terça-feira, 9 de junho de 2020

AUTOCRUELDADE


A autocrueldade é, sem dúvida, a mais dissimulada de todas as opressões.

De todas as violências que padecemos, as que fazemos contra nós mesmos são as que mais nos fazem sofrer. Nessa crueldade, não se derrama sangue, somente se constroem cercas e cercas, que passam a nos sufocar e a nos afligir por dentro.

Montaigne, célebre filósofo francês do século XVI, escreveu: “A covardia é mãe da crueldade”. Realmente, é assim que se inicia nossa autoagressão. Em razão de nossa fragilidade interior e de nossos sentimentos de inferioridade, aparece o temor, que nos impede de expressar nossas mais íntimas convicções, dificultando-nos falar, pensar e agir com espontaneidade ou descontração.

A autocrueldade é, sem dúvida, a mais dissimulada de todas as opressões. Além de vir adornada de fictícias virtudes, recebe também os aplausos e as considerações de muitas pessoas, mas, mesmo assim, continua delimitando e esmagando brutalmente. Essa atmosfera virtuosa que envolve os que buscam ser sempre admirados e aceitos deve-se ao papel que representam incessantemente de satisfazer e de contentar a todos, em quaisquer circunstâncias. Buscam contínuos elogios, colecionando reverências e sorrisos forçados, mas pagam por isso um preço muito alto: vivem distantes de si mesmos.

A causa básica do “autotormento” consiste em algo muito simples: viver a própria vida nos termos estabelecidos pela aprovação alheia.

A timidez pode ser considerada uma autocrueldade. O acanhado vigia-se e, ao mesmo tempo, vigia os outros, vivendo numa autoprisão. Em razão de ser aceito por todos, ele não defende sua vontade, mas sim a vontade das pessoas. Pensa que há algo de errado com ele, não desenvolve a autoconfiança e, continuamente, se esconde por inibição.

Pensar e agir, defendendo nosso íntimo e nossos direitos inatos e, definindo nossas perspectivas pessoais, sem subtrair os direitos dos outros, é a imunização contra a autocrueldade.

Para vivermos bem com nós mesmos, é preciso estabelecermos padrões de autorrespeito, aprendendo a dizer “não sei”, “não compreendo”, “não concordo” e “não me importo”.

As criaturas que procuram bajulação e exaltação martirizam-se para não cometer erros, pois a censura, a depreciação e a desestima é o que mais as atemorizam. Esquecem-se de que os erros são significativas formas de aprendizagem das coisas. É muito compreensível faltarmos à lógica numa tomada de decisão, ou mudamos de ideia no meio do caminho; no entanto, quando errarmos, será preciso que assumamos a responsabilidade pelos nossos desencontros e desacertos e apreendamos o ensinamento da lição vivenciada.

Quem busca consenso, crédito e popularidade não julga seus comportamentos por si mesmo, mas procura, ansiosamente, as palmas dos outros, oferecendo inúmeras razões para que suas atitudes sejam totalmente consideradas.

Vivendo e seguindo seus próprios passos, poderá inicialmente encontrar dificuldades momentâneas, mas, com o tempo, será recompensado com um enorme bem-estar e uma integral segurança de alma.

Estar alheio ou sair de si mesmo, na ânsia de ser amado por todos aqueles que considera modelos importantes, será uma meta alienada e inatingível. O único modo de alcançar a felicidade é viver, particularmente, a própria vida.

A fixação que temos de olhar o que os outros acham ou acreditam, sem possuirmos a real consciência do que queremos, podemos, sentimos, pensamos e almejamos, é o que promove a destruição em nossa vida interior, ou seja, o esfacelamento da própria unidade como seres humanos e, por consequência, nossa unidade com a vida que está em tudo e em todos.

Consulta Kardec os Obreiros do Bem: “A obrigação de respeitar os direitos alheios tira ao homem o de pertencer-se a si mesmo?” E eles responderam: “De modo algum, porquanto este é um direito que lhe vem da Natureza.” (Questão 827 de O Livro dos Espíritos)

“Pertencer-se a si mesmo”, conforme nos asseveram os Espíritos, é exercer a liberdade de não precisar conciliar as opiniões dos homens e de livrar-se das amarras da tirania social, da escravidão do convencionalismo religioso, das vulgaridades do consumismo, da constrição de ser dependente, enfim, do medo do que dirão os outros.

A solução para a autocrueldade será a nossa tomada de consciência de que temos a liberdade por “direito que vem da Natureza”. Contudo, de quase nada nos servirá a liberdade exterior, se não cultivarmos uma autonomia interior, porque quem está internamente entre grilhões e amarras jamais poderá pensar e agir livremente.


Francisco do Espírito Santo / Hammed



Fonte: do livro (digital) "As Dores da Alma"
8ª ed., agosto/2000, Boa Nova - Editora e Distribuidora de livros espíritas
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/illustrations/imagina%C3%A7%C3%A3o-conto-de-fadas-5153678/