quarta-feira, 5 de abril de 2017

A IMPORTÂNCIA DE SABER PARAR


Cada Ser Humano Combina Qualidades de Brahma, Vishnu e Shiva


Nota Editorial: O texto a seguir começa mencionando os três gunas, as qualidades ou propriedades da matéria. Eles são: 1) tamas ou inércia, estabilidade; 2) rajas ou movimento, paixão, exagero; e 3) satwa ou harmonia, equilíbrio, ritmo. (CCA)


Para muitos, o grande obstáculo é uma aparente incapacidade de vencer a tendência  à inércia, e de reunir a vontade necessária para iniciar ações no rumo necessário. Mas, para outros, o desafio quase insuperável é saber parar uma atividade depois que ela foi iniciada. O primeiro grupo de pessoas está obviamente lutando com a qualidade da indiferença, chamada de Tamas pelos hindus; enquanto que o segundo grupo está envolvido pela qualidade intensa e ativa de Rajas.

A incapacidade de puxar as rédeas da ação é um erro sutil, mas raramente é reconhecido como tal, quando se manifesta naqueles que estão intensamente engajados na prática de “boas” ações. Porém o apego destas pessoas à sensação de estar fazendo algo e à satisfação dos progressos visíveis as torna cegas para o seu processo de apego e, portanto, de escravidão. Até mesmo o “dever”, quando feito com exagero, pode significar que nosso dever não foi cumprido.

Qualquer veículo de transporte, se não está equipado com um sistema de freios eficiente, se transforma em uma séria ameaça. O mesmo ocorre com as energias do ser humano.  O poder da concentração, como todos sabem, é imenso. No entanto, se a concentração for prolongada indevidamente e estiver relacionada apenas com desejos pessoais, ela se torna uma obsessão. Para tornar-nos realmente capazes de dirigir nossas mentes, devemos, segundo William Judge afirma no início da sua versão dos Aforismos de Ioga de Patañjali, “desenvolver a vontade (…..), de tal modo que, ao invés de permitir que a mente vá de um assunto para outro ou de um objeto para outro e seja movimentada por eles, nós a usemos como instrumento − a qualquer momento e durante um período tão longo quanto quisermos − para a observação do que tenhamos decidido escolher.”

O mesmo ocorre com a arte de falar, um dos poderes mais importantes de que o ser humano dispõe. O uso generalizadamente excessivo desta faculdade é, sem  dúvida, uma doença da nossa cultura. Com frequência os divulgadores mais dedicados da filosofia teosófica, arrastados pelo seu espírito missionário, perdem a oportunidade de parar no momento crucial. Bastam algumas palavras desnecessárias para transformá-los em “chatos teosóficos” e expô-los a acusações de fanatismo. Em seu livro “The Art Spirit”, Robert Henri, um inspirado educador no campo da arte, fez a seguinte profecia, que podemos ter esperança de que se cumprirá:

“Acredito que os grandes artistas do futuro usarão menos palavras. Os textos serão mais curtos, mas mais cheios de significado (…..) Menos coisas serão ditas, mas cada coisa dita será mais completa e receberá uma atenção mais profunda. Agora nós exageramos. Há muita ‘arte’, muita ‘decoração’, muitas coisas são feitas e muitas diversões são desperdiçadas. E poucas coisas são realmente apreciadas.”

Em relação aos métodos empregados pelos Mestres de Sabedoria, um instrutor escreveu: “Os Mestres são dirigidos pela lei da ação e da reação, e têm suficiente sabedoria para não fazer algo que poderia resultar na anulação de todo o seu trabalho anterior (…..). Ao ir demasiado longe em determinado momento, empregando grande força no plano mental, a consequência seria uma reação de superstição e de maldade de todo tipo que desmancharia tudo.” Alguns vendedores descobriram esta verdade (embora em um plano muito inferior) em relação à sua profissão. A observação mostra que a resistência de um cliente diante do discurso do vendedor provoca frequentemente um fechamento dos punhos, e que as mãos relaxam tão logo a resistência cessa. Os vendedores que não percebem a chegada desta resistência frequentemente exageram na oferta da mercadoria, o que resulta num desperdício de energia e numa perda de possíveis vendas.

A seguinte observação, contida no seu artigo “O Progresso Espiritual”, mostra a clara consciência que H.P. Blavatsky tinha das nossas dificuldades nesta questão:

“O mal é frequentemente o resultado de um excesso de ansiedade, e os seres humanos tentam sempre fazer coisas em excesso. Eles não aceitam deixar o bem em paz, fazendo apenas o que a situação exige e nada mais. Eles exageram cada ação e assim produzem carma que deve ser trabalhado em um renascimento futuro.” [1]

Se não fosse pela ação benéfica dos testes cármicos, nada poderia deter os indivíduos em seu mergulho de cabeça na direção de um movimento perpétuo, destituído de significado. O coração e a inspiração da teosofia estão no fato de que, através do uso da vontade, nós podemos ser os nossos próprios censores cármicos.

Até o cientista, que para muitos personifica a virtude da pesquisa calma e paciente, pode desenvolver o vício da “impossibilidade de parar”.  Em sua busca infindável de fatos e mais fatos, esperando encontrar através deles as respostas definitivas para os mistérios sutis da vida, quantas vezes ele pára durante o tempo suficiente para poder analisar, avaliar e sintetizar − em suma, para compreender?  O ponto fraco da ciência de hoje não está na ausência de fatos, mas na ausência de compreensão dos fatos.  O Adepto, o Sábio, tendo chegado ao grau mais alto do poder da concentração, parece poder deduzir as leis de todo cosmo a partir de alguns poucos fatos.

Durante Kali Yuga, o “grande homem” – o gênio aclamado –, também é quase sempre um produto da atividade exagerada, e raramente da atividade controlada e equilibrada. Estes indivíduos talentosos podem parecer inspirados, mas nem sempre controlam a fonte de inspiração. Em consequência disso, quando a presença da inspiração está junto a eles, não cessam o trabalho com medo de que o momento precioso se perca para sempre.  Um verdadeiro gênio, de acordo com os critérios teosóficos, é um homem aperfeiçoado, com habilidade em todos os tipos de ação correta, nos diferentes estados mentais e níveis de consciência. Ele pode começar e parar à vontade qualquer pensamento, ação ou sentimento. Por mais absorvido que esteja no cumprimento de um elevado dever espiritual, ele é capaz, se necessário, de suspender imediatamente a atividade naquele plano para assumir alguma tarefa mundana. Em sua autobiografia, Mohandas Gandhi faz a seguinte avaliação de um certo Raychandbai, que, embora aparentemente não fosse um Adepto, teve um efeito muito nítido e inspirador sobre a vida de Gandhi:

“As operações comerciais de Raychandbai envolviam grandes somas de dinheiro. Era um conhecedor de pérolas e diamantes. Nenhum problema profissional complexo era demasiado difícil para ele. Mas estas coisas não eram o centro ao redor do qual sua vida girava. O centro era sua paixão por ver Deus face a face. Entre as coisas que eram inevitavelmente encontradas sobre sua mesa de trabalho estavam alguns livros religiosos e o seu diário. No momento em que ele terminava seu trabalho ele abria um livro religioso ou o seu diário (…..). Um homem que, imediatamente após terminar uma conversa sobre operações comerciais de grande porte, começava a escrever sobre as coisas ocultas do espírito não podia, evidentemente, ser de modo algum um homem de negócios, mas tinha que ser um real buscador da Verdade. E eu o vi assim absorvido em assuntos divinos em meio aos negócios não uma vez ou duas, mas muito frequentemente. Nunca o vi perder seu estado de equilíbrio.” [2]

É um fato estabelecido que as melhores virtudes, quando levadas ao exagero, se tornam defeitos. Isso poderia significar que todo defeito é uma virtude fora de controle? Até mesmo a maldição do egoísmo é apenas a distorção e a expansão do dever natural do autoapoio e da autopreservação. O que é a luxúria ou a paixão obsessiva, exceto o resultado do desejo de prolongar uma sensação perfeitamente inofensiva e frequentemente necessária? A comida deve ser saborosa, afirma-se, para que se tire benefício dela. O glutão erra somente porque busca atender um apetite perpétuo com uma alimentação incessante. O pseudoasceta condena as sensações; o homem sábio condena a sua não-regulação.

O que impele uma dona de casa ou um homem de negócios que estejam dedicados a alguma tarefa “desagradável” a manter-se trabalhando muito além do que mandam a prudência e o bom senso?  É o amor pelo trabalho ou o cumprimento consciente do dever?  As razões podem ser numerosas. Para alguns, o trabalho pode ser um ópio para esquecer de problemas, e para evitar examiná-los de frente. Alguns gostam da sensação de estar fazendo algo e daquele momento de satisfação suprema, mas passageira, que há quando uma tarefa é completada.  Outros desejam terminar logo o trabalho necessário e esquecê-lo de uma vez.  O buscador egoísta do Nirvana, ou da salvação, tem uma meta similar. Ele está frequentemente disposto a enfrentar um trabalho que envolve um sacrifício tremendo durante muitas encarnações, com o objetivo de libertar-se “permanentemente” de todos os problemas terrestres.

Por outro lado, existem aqueles cujas motivações são inegoístas e que, no entanto, parecem ser igualmente escravos do hábito de trabalhar em excesso.  Neste caso, é o medo de serem incapazes de terminar uma tarefa a tempo que frequentemente os leva a uma atividade ansiosa, impaciente.  Para eles, o conhecimento da lei cíclica do Carma deveria produzir uma compreensão de que, quando trabalhamos calmamente e de acordo com a lei natural, a própria natureza se coloca ao nosso serviço. “Se estivermos no rumo correto, haverá tempo e ocasião para cumprir todos os deveres e nenhum deles será esquecido (…..). Vivendo e agindo de modo integral e correto no momento presente e em toda vida, a força dinâmica do  cérebro irá atuar de modo integral, e completo, e não haverá exaustão.”

Como alguém pode determinar por si mesmo se está controlando qualquer tarefa em especial, ou se está sendo controlado por ela? Em algum momento adequado ele deve perguntar-se: “Posso parar esta atividade antes de ela estar completa? Posso interromper esta linha de pensamento?  Posso parar este desejo ou sentimento? Sou capaz de parar e desistir de tudo e de qualquer coisa conforme a minha vontade?”  Frequentemente, a vida produz estes testes através de interrupções constantes, às quais todos estão sujeitos nesta época de exigências que se contradizem umas às outras. Se a nossa resposta é o aborrecimento, ou uma retirada mental apenas parcial da tarefa que é preferida, a lição ainda está por ser completamente aprendida.

Para o hindu, o terceiro deus da trindade é Shiva, o destruidor. Brahma e  Vishnu são o poder criador e o poder preservador da natureza. Será difícil compreender por que uma divindade tão agressiva como Shiva pode ter tantos devotos leais?

Cada ser humano é uma combinação de Brahma, Vishnu e Shiva. Ele deve ter muito cuidado se só Brahma e Vishnu parecem prevalecer em si. Porque sem o exercício do poder de destruir a concha aprisionadora do apego − tantas vezes construída em torno de interesses, ideais, sentimentos, interpretações e até afetos − não pode haver a criação que leva ao progresso, nem a preservação de experiências da alma que são novas e mais valiosas.




Revista “Theosophy”




Fonte: "Filosofia Esotérica"
http://www.filosofiaesoterica.com/a-importancia-de-saber-parar/
Fonte da Gravura: tumblr.com




NOTAS:

[1] Veja em nossos websites associados a íntegra do artigo “O Progresso Espiritual”, de Helena Blavatsky.  (CCA)

[2] Capítulo I da parte dois, na Autobiografia de Mohandas Gandhi. O capítulo é intitulado “Raychandbai”. Na edição de Penguin Books, Londres, veja as páginas 92-93. (CCA)



O artigo acima foi publicado em janeiro de 1953 pela revista “Theosophy”,  em Los Angeles, pp. 100-104. O seu título original é “The Power to Stop”.  Em língua portuguesa, foi publicado inicialmente no boletim eletrônico “O Teosofista”, edição de agosto de 2009.