A cura da sombra é, por um lado, uma questão moral — ou seja, o reconhecimento daquilo que reprimimos, o modo como efetuamos essas repressões, a maneira como racionalizamos e enganamos a nós mesmos, a espécie de objetivos que temos e as coisas que ferimos (ou até mesmo mutilamos) em nome desses objetivos. Por outro lado, a cura da sombra é uma questão de amor. Até onde poderia o nosso amor estender-se às partes quebradas e arruinadas de nós mesmos, às nossas partes repulsivas e perversas? Quanta caridade e compaixão sentimos pelas nossas próprias fraquezas e doenças? Como poderíamos construir uma sociedade interior baseada no princípio do amor, reservando um lugar para todos? E uso a expressão "cura da sombra" para enfatizar a importância do amor. Se nos aproximamos de nós mesmos para nos curar e colocamos o "eu" no centro, isso com muita frequência degenera no objetivo de curar o ego — ficar mais forte, tornar-se melhor e crescer de acordo com os objetivos do ego, que em geral são cópias mecânicas dos objetivos da sociedade. Mas quando nos aproximamos de nós mesmos para curar essas firmes e intratáveis fraquezas congênitas de obstinação, cegueira, mesquinhez, crueldade, impostura e ostentação, defrontamo-nos com a necessidade de todo um novo modo de ser; nele, o ego precisa servir, ouvir e cooperar com um exército de desagradáveis figuras da sombra e descobrir a capacidade de amar até mesmo o mais insignificante desses traços.
Amar a si mesmo não é fácil, pois significa amar todas as partes de si mesmo — incluindo a sombra, na qual somos tão inferiores e tão inaceitáveis socialmente. Os cuidados que dedicamos a essa parte humilhante são também a cura. E mais: como a cura depende dos cuidados, às vezes "cuidar" quer dizer apenas "trazer consigo". O primeiro passo essencial para a redenção da sombra é a capacidade de trazê-la conosco (como fizeram os protestantes puritanos, ou os judeus no eterno exílio, dia a dia conscientes de seus pecados, de atalaia contra o Diabo, em guarda para não dar um passo em falso; uma longa jornada existencial com um fardo de pedras às costas, sem ninguém sobre quem descarregá-las e sem destino certo ao final). Mas esse trazer consigo e cuidar não podem ter um desenvolvimento programático que faça aquela qualidade inferior se sujeitar aos objetivos do ego, pois isso não seria amor.
Amar a sombra pode começar com o trazê-la consigo, mas isso ainda não é suficiente. A qualquer momento pode irromper alguma outra coisa qualquer, como aquela introspecção que escarnece do paradoxo da nossa própria loucura — a loucura comum a todos os homens. E então talvez nos chegue a alegre aceitação do rejeitado e do inferior, um acompanhá-lo e até mesmo vivê-lo parcial. Esse amor talvez leve até mesmo a uma identificação com a sombra, a uma passagem ao ato da sombra, caindo no seu fascínio. Portanto, a dimensão moral nunca deve ser abandonada. E assim a cura é um paradoxo que exige dois fatores incomensuráveis: primeiro, o reconhecimento moral de que essas partes de mim são opressivas e intoleráveis, e precisam mudar; e, segundo, a risonha aceitação amorosa que as aceita exatamente como elas são, com alegria e para sempre. Lutamos arduamente e desistimos, julgamos com severidade e aceitamos com alegria. O moralismo ocidental e o abandono oriental, cada um contém apenas um lado da verdade.
Acredito que essa atitude paradoxal da consciência em relação à sombra encontra um exemplo arquetípico no misticismo religioso judaico, onde Deus tem duas faces: a face da retidão moral e da justiça, e a face da misericórdia, do perdão e do amor. Os ensinamentos chassídicos contêm esse paradoxo, suas parábolas mostram uma profunda piedade moral combinada com uma espantosa alegria de viver.
A descrição que Freud fez do mundo escuro que encontrou não faz justiça à psique, era uma descrição demasiado racional. Freud não captou suficientemente a paradoxal linguagem simbólica através da qual a psique se manifesta. Ele não chegou a perceber plenamente que cada imagem, cada experiência, tem um aspecto prospectivo bem com um aspecto redutivo, um lado positivo bem como um lado negativo. Ele não viu com suficiente clareza o paradoxo de que o lixo apodrecido também é o fertilizante, que ingenuidade também é inocência, que perversidade polimorfa também é alegria e liberdade física, que o homem mais feio é também o redentor disfarçado.
Em outras palavras, as descrições da sombra feitas por Freud e Jung não são duas posições distintas e conflitantes. Pelo contrário, a posição de Jung deve ser superposta à de Freud, ampliando-a e acrescentando-lhe uma dimensão, e essa dimensão considera os mesmos fatos e as mesmas descobertas, mas mostra que se trata de símbolos paradoxais.
JAMES HILLMAN *
* James Hillman foi um psicólogo e conferencista americano de fama internacional. Ele estudou e posteriormente conduziu estudos no C. G. Jung Institute, em Zurique. Foi fundador de um movimento conhecido como 'psicologia arquetípica' pós-junguiana. (Wikpédia)
Fonte: do livro "AO ENCONTRO DA SOMBRA - O potencial oculto do lado escuro da natureza humana", Connie Zweig e Jeremiah Abrams (Orgs.), Tradução MERLE SCOSS
Ed. CULTRIX, São Paulo
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/photos/verde-rosto-luz-retrato-mulher-5124174/