“Moshé diz a Yihavehah: O povo não poderá subir ao Monte Sinai. Sim, Tu o certificas junto a nós dizendo: limita a montanha, consagra-a.” (Yitró 19: 23)
A Cabalá nos ensina que as dimensões física e espiritual estão intimamente entrelaçadas. Da mesma forma como somos influenciados pelo plano espiritual, nossas ações na vida diária afetam diretamente aquilo que os cabalistas chamam de Mundos Superiores. E o que entendemos como Mundos Superiores? Isso nada mais representa do que uma consciência superior. Os Mundos Superiores são conhecidos pelo nome código de “Monte Sinai”. O Monte Sinai (Mundos Superiores) existe dentro de nós. Mas, por que o Criador “limita a montanha”? Por que a transformação espiritual precisa ser tão difícil? Se não existe limite para o poder da Luz Infinita, por que a Luz não nos reinventa imediatamente como bilhões de "tzadiyquiym" (justos), cada um de nós uma alma humana completamente iluminada? A resposta para isso está no fato de que não podemos alcançar a plenitude sem realizar o trabalho espiritual que nos leva a merecer a plenitude. Nossa essência é a essência da Luz Infinita, cuja natureza é dar e compartilhar, e para quem o conceito de “presentes gratuitos” é inadmissível. Há na Cabalá uma expressão que é pertinente a essa idéia – "nachamá dichisufa", que pode ser traduzido como “pão da vergonha”. Isto se refere a qualquer tipo de sustento que, por não ser merecido, nos traz dor e desgosto em vez de alegria e inteireza. Por isso temos que lapidar nossa alma para nos aproximarmos dos domínios da Santidade. Essa questão é de tão fundamental importância, que foi amplamente abordada por nosso mestre, o Rav Avraham Abuláfia em sua obra – "Chaiê Olam HaBá".
“Todos que vêm para estes portais para buscar a Hashem não devem correr e se adiantar ao seu espírito, assim, vindo como que em qualquer momento para entrar nos domínios da Santidade!” (Rav Avraham Abuláfia)
De igual forma, a Torah nos alerta: “limita a montanha, consagra-a”. Nos círculos abulafianos, nenhum discípulo era admitido antes de passar por certas “provas” espirituais. Cada um tinha de possuir "midot" (qualidades) cabalísticas específicas, tais como devoção sem ambição, paciência, generosidade, humildade, autocontrole, amor ao aprendizado, capacidade mental para absorver os conhecimentos e capacidade de auto-avaliação imparcial. Além disso, Rav Abuláfia informava a seus discípulos que todos os graus de espiritualidade estavam sujeitos a obstáculos, os quais ele denominava "mastin" (impedimentos). Com isso o mestre procurava trabalhar cada discípulo de modo a evitar que seu "mastin" particular dominasse-lhe a mente. O refinamento do caráter, por assim dizer, o aprimoramento das "midot" (atributos) de cada indivíduo que almeja penetrar o caminho espiritual é o que permite ao mesmo sair do estado de escravidão ("goi") para ingressar no estado de “reconhecimento” – "yehudi" – espiritual.
Para os cabalistas da tradição contemplativa, todos nós possuímos três estágios da consciência espiritual, são eles – "goi" (escravo); "guer" (estrangeiro ou convertido) e "yehudí" (reconhecedor). Estes três estágios representam latências que derivam dos mais diversos níveis de nossa alma – "néfesh" ("goi"), "ruach" ("guer") e "neshamá" ("yehudi"). A "néfesh" é essencialmente escrava dos desejos mais elementares e está limitada pelos sentidos comuns, por isso é de natureza essencialmente “escrava”. O início do processo de purificação passa essencialmente pela iniciativa de purificar o corpo e os desejos mais densos da alma, tal como o “poder” e o “orgulho”.
“Ele deve abominar o gosto pelo poder e orgulho, assim como o desejo e gosto de comer o que é impuro, e o desejo e gosto para com a luxúria.” ("Chaiê Olam HaBá" – Rav Abuláfia)
O "ruach" simboliza o desejo pelo crescimento espiritual, que nos impulsiona a perceber uma versão ampliada da realidade. Aqui reside a natureza da conversão espiritual, não a conversão a uma outra religião e sim a conversão de um estado de consciência para outro. Isso equivale a perceber uma nova versão dos fatos – por isso é um estado de com-versão. Já a "neshamá" representa o caminho do cabalista, o caminho dos que reconhece a natureza da Consciência Infinita em todas as coisas. Este “lugar” que vem a ser a habitação de nossa "neshamá" é conhecido pelo nome código de Monte Sinai. O caminho de acesso a esse “monte” é um caminho de retificação. A pessoa precisa retificar a sua "néfesh" – purificando os desejos mais elementares – para somente então merecer um "ruach" muito mais elevado. E da mesma forma, para que a pessoa alcance a "neshamá", ela precisa retificar cada parte de seu "ruach" – e por assim dizer, as suas “versões” devem se iluminar e se aproximar do desejo pelo refinamento espiritual constante. Esse que anseia por penetrar nos domínios da Santidade é o “guer”. Ele precisa iniciar seu percurso dentro do “terreno” santificado purificando seus pensamentos das coisas tolas e passageiras, limpando-se da arrogância e da reatividade. Ele precisa retirar o foco sobre os títulos e funções espirituais para concentrar sua energia no seu papel – aquilo que ela veio realmente fazer nesta vida, como nos ensinam os sábios: “...e quem se aproveita da coroa da Torah, perecerá.” (Pirkei Avot 1: 13)
Mas como limpar-se das impurezas inerentes ao ser humano? Quando nos aproximamos das coisas sagradas, recebemos um "ruach" elevado através de um processo de impregnação espiritual chamado “ibur”. Assim a pessoa recebe literalmente um “espírito vivo” que é acrescentado a ele, e representa um grau de iluminação maior e na expansão de sua consciência. E isso é conhecido pelos cabalistas, pois as letras da palavra “guer” (convertido) são as iniciais de “guilgul ruach” – a reencarnação do espírito. Aqui residem os mistérios da “reencarnação em vida”, quando uma pessoa – ainda em vida – recebe uma centelha superior de alma e se acopla a uma consciência mais elevada. Mas como podemos nos purificar ao ponto de nos tornarmos um “yehudi”? O patriarca Avraham foi o primeiro "yehudi". E como ele conseguiu isso? Através de uma conversão “oficial”? Através de uma hereditariedade? Definitivamente não! A formula encontrada da Torah é bem clara: “vai para dentro de ti... rumo à terra que te farei ver”. Foi assim que o primeiro “guer” se tornou “yehudi”. O processo inicia-se por um mergulho interno “para dentro de ti” mesmo e descobrindo uma outra versão para a “terra que te farei ver”, ou seja para o mundo físico. Não é um chamado para uma nova religião, nem mesmo para uma nova cultura e sim, um auto-conhecimento. É importante notar que o agente que permite “ver” é a Luz e nada mais. Desta forma, tornar-se “yehudi” é então um ato de “ver”, de reconhecer. Quando não reconhecemos (a Presença Divina), quando não reconhecemos os nossos graus de santidade e retificação de caráter, estamos fortalecendo o nosso aspecto “goi” e enfraquecendo o nosso aspecto “yehudí”. O termo “yehudi” deriva de “YEHUDAH” e possui a raiz etimológica na palavra “hoda’a” que significa “reconhecimento”. No sentido de ser capaz de “identificar” algo. Aquele que “reconhece” está pronto para receber a Torah e elevar-se ao Monte Sinai (Mundo Espiritual).
“Eu mesmo, Yihavehah, teu Elohym que te fiz sair da terra de Mitz’raym, da casa dos servos.” (Yitró 20: 2)
E desta forma o cabalista deve sentir que Ele mesmo (a Luz Infinita) o faz sair da condição de “escravo” ("goi") e o conduz em direção a Torah (Sabedoria Espiritual). O reconhecimento de que é a própria Luz Infinita quem lhe conduz deve produzir aquilo que Rav Avraham Abuláfia classificou como ENTUSIASMO ("cheshek"). Os discípulos de Rav Abuláfia eram instruídos a reconhecer esse “sinal” (ou a falta dele) quando se dedicavam aos assuntos sagrados. Para Rav Abuláfia, o entusiasmo era a via de acesso ao "DEVEKUT" (Subordinação). A busca da concentração no "cheshek" (entusiasmo) transformava o pensamento do cabalista de forma que o mesmo eliminava totalmente seu "mastin" (obstáculos) e todo e qualquer pensamento voltava-se exclusivamente ao Eterno.
“Tudo o que a pessoa deve fazer deve ser pela Causa dos Céus...” ("Chaiê Olam HaBah")
Para Rav Abuláfia, se um "cheshek" (entusiasmo) fosse fraco demais, ele não poderia projetar seu "ruach" suficientemente longe. Quando reconhecemos com entusiasmo que a própria Luz Infinita nos guia dentro do caminho, estamos condensando todos os outros desejos no desejo único pelo "DEVEKUT", e ele estará pronto para receber a Torah (Sabedoria Espiritual).
Rav Mario Meir
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