Por que perde o Espírito encarnado a lembrança de seu passado: “Não pode o homem, nem deve, saber tudo. Deus assim o quer em sua sabedoria. Sem o véu que lhe oculta certas coisas, ficaria ofuscado, como quem, sem transição, saísse do escuro para o claro. Esquecido de seu passado, ele é mais senhor de si.” (Questão 392 de “O Livro dos Espíritos” – Allan Kardec – FEB)
Dentre os obstáculos interpostos para a compreensão, o entendimento e a aceitação da reencarnação como a verdade inelutável que é, encontra-se o questionamento feito com frequência sobre o fato de não nos lembrarmos das vidas anteriores.
Vários e numerosos são os argumentos explicativos sobre essa deliberação divina para cada retorno à vida carnal, podendo-se citar, do ponto de vista científico:
- O restringimento do Perispírito no processo reencarnatório;
- O estado de perturbação que acompanha o Espírito reencarnante;
- A imaturidade das células no sistema nervoso central, nos primeiros anos de vida.
O momento exato do reencarne ocorre quando da fecundação do óvulo feminino pelo gameta masculino, mas, precedendo esse momento tão especial, onde a atuação divina se faz presente, muitas outras ações são necessárias, no Plano Espiritual.
No livro “Missionários da Luz” (André Luiz/Francisco Cândido Xavier), tais providências são descritas de forma magistral, no episódio que trata da reencarnação de Segismundo. A ligação fluídica do reencarnante com os futuros pais implica na perda dos pontos de contato com os vínculos que consolidou na esfera espiritual: alimentação diferenciada, novos hábitos e outros elementos, dos quais “é necessário que se desfaça, para penetrar, com êxito, a corrente da vida carnal.” Por interveniência da Espiritualidade, atuando através de poderosa carga magnética, é procedida uma redução do corpo perispirítico do reencarnante, até que sua forma se assemelhe à de uma criança. Os Espíritos induzem a vontade do reencarnante, através de mensagens de incentivo: “Imagine sua necessidade de tornar a ser criança para aprender a ser homem!” Esse fato corresponde à morte física carnal, com todas as suas características de perturbação.
O Instrutor Alexandre expõe, comparando: “A enfermidade mortal, para o homem terreno, não deixa, em certo sentido, de ser prolongada operação redutiva, libertando por fim a alma, desembaraçando-a dos laços fisiológicos.”
Necessário se diga que o procedimento de restringimento do Perispírito não é o mesmo em todos os processos reencarnatórios: “Há companheiros de grande elevação que, ao voltarem à esfera mais densa em apostolado de serviço e iluminação, quase dispensam o nosso concurso. Outros irmãos nossos, contudo, procedentes de zonas inferiores, necessitam de operação mais complexa que a exercida no caso de Segismundo.”
O iluminado mentor Emmanuel, guia espiritual de Chico Xavier, no livro “Religião dos Espíritos”, oferece novas luzes sobre estes tópicos: “Encetando uma nova existência corpórea, para determinado efeito, a criatura recebe, desse modo, implementos cerebrais, no domínio das energias físicas, e, para que se lhe adormeça a memória, funciona a hipnose natural como recurso básico, de vez que, em muitas ocasiões, dorme em pesada letargia, muito tempo antes de acolher-se ao abrigo materno. Na melhor das hipóteses, quando desfruta de grande atividade mental nas esferas superiores, só é compelida ao sono, relativamente profundo, enquanto perdure a vida fetal. Em ambos os casos, há prostração psíquica nos primeiros sete anos de tenra instrumentação fisiológica dos encarnados, tempo que se lhes reaviva a experiência terrestre. Temos, assim, mais ou menos três mil dias de sono induzido ou hipnose terapêutica, a estabelecerem enormes alterações nos veículos de exteriorização do Espírito, as quais, acrescidas às consequências dos fenômenos naturais de restringimento do corpo espiritual, no refúgio uterino, motivam o entorpecimento das recordações do passado, para que se alivie a mente na direção de novas conquistas.”
No livro “O Pensamento de Emmanuel”, do estimado irmão Martins Peralva, lê-se, no cap. 20: “Com o encolhimento do veículo perispiritual – operação redutiva, por ação magnética – submete-se o Espírito às limitações corporais, como que, praticamente, enclausura-se na libré física, alterando-se-lhe, em consequência, o movimento vibratório do Perispírito.”
Do ponto de vista moral, o Codificador Allan Kardec enumera as principais razões para o olvido do passado:
As perturbações da vida contingente, no lar e na sociedade: Se o reencarnante reconhecesse as pessoas a que havia odiado, talvez o ódio reaparecesse, sendo certo que ficaria humilhado perante quem houvesse ofendido. Importa acrescentar que o reencarne, normalmente, ocorre dentro do mesmo círculo de relacionamento da vida anterior.
Como seria a vida de relação entre pai e filho, se aquele reconhecesse no filho seu assassino de antanho? No livro “Nosso Lar” (André Luiz/Francisco Cândido Xavier), a senhora mãe de André Luiz comunica-lhe que deverá partir para nova reencarnação, quando então será, novamente, esposa de Laerte, seu pai carnal, o qual, no Plano Espiritual, achava-se em zona trevosa, ainda magnetizado, em termos obsidiantes, a duas entidades femininas, suas amantes na última vida física; dizia mais: que receberia as duas entidades como suas filhas queridas, na vida carnal futura. Ora, sem o esquecimento do passado, como seria o relacionamento dessas criaturas, na vida de relação na Terra?
O maior mérito em praticar o bem e exercitar o livre-arbítrio: Em “O Evangelho Segundo o Espiritismo” (cap. V – item 11) encontramos: “Deus nos deu, para nos melhorarmos, justamente o que necessitamos e nos é suficiente: a voz da consciência e as tendências instintivas. O homem traz ao nascer, aquilo que adquiriu. Ele nasce exatamente como se fez. Cada existência é para ele um novo ponto de partida.”
Léon Denis, em “O Grande Enigma”, lembra-nos a citação evangélica: “Infeliz aquele que, pondo a mão na charrua, olhar para trás.” Efetivamente, neste mundo de provas e expiações, onde o peso das dificuldades, às vezes, verga a maior vontade, se fossem somados os equívocos do passado, a criatura não poderia cuidar de seu progresso, tendo um óbice muito forte à sua evolução. Quantas ocorrências desta vida somos levados a esquecer, propositadamente, para liberar nossa vontade para agir. Neste caso, o esquecimento é fator de estímulo ao progresso. Com muito mais razão, é justo que seja promovido o esquecimento das vidas anteriores, onde os erros, possivelmente, serão tão mais marcantes.
Ainda no livro “Nosso Lar”, já especificado, o Espírito de D. Laura informa a André Luiz que fora-lhe permitido o acesso, no Ministério do Esclarecimento, ao registro de suas anteriores reencarnações, até o limite de 300 anos, porque mais do que isso, não suportaria.
Como nos afirma Léon Denis, em “O Problema do Ser, do Destino e da Dor” (FEB): ”É necessário a ignorância do passado para que toda a atividade do homem se consagre ao presente e ao futuro, para que se submeta à lei do esforço e se conforme com as condições do meio em que renasce.”
Recordações humilhantes e orgulhosas: Diz Léon Denis, em “O Problema do Ser, do Destino e da Dor”: “Todos os criminosos da História, reencarnados para expiar, seriam desmascarados; as vergonhas, as traições, as perfídias, as iniquidades de todos os séculos seriam de novo assoalhadas à nossa vista.” - Com que proveito? Em caso de termos tido uma vida de grandes realizações no bem, tais fatos não funcionariam como impeditivos à nossa evolução, isto no caso de não nos debruçarmos no orgulho por termos tido tal comportamento? Teríamos de ser ainda melhores na nova vida.
Em “Obras Póstumas”, Allan Kardec faz excelente observação, a respeito, no item “O Caminho da Vida”: “Que proveito pode o homem tirar de suas existências anteriores, para melhorar-se, dado que ele não se lembra das faltas que haja cometido. O Espiritismo responde, primeiro, que a lembrança de existências desgraçadas, juntando-se às misérias da vida presente, ainda mais penosa tornaria esta última. Desse modo, poupou Deus às suas criaturas um acréscimo de sofrimentos. Se assim não fosse, qual não seria a nossa humilhação, ao pensarmos no que já fôramos? Para o nosso melhoramento, aquela recordação seria inútil. Durante cada existência, sempre damos alguns passos para a frente, adquirimos algumas qualidades e nos despojamos de algumas imperfeições. Cada uma das tais existências é, portanto, um novo ponto de partida, em que somos qual nos houvermos feito, em que nos tomamos pelo que somos, sem nos preocuparmos como que tenhamos sido.”
Os preconceitos raciais, sociais, religiosos etc.: Prevalecem em nosso mundo os preconceitos. Imagine-se as criaturas tendo lembranças de terem sido integrantes de famílias nobres ou extremamente humildes, de terem sido de famílias tradicionais de certos credos religiosos etc. Na Índia, por exemplo, ainda predominam os conceitos de casta. Como viveriam, sabendo que, em vida anterior, integraram tal ou qual casta, inferior ou superior? E alguém que, tendo sido judeu em uma vida, tenha renascido como palestino?
No livro “Renúncia” (Emmanuel/Francisco Cândido Xavier), encontramos uma frase lapidar, que encerra toda uma filosofia a respeito do esquecimento das vidas passadas: “Sem a paz do esquecimento transitório, talvez a Terra deixasse de ser uma escola abençoada para ser um ninho abominável de ódios perpétuos.”
Entretanto, a Codificação Espírita nos leciona que examinando as nossas aptidões e inclinações, podemos inferir de nosso passado e buscar elementos para nossa reestruturação moral e intelectual. Mais: não é somente após a morte que o Espírito terá recordações de suas outras existências. Muitas vezes, quando Deus julga útil, permite que o Espírito, durante o desdobramento natural do sono, tenha lembranças fragmentárias de outras encarnações.
Mesmo não recordando totalmente delas ao acordar, as manterá no campo psíquico sob a forma de reflexos e condicionamentos positivos, que, nos momentos de dúvida, podem ser preciosos elementos de auxílio na tomada de decisões corretas.
São as “Reminiscências Construtivas”, de que nos informa Martins Peralva, em “O Pensamento de Emmanuel”, concluindo: “Embora vagas, ou talvez por isso mesmo, constituem incentivo e sustentação para o Espírito em nova experiência, considerando-se que representavam valiosa ponte entre o Ontem e o Hoje, na áspera caminhada para o Amanhã.”
Gil Restani de Andrade
Bibliografia:
Kardec, Allan – “O Livro dos Espíritos” – FEB
Kardec, Allan – “O Evangelho Segundo o Espiritismo” - FEB
Kardec, Allan – “Obras Póstumas” - FEB
André Luiz/Francisco Cândido Xavier – “Missionários da Luz” – FEB
André Luiz/Francisco Cândido Xavier – “Nosso Lar” - FEB
Emmanuel/Francisco Cândido Xavier - “Religião dos Espíritos” - FEB
Emmanuel/Francisco Cândido Xavier – “Renúncia” - FEB
Denis, Léon – “O Grande Enigma” - FEB
Denis, Léon – “O Problema do Ser, do Destino e da Dor” - FEB
Peralva, José Martins – “O Pensamento de Emmanuel” - FEB
Fonte: Revista "REFORMADOR" de abril/2004
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal