quarta-feira, 5 de agosto de 2020

A PORTA DO INCONSCIENTE


[...] Freud foi o primeiro a descrever o que se pode encontrar quando a porta do inconsciente é aberta: nós descemos e realmente damos de cara com a escuridão interior, mergulhando nela... O inconsciente... não pode ser consciente; a lua tem um lado oculto, o sol se põe e não pode brilhar em toda a parte a um só tempo...

Para haver atenção e foco é necessário que outras coisas fiquem fora do campo da visão, permanecendo no escuro, pois não se pode olhar para dois lugares simultaneamente. Entretanto, a escuridão é assim por duas razões: primeiro, por ser necessariamente reprimida... e, segundo, por não ter tido nem tempo, nem lugar para vir à luz. Essa é também a escuridão interior, o chão ou a terra de um novo ser, a parte que se encontra "in potentia" e que vem a ser cultivada pela psicologia junguiana. Aí se encontram o passado e o futuro.

Por trás da escuridão reprimida e da sombra pessoal, encontra-se a escuridão arquetípica, o princípio do não-ser, que foi denominado e descrito como o Demônio, o Mal, o Pecado Original, a Morte, o Nada Existencial, a prima matéria...

A experiência da escuridão interior que Freud descreve é a confrontação viva com a nossa própria natureza reprimida. A besta emerge da gruta onde esteve deitada longo tempo adormecida, e temos terrores noturnos, acordando molhados de suor. Um cadáver ou múmia ancestral ressuscita. Surge um vasto pântano... Um criminoso, uma criança retardada... estes passam a incorporar-se à figuras oníricas que se apresentam sob a forma de marginais, ou seja, seres que foram marginalizados pelas duras leis com que edificamos nossa sociedade interior. Assim, estes potenciais deverão aparecer como uns fora-da-lei, desajustados e ate mesmo aleijados e lunáticos. Curar os cegos e leprosos, ressuscitar os mortos torna-se uma necessidade interna, quando se quer trazer saúde à personalidade.

A experiência dos símbolos da escuridão pode se dar não apenas em nível dos fatos relacionados aos pecados e crimes da vida de cada um, mas também dentro de uma visão mais ampla do desenvolvimento humano. Hércules teve que limpar a imundície dos estábulos de Augias; teve que canalizar verdadeiros rios de energia para realizar esse trabalho impossível. Também teve que dominar o leão das ambições e da sede de poder pessoal e estar pronto para sujar-se nos estábulos. Ulisses precisou defrontar-se com o gigante do olho faminto, o demônio unilateral da compulsão, antes de prosseguir em sua jornada. Em algum lugar há sempre um monstro a ser enfrentado, um ser horrendo a exterminar, um impulso a ser ultrapassado. Em algum lugar um anjo nos espera para uma luta corpo-a-corpo antes de podermos atravessar o rio. E quando se esta sozinho no deserto, que tanto pode ser o subúrbio de nossos dias e o prédio de escritórios, quanto, o que mencionavam os primeiros padres da igreja, demônios de todas as espécies, se aproximam: os que tentam, seduzem, pervertem, provocam projeções e os que nos iludem.

Há sempre uma base de apoio para cada queixa que surge e, quanto mais devastadora fascinante ela for, tanto mais certos poderemos estar de que existe um embasamento arquetípico empregando um sintoma como simbolo, o qual, se melhor compreendido, é não apenas um sofrimento patológico, mas a chance de transformar-se numa experiência religiosa. [...]


James Uillman



Fonte: "Uma busca interior em psicologia e religião"
Tradução Araceli Martins Elman; revisão Jose Joaquim Sobral, Ed. Paulus, 4ª ed., 2004
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/photos/psicologia-psique-m%C3%A1scara-gradinha-2709651/

INTROVERSÃO - INTERIORIZAÇÃO - INTROSPECÇÃO


Os padres monásticos foram sempre lúcidos e simples quanto ao entendimento de que o propósito principal da vida monástica é o de alcançar uma consciência inquebrantável da presença de Deus, a prece incessante. Santo Agostinho escrevendo não apenas aos monges, mas a todos os cristãos, disse que todo o propósito da vida e de todo exercício cristão é o de “abrir os olhos do coração”...

Aqui está a meta da vida cristã, pois ela é o convite que cada um de nós teve o privilégio de receber: o de sermos os discípulos de Jesus. Sempre houve um grande perigo para a verdadeira interiorização, mas ele existe hoje em dia de um modo especial, para nós que vivemos em nossa sociedade acanhada e narcisista, que é o da introversão, o egocentrismo e a auto-análise. A grande prevalência da vulnerabilidade psicológica e da alienação social exacerbam este perigo, quando pedem que se lide com ele com gentileza e compaixão... Ser verdadeiramente interiorizado, é o extremo oposto de ser introvertido. Na percepção da presença que nos habita, nossa consciência é revirada, con-vertida, de forma que não estamos mais olhando para nós mesmos, antecipando ou relembrando emoções, reações, desejos e ideias ou sonhando acordados. Estamos nos voltando para outra coisa. E isto é sempre um problema para nós.

Pensamos que seria mais fácil nos afastarmos da introspecção se soubéssemos para onde devêssemos nos voltar. Se ao menos tivéssemos um determinado objeto para olhar. Se ao menos Deus pudesse ser representado por uma imagem. Mas, o verdadeiro Deus nunca pode ser uma imagem. Imagens de Deus são deuses. Fazermos uma imagem de Deus é, meramente, terminarmos por olhar para uma imagem reformada de nós mesmos. Sermos verdadeiramente interiorizados, abrirmos os olhos do coração, significa estarmos vivendo na visão sem imagens que é fé, e esta é a visão que nos permite "ver Deus". Na fé, a atenção é controlada por um novo Espírito, não mais os espíritos do materialismo, do egoísmo e da auto-preservação, mas o ethos da fé que é, por natureza, não possessivo. Ele está sempre abrindo mão e continuamente renunciando aos prêmios das renúncias, que são muito grandes e, portanto, fazendo-se ainda mais necessário que eles sejam restituídos. Não há desafio mais crucial do que o de adentrar a experiência de se manter centrado-nos-outros. Trata-se do continuado estado estático de despojamento. Podemos vislumbrar isto simplesmente ao nos lembrarmos daqueles momentos ou fases da vida em que experimentamos o mais alto grau de paz, plenitude e alegria, reconhecendo neles, não períodos em que possuíamos alguma coisa, mas períodos em que nos perdemos em algo ou em alguém. O passaporte para o reino demanda o carimbo da pobreza. [...]

E, no entanto, aprender a estar centrado-em-outros é uma disciplina, é um discipulado e implica em ascese. Não há nada mais difícil do que aprender a não estarmos atentos a nós mesmos... Estamos todos inclinados a deixar nossa atenção passear, derivar de volta ao egoísmo, à fascinação consigo mesmo, e quando a atenção fica à deriva nessa correnteza falsa logo voltamos ao estado de distração. Há, então, uma simples verdade a descobrir. Quando a atenção está em Deus, com a visão da fé, tudo nos revela Deus. Quando nossa atenção está em nós mesmos, na cegueira do ego, tudo é distração que nos afasta de Deus.

Parece-nos ser um difícil desafio esse de sempre dirigir nossa atenção para essa visão da fé, até que compreendamos que foi exatamente para isto que fomos criados.


Dom Laurence Freeman, OSB



Fonte: "O Poder da Atenção" - Leitura de 10/08/2008, The Selfless Self (London: DLT, 1989) pp. 31-35.
Tradução de Roldano Giuntoli - Comunidade Mundial de Meditação Cristã - www.wccm.com.br
Fonte da Gravura: Instagram