Vacuidade é o modo como as coisas realmente são. É o modo como as coisas existem, que é oposto ao modo como elas aparecem. Acreditamos, naturalmente, que as coisas que vemos ao nosso redor – como mesas, cadeiras e casas – são verdadeiramente existentes porque acreditamos que elas existem exatamente do modo como aparecem. No entanto, o modo como as coisas aparecem aos nossos sentidos é enganoso e completamente contraditório ao modo como elas realmente existem.
As coisas aparecem como existindo do seu próprio lado, sem dependerem da nossa mente. Este livro que aparece para a nossa mente, por exemplo, parece ter sua própria existência objetiva, independente. Ele parece estar “fora”, ao passo que nossa mente parece estar “dentro”. Sentimos que o livro pode existir sem a nossa mente; não sentimos que nossa mente esteja, de alguma maneira, envolvida em trazer o livro à existência. [...]
Embora as coisas apareçam diretamente aos nossos sentidos como sendo verdadeiramente existentes, ou inerentemente existentes, em realidade todos os fenômenos carecem, ou são vazios, de existência verdadeira. Este livro, nosso corpo, nossos amigos, nós próprios e o universo inteiro são, em realidade, apenas aparências à mente, como coisas vistas em um sonho. Se sonharmos com um elefante, o elefante aparecerá vividamente com todos os seus detalhes – poderemos vê-lo, ouvi-lo, cheirá-lo e tocá-lo; mas, quando acordarmos, realizaremos que ele era apenas uma aparência à mente. Não iremos perguntar “Onde está o elefante, agora?” porque entenderemos que ele era simplesmente uma projeção da nossa mente e não tinha existência fora de nossa mente. Quando a percepção onírica (a percepção durante o sonho) que apreendia o elefante cessou, o elefante não foi para lugar algum – ele simplesmente desapareceu, pois era apenas uma aparência à mente e não existia separado da mente. Buda disse que isso também é verdadeiro para todos os fenômenos; eles são meras aparências à mente, em total dependência das mentes que os percebem.
O mundo que experienciamos quando estamos acordados e o mundo que experienciamos quando sonhamos são, ambos, meras aparências à mente, e que surgem das nossas concepções equivocadas. Se quisermos afirmar que o mundo do sonho é falso, teremos também que dizer que o mundo da vigília é falso; e se quisermos afirmar que o mundo da vigília é verdadeiro, também teremos que dizer que o mundo onírico, ou mundo do sonho, é verdadeiro. A única diferença entre eles é que o mundo onírico é uma aparência para a nossa mente sutil do sonho, ao passo que o mundo da vigília é uma aparência para a nossa mente densa da vigília. O mundo onírico existe apenas enquanto a percepção onírica, para a qual ele aparece, existir; e o mundo da vigília existe apenas enquanto a percepção da vigília, para a qual ele aparece, existir. Buda disse: “Deves saber que todos os fenômenos são como sonhos”.
Quando morremos, nossas mentes densas da vigília se dissolvem em nossa mente muito sutil e o mundo que experienciávamos, quando estávamos vivos, simplesmente desaparece. O mundo tal como os outros o percebem continuará existindo, mas o nosso mundo pessoal desaparecerá tão completa e irrevogavelmente como o mundo do sonho da noite passada desapareceu.
Buda também declarou que todos os fenômenos são como ilusões. Há muitos tipos diferentes de ilusão, como miragens, arco-íris e alucinações provocadas por drogas. [...] O que todas as ilusões têm em comum é que o modo como elas aparecem não coincide com o modo como elas existem. Buda comparou todos os fenômenos a ilusões porque, devido à força das marcas da ignorância do agarramento ao em-si (em si mesmo), acumuladas desde tempos sem início, o que quer que apareça para a nossa mente aparece, naturalmente, como existindo verdadeiramente e, instintivamente, concordamos com essa aparência; mas, em realidade, tudo é totalmente vazio de existência verdadeira. Assim como uma miragem que aparece como sendo água, quando, de fato, não é água, as coisas aparecem de um modo enganoso. Por não compreendermos sua real natureza, somos enganados pelas aparências e nos aferramos a livros e mesas, corpos e mundos como verdadeiramente existentes. O resultado de nos agarrarmos aos fenômenos desse modo é que desenvolvemos autoapreço, apego, ódio, inveja e demais delusões*, nossa mente torna-se agitada e desequilibrada e a nossa paz mental é destruída.
Somos como viajantes em um deserto, que se esgotam correndo atrás de miragens, ou como alguém andando à noite por uma rua, confundindo as sombras das árvores com criminosos ou animais selvagens à espreita para atacar.
Geshe Kelsang Gyatso
* Engano, logro, burla, ilusão, delírio
Fonte: do livro "Budismo Moderno - O caminho de compaixão e sabedoria",
3ª. ed., Editora Tharpa Brasil, São Paulo, SP - www.tharpa.com.br
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/vectors/logotipo-tri%C3%A2ngulo-de-penrose-1932539/