquer coisa que acumularmos, perderemos. Até esse corpo se dissolverá. Contemplar o ganho e a perda não é dizer que iremos escapar dessa realidade, mas nos ajuda a não sermos enganados a pensar que o ganho terrestre nos trará felicidade permanente. Essa é a forma pela qual harmonizamos nossa mente com a verdade sobre ganho e perda. Nós nos damos conta de que GANHAR E PERDER É APENAS UMA ILUSÃO - QUE PERMITIMOS QUE GOVERNE NOSSA VIDA. Quando paramos de ser confundidos, surpreendidos, ou insultados por ela, não mais iremos experimentar os altos e baixos que acompanham o ganho e a perda.

Muitas vezes, perdemos nossa perspectiva acerca do ganho e da perda, já que o mundo moderno é muito competitivo. Com essa atitude, estamos num atrito eterno com nosso ambiente. Estamos brincando com o jogo do “E o que tem para mim?”: “Se eu ganhar alguma coisa serei feliz. Se eu perder alguma coisa serei extremamente infeliz”. Esse tipo de atrito sempre nos derruba. A COMPETITIVIDADE não nos permite realizar o que queremos. Ela apenas adiciona a chateação de tentar ganhar à custa de outra pessoa. Ela nos torna agressivos – incapazes de relaxar nossa própria mente. Tornamo-nos mais suscetíveis à raiva, o que destrói qualquer virtude que tenhamos reunido.

Tentar manipular o ambiente promovendo a nós mesmos e torcer para que os outros fracassem é desagradável e ilusório. Apenas somos bons do jeito que somos, e forçar outra pessoa para baixo não nos torna nada melhores. A COMPETIÇÃO É INSTÁVEL. Mesmo quando ganhamos, não ganhamos realmente. Temos sempre que provar nosso valor novamente. SE DESEJARMOS FAZER ALGUM PROGRESSO NO CAMINHO ESPIRITUAL, NÃO PODEMOS BASEAR NOSSO VALOR NO SUCESSO OU FRACASSO DE UM EVENTO.

QUANDO COMPETIMOS, ESTAMOS APRIMORANDO NOSSAS HABILIDADES DE AGRESSÃO. ABSTENDO-NOS DE UM ESTADO MENTAL DE COMPETITIVIDADE, ESTAMOS CONFIANDO NO NOSSO VALOR COMO SERES HUMANOS QUE PODEM CULTIVAR A SABEDORIA E COMPAIXÃO. Esse potencial não pode ser perdido ou conquistado. Se nós o desenvolvermos, somos capazes de viver a vida de maneira vasta, com prazer. Não nos afligimos sobre o que o outro esteja ou não fazendo. Nós valorizamos os outros. Quando eles nos superam, não nos sentimos diminuídos, mas vemos isso como uma oportunidade para relaxar na possibilidade extravagante de não estarmos apegados à perda ou ao ganho.

PERDA E GANHO SÃO PREOCUPAÇÕES SEM PROPÓSITO QUE USAMOS PARA ESTIMULAR A ILUSÃO DE UM EU PERMANENTE. Estivemos preocupados desse modo por muitas vidas, ganhando e perdendo o mesmo jogo todas as vezes. O propósito de contemplar o ganho e perda é o de parar de desperdiçar nosso tempo. Essa vida é preciosa, nosso tempo é precioso, e nossa mente é preciosa. A VERDADEIRA VITÓRIA É NÃO SER PEGO PELA ILUSÃO DA PERMANÊNCIA. É não ser fisgado pelas emoções negativas. Ela existe quando nos libertamos da ilusão do “eu”. Esse é o motivo por que o Buda é chamado de “o vitorioso” – ele venceu sobre a ignorância, desejo, e paixão pelo eu. Ao contrário de nós mesmos, o Buda não vê a qualidade onírica da existência em retrospecto. Ele a vê agora. O Buda vê o presente – assim como o passado e o futuro – como um sonho, uma ilusão.

Prajna – “sabedoria elevada” – nos diz que, enquanto acreditarmos que a agressão e competitividade podem trazer ganhos reais, sempre jogaremos o jogo do samsara. Se pudermos ver através de nossa própria ignorância, não mais agiremos a partir de apego à perda e ganho convencional. Não precisaremos mais de provar o nosso valor a cada momento. Podemos superar o ciclo do sofrimento, investindo nossa energia na causa da felicidade duradoura, que é o abandono do “eu”.

Textos antigos de meditação nos dizem que depois que ficamos familiarizados com a verdade da impermanência, deveríamos praticar como se nossos cabelos estivessem pegando fogo. O que praticamos? Praticamos meditação, generosidade, paciência, humor, e ajudamos os outros. Quando nós realmente compreendemos a impermanência, vivemos com gratidão por nossa boa sorte, como se fosse nosso último dia na terra. Acordamos de manhã animados por termos a oportunidade de usar cada momento de nossa vida de modo que levará à sabedoria. Quando fazemos desse modo, ficamos com o coração mais leve, naturalmente e espontaneamente. Não somos apanhados pelo jogo do bem ou do mal. Temos o que os tibetanos chamam de “tropa” – alegria. Tudo o que resta é ser totalmente destemido e dar o primeiro passo em ajudar os outros. É assim que seremos verdadeiramente vitoriosos.





Sakyong Mipham Rinpoche

(Diretor espiritual da Shambhala, uma rede internacional de centros de meditação e de retiro. É o autor de “Faça da sua Mente uma Aliada” e ” Governe seu Mundo”.)






Fonte: publicado na revista Shambhala Sun em julho de 2005
Tradução de Rafaela Batista
Via CEBB - Centro de Estudos Budistas Bodisatva
http://bodisatva.com.br
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal

PECADO ORIGINAL

A humanidade é essencialmente díspar em suas características.

Cada criatura possui facilidades e dificuldades que lhe são inerentes.

A educação e o meio ambiente exercem influência no comportamento humano.

Mas certas tendências são inexplicáveis, no contexto de uma única existência.

Dentro do mesmo núcleo familiar, há marcantes diferenças de moralidade e equilíbrio entre irmãos.

Algumas crianças, desde a mais tenra idade, demonstram boa índole. Equilibradas e serenas, aceitam com tranquilidade a disciplina e a orientação dos pais. Já outras trazem a marca da rebeldia. Instáveis e difíceis, por vezes até cruéis, constituem um desafio para a paciência dos familiares.

A realidade é que os espíritos encarnam infinitas vezes, em seu caminhar para a perfeição.

Cada qual é herdeiro de si próprio.

Ao reencarnar, o espírito traz consigo o que adquiriu em suas precedentes existências.

Essa é a razão pela qual os homens mostram pendores bons ou maus, que neles parecem inatos.

Virtudes e vícios não são obras do acaso.

Eles constituem o resultado de opções feitas no passado.

Quem se esforçou para burilar o próprio intelecto, hoje possui avantajada inteligência.

Aquele que gastou tempo aprimorando a sensibilidade artística dispõe atualmente de facilidade no campo das artes.

Já a criatura que se permitiu malbaratar os tesouros da vida ressente-se de sua falta.

O ser que elegeu o vício no passado tem-no presente em seu íntimo.

Os maus pendores naturais são resquícios de imperfeições das quais o espírito ainda não se despojou.

Eis o verdadeiro pecado original.

As leis humanas, embora ainda falíveis e injustas, repelem a ideia de penalizar um homem pelo que outro fez.

Como Deus é soberanamente justo e bom, é incoerente imaginar que ele responsabilize uns pelas faltas de outros.

Cada qual se debate com a herança que providenciou para si.

Luz ou sombra, facilidades ou dificuldades, o que hoje se vive é resultado do que se fez no pretérito.

Não adianta culpar ninguém pelas dificuldades atuais.

Em geral, a recordação das vidas passadas não é possível ou desejável. Mas as tendências atuais evidenciam os pontos carentes de correção, na economia da alma.

O ontem é passado e não pode ser modificado. Mas hoje estão sendo lançadas as bases do futuro.

Este é o momento de refletir maduramente sobre o amanhã que virá, e adotar medidas para que ele seja luminoso.

Ninguém fará o trabalho que lhe compete.

A nobreza de caráter, a inteligência, a pureza, nada disso pode ser improvisado.

Se você deseja ser pacífico e bondoso, precisa criar o hábito de ser assim.

Diariamente você é confrontado com situações que exigem um posicionamento.

Compete exclusivamente a você optar por ser digno ou indigno, corajoso ou covarde, generoso ou mesquinho.

Mas saiba que está diariamente lançando as sementes de seu futuro.

Pense nisso.






Fonte: Equipe de Redação do Momento Espírita, 
com base no capítulo I do livro "O Espiritismo na sua expressão mais simples" e outros opúsculos de Kardec, ed. FEB.
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal