sexta-feira, 14 de abril de 2017

SEXTA-FEIRA SANTA: DIA DE VÊNUS


Durante três dias ainda persiste o efeito da morte. De modo semelhante ao que acontece após a morte de qualquer homem, durante três dias ocorre uma certa parada sagrada do destino. Três dias após a morte física, a morte ainda uma vez mais adquire um poder implacável sobre o ser humano. Após ter afastado dele o corpo terreno, a morte separa agora também o corpo vital, o corpo etéreo, e o espalha pelo cosmo. O reluzir do corpo na cruz descortina a visão pascal: o poder da morte não será capaz, no terceiro dia, de dissolver o corpo etéreo do Cristo. Pelo poder que o Cristo detém sobre seu próprio ser, este manto etéreo não se afastará da Terra, substanciar-se-á, de modo que o Cristo poderá ainda mais ligar-se a tudo o que é da Terra. Em sua corporeidade espiritual, o Cristo permanece perto dos homens, como ele mesmo profetizou:

“Eis que ficarei convosco todos os dias até o fim dos tempos terrestres.”

À medida que a Semana do Silêncio realmente desemboca em silêncio, a atitude de Jesus parece modificar-se. A volição combativa e cintilante não aparece mais como antes. Quando, entre a meia-noite e a aurora, os encarregados vêm prender aquele que Judas beijaria, ele não se defende. Pelo contrário, impede Pedro de defendê-lo. Vemo-lo assim, agarrado por mãos brutas, arrastado de um lado a outro da cidade, aparentemente incapaz de escapar à crueldade dos que o flagelam, lhe colocam espinhos na testa, cospem e batem no seu rosto. O espectador é tomado da mais profunda emoção e tristeza quando, finalmente, os carrascos dão ao exausto a pesada cruz para carregar e depois o fixam à cruz com pregos. Onde ficou a força combativa que ainda nos primeiros dias desta semana o envolvia como em relâmpagos e centelhas? Abandonou ele a luta diante da cegueira e maldade dos homens?

Apenas em aparência exterior a atitude combativa e heroica foi substituída por uma aceitação passiva do destino. Os homens não estão maltratando e crucificando apenas um homem. Nas cenas da Paixão esconde-se o destino de um Deus: a luta que nos dias precedentes era travada por meios humanos continua agora em esfera oculta. Ao abrigo de olhares externos, esta luta assume agora dimensões muito mais poderosas. O Cristo não luta com carne e sangue, mas com os poderes invisíveis dos adversários, de cuja tirania ele quer libertar a humanidade. Luta contra as potências luciféricas*, contra os seres ardentes da luz enganadora que tentam alienar o homem da Terra. Mas luta também contra os poderes arimânicos* que contraem, enrijecem o homem e querem prendê-lo à matéria morta. Se adquirirmos a faculdade da visão capaz de ver além do primeiro plano das cenas da Paixão, então veremos como o Cristo luta vitoriosamente, primeiro contra as potências luciféricas, depois contra as potências arimânicas. No domingo de Ramos fora uma atividade da espiritualidade luciférica que desencadeara nos homens os gritos de “hosana”, uma pseudo-espiritualidade irresponsável, inútil. Vimos como o Cristo recusou e despediu na segunda-feira esta antiga espiritualidade que se tornara luciférica. Na terça-feira vemo-lo entrar em outra arena de luta: na camada do intelecto esperto e astuto, sobre o qual ele lança suas palavras com grande força espiritual. Os questionadores que pretendem preparar-lhe uma cilada representam a fria astúcia e esperteza arimânica. Vemos como ele começa a enfrentar esses outros adversários mais obscuros.

Mas o poder arimânico age, mais do que na esfera humana, na esfera da matéria. Age em campo oculto. E se, aparentemente, o Cristo entrega as armas no decorrer do drama da Paixão, em realidade ele apenas persegue o poder arimânico em suas camadas ocultas para aí subjugá-lo.

O poder que Ariman possui sobre os homens se torna mais evidente e triunfante quando ele se aproxima do homem sob a forma da morte. No decorrer da evolução da humanidade, até o final da Antiguidade, a morte, inicialmente, um amigo paternal do homem, cada vez mais assumira os traços do Ariman. A fatalidade que paira sobre o homem, o fato de ser ele mortal, foi aproveitado pelo sinistro espírito, que dela fez sua mais contundente arma em sua luta contra a humanidade. O poder que a morte detém sobre nós não consiste unicamente no fato de termos que morrer, porém revela-se mais ainda depois da morte. Então, deve revelar-se a nós, após entregarmos nosso corpo terreno, que ainda podemos continuar ligados àquilo que acontece na Terra com aqueles aos quais nos relacionamos, dos quais fazemos parte. O poder total da morte reside nesta faculdade de nos arrancar ao terreno e nos lançar em uma vida no além sem relação alguma ou ponte que a ligue à vida na terra. O poder mortal de Ariman burla o homem. Durante a vida terrena o liga ao mundo da matéria, promete-lhe todas as realizações terrenas para não mais cumprir a promessas após a morte. Quanto mais terreno ou materialista o homem é durante a vida, tanto mais inexorável será em seu exílio no além. Somente aqueles que já se firmaram no espiritual durante a vida poderão continuar agindo sobre a vida na Terra após a morte e continuar auxiliando aqueles que ainda permanecem na Terra. Nós só possuímos, após a morte, tanto poder espiritual sobre a matéria quanto adquirimos na Terra durante a vida.

Tocamos assim a esfera na qual o Cristo, ao prosseguir-se o drama da Paixão, continua a luta. Ele avança tanto mais potente nesta esfera quanto mais a aparência exterior sugere que ele se entrega passivamente aos que o capturaram. Ele não se defende contra os homens, não quer evitar exteriormente o sofrimento e a morte. Não se contenta apenas em defender-se, mas conquista uma vitória após outra sobre o poder arimânico-satânico que a morte quer ter sobre a essência interior do ser humano.

Quando o Cristo, no cenáculo, na quinta-feira santa, oferece aos discípulos a Santa Ceia, aparentemente não há luta. No entanto, quão maravilhosa vitória sobre o espírito da gravidade e da matéria inerte! O Cristo acompanha o pão e o vinho que sucumbiram às forças materiais terrenas e os torna luminosos pela força solar do seu coração. Arranca a criatura terrena às forças tenebrosas e a transforma em corpo e sangue da sua essência da luz.

Adivinhamos: se agora, ainda encarnado, ele é capaz de animar (conferir alma) aos elementos da Terra, a ponto de torná-los luminosos, ele poderá fazer o mesmo, e mais, após morrer na cruz. Em Getsêmane, a luta contra o poder mortal entra em uma fase decisiva. Aqui, no tranquilo Horto das Oliveiras, onde tantas vezes se detivera com seus discípulos para ensinamentos íntimos, ele tem que enfrentar – na mais extrema solidão – o mais perigoso ataque do adversário. O milagre da comunidade que ele acabara de oferecer no cenáculo para o bem do futuro da humanidade não vai ajudá-lo em nada. A consciência dos discípulos não está à altura do acontecimento. Judas desaparece nas trevas da traição, mas os outros também o abandonam, caindo nas trevas do sono de Getsêmane, a partir do qual Pedro o negará.

O Cristo não tem que lutar contra uma fraqueza interna ou contra o medo da morte. Nada mais trágico do que interpretarmos a Paixão do Cristo como se Jesus, em Getsêmane, tivesse orado para ser poupado da morte. Não é o medo da morte que o ataca, é a própria morte. A força da morte, já temerosa de perdê-lo do seu controle, se aproxima e ergue a mão contra ele. O Anjo Exterminador quer agarrá-lo. O mistério da luta no Getsêmane reside no fato de a morte querer enganá-lo. Ela o quer antes da hora, antes que ele tenha completado sua missão, antes que seu espírito tenha impregnado totalmente a Terra. Quer arrancá-lo para se apoderar ao menos de uma parte do seu ser.

Do primeiro ao terceiro Evangelho notamos uma progressiva revelação do mistério de Getsêmane. Os dois primeiros evangelhos dizem apenas: “Jesus chegou com os discípulos a um horto chamado Getsêmane”. Temos, inicialmente, a impressão de que se trata de um sítio qualquer, estranho. Em Lucas o tema já toma outra direção: “Subiu, conforme seu costume, ao Monte das Oliveiras, e os discípulos o seguiram”. É um lugar onde Jesus se detivera muitas vezes. O evangelho de João, enfim, traz a plena revelação: “Saiu, então, com os discípulos atravessando o rio Kedron. Havia ali um horto. Nele, Jesus entrou com os discípulos, mas Judas, que o traiu, também conhecia o lugar, porque Jesus muitas vezes ali se reunia com eles”. Getsêmane é, portanto, um lugar de instrução esotérica aos discípulos. O Horto das Oliveiras se estendia até o alto do Monte das Oliveiras. Foi também o cenário do Apocalipse do Monte das Oliveiras na noite de terça-feira.

Durante três anos ardera em seu corpo e em sua alma o fogo solar do Eu divino. Os invólucros, sob este fogo interno, já estão perto de se incinerarem. O que resta ainda a assumir e a completar exigirá, também do lado físico, tanta força que surge o perigo da morte precoce. O poder arimânico, na tocaia, quer se aproveitar deste momento. Lucas, o médico, descreve exatamente o que ocorre; o errôneo sentido antropomórfico dado à cena é devido unicamente às traduções correntes. Onde a Bíblia de Lutero diz: “Aconteceu então que ele lutou com a morte e orou com maior intimidade”, o texto literalmente é: “ao entrar em agonia”. Portanto, em sentido medico-técnico, já começou a agonia, a luta final. Lucas diz ainda: “Dele derramavam-se gotas de suor com sangue”, definindo assim o exato sintoma da agonia.

O Cristo permanece vitorioso. Repele a morte. Ainda não chegou a hora. Com a mais potente força de oração jamais desenvolvida na Terra, ele luta por ainda ficar no corpo. São ainda um eco desta luta as palavras que ele dirá na cruz: “Tenho sede”, aparentemente revelando uma fraqueza. Até o momento imediatamente anterior à expiração final, ele permanece fiel ao terreno. É neste fato que residirá sua vitória sobre a morte. Ele penetra ainda mais profundamente no mundo material terreno que porta em si pela corporeidade física. Ainda há um resto a cumprir. Não quer entregá-lo ao príncipe deste mundo, que já acredita ser a esfera material sua posse inalienável. Finalmente, é o próprio Judas que o aborda para lhe dar o beijo da traição, ajudando-o a repelir, com o perigo da morte precoce, o poder satânico.

Os outros discípulos que se mantiveram fiéis ao Cristo, em realidade o abandonam. O traidor vem ajudá-lo, socorrê-lo, sem saber o que está fazendo.

O cenário do drama volta novamente ao contexto humano. A manhã da sexta-feira traz um encontro do Cristo com toda a humanidade, representada pelas três figuras de Kaifás, Pilatos e Herodes. Em seguida, a via leva ao Monte do Gólgota: vemos os mercenários baterem os pregos através de mãos e pés do Cristo e, aparentemente, ele tudo aceita, aparentemente se entregou à extrema passividade. Em realidade, sua essência interior adquiriu através da mais amarga dor, o supremo poder do espírito sobre a matéria, de modo que o mundo da morte em nada mais pode afetá-lo. Os poderes arimânicos, as forças da morte sentem este fato. Entram em cena com suas últimas reservas, rugindo de raiva, bufando de ira porque falhou seu poder. Quando o sol escurece durante horas ao meio-dia da sexta-feira, parece que o demônio solar já foi mobilizado contra o deus do sol. E quando treme a Terra, todos os demônios da Terra parecem estar atacando para conseguir a vitória da força satânica da morte. O Anticristo move os elementos da Terra e até mesmo as forças do céu. Mas o Cristo passa, sem se alterar, ao lado da força da morte.

A morte nada pode roubar à soberania de seu espírito, ao seu poder total sobre toda a essência terrestre. Os poderes cósmicos que levantam na hora do Gólgota estão em acordo com sua vontade. Ele disse aos que o prenderam em Getsêmane: “Chegou agora a vossa hora. Agora as trevas têm a palavra”. (Lucas, 22, 53). Ao escurecer-se o sol, nada mais acontece além daquilo para o que o próprio Cristo dera o sinal.

Em meio à escuridão do Gólgota, revelou-se um mistério que podemos agora, cautelosamente, insinuar. O corpo na cruz começou a emitir luz. Se em muitas regiões, nos campos e nos caminhos, encontramos crucifixos negros com um Cristo dourado, podemos ver nesta tradição popular e ingênua um importante mistério da sexta-feira santa. Um secreto brilho solar quebrou a terrível escuridão do meio-dia. Revelou-se o sol do Cristo ao obscurecer-se o sol exterior. Um raio pascal já brilhou em plena escuridão da sexta-feira santa.

A última das sete palavras pronunciadas na cruz: “Está consumado” não significa que acabou o sofrimento, significa que agora a vitória total sobre o poder da morte foi conquistada. Enquanto normalmente a morte, após burlar o homem durante toda a vida com a matéria terrena, e o lança ao além e o condena ao exílio, o Cristo, por sua vez, ao morrer, dirige-se diretamente à Terra. O sangue flui de suas feridas e a alma o acompanha. Normalmente, quando um homem perde seu sangue, sangue e alma seguem caminhos opostos. Aqui, a alma acompanha o sangue. E, em seguida, o corpo é sepultado.

Normalmente, quando o corpo é sepultado, corpo e alma seguem caminhos diversos. Aqui a alma segue o mesmo caminho em direção à Terra. É este o grande sacrifício cósmico de amor que o Cristo pode dedicar para toda a existência terrestre, porque a morte é incapaz de impedi-lo. A Terra recebe corpo e sangue do Cristo. Recebe a grande comunhão, porque a morte não tem poder sobre aquele que morre na cruz. E assim incorporou-se a toda existência terrena um fermento, o remédio da trans-espiritualização de toda existência terrena material.

Durante três dias ainda persiste o efeito da morte. De modo semelhante ao que acontece após a morte de qualquer homem, durante três dias ocorre uma certa parada sagrada do destino. Três dias após a morte física, a morte ainda uma vez mais adquire um poder implacável sobre o ser humano. Após ter afastado dele o corpo terreno, a morte separa agora também o corpo vital, o corpo etéreo, e o espalha pelo cosmo. O reluzir do corpo na cruz descortina a visão pascal: o poder da morte não será capaz, no terceiro dia, de dissolver o corpo etéreo do Cristo. Pelo poder que o Cristo detém sobre seu próprio ser, este manto etéreo não se afastará da Terra, substanciar-se-á, de modo que o Cristo poderá ainda mais ligar-se a tudo o que é da Terra. Em sua corporeidade espiritual, o Cristo permanece perto dos homens, como ele mesmo profetizou: “Eis que ficarei convosco todos os dias até o fim dos tempos terrestres”.

Através de uma força o Cristo obteve a vitória sobre a morte: a força do amor cósmico que nele se fez homem. Pilatos pôde dizer daquele que viu marcado pelos flagelos, coroado com espinhos e ironizado com o manto de púrpura: “Este é o Homem!”. Quanto mais nós podemos dizer: o que está na cruz e abre seus braços a fim de praticar na morte o grande ato de amor que tudo transforma é a verdadeira e mais sagrada imagem da essência do homem. Foi o que Christian Morgenstern cunhou em palavras poéticas:

Eu vi o HOMEM em sua forma mais profunda
Conheço o mundo até em seu fundamento

Sei que amor, amor é seu mais profundo sentido
E que existo para amar cada vez mais.

Abro os braços como ELE fez
Quero, como ELE, abraçar o mundo inteiro.




Emil Bock




Arimã ou Arimane é um arquétipo mitológico semelhante ao Satã judaico-cristão. Arimã representa o lado negro da alma de todos os homens, o ego que os guia a prazeres fúteis e os afasta de tudo o que é bom. Arimã era um deus do zoroastrismo da religião persa, e ele era o deus do mal ao contrário do ahura mazda. (Wikipedia)




Fonte do Texto e da Gravura:
Biblioteca Virtual da Antroposofia
http://www.antroposofy.com.br

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