[...] Flammarion firmou o princípio de que não é somente a Terra que serve de habitação à espécie humana, mas, sim, todos os astros espalhados pelo espaço sem fim, e eles mesmos inúmeros, aos bilhões. A espécie humana não é, pois, exclusivamente terrestre, nem é na Terra que começou e acabará sua marcha, pelas vias do progresso, até à perfeição, que é seu destino.
[...] Deus não criou somente o nosso mundo e descansou, como se entende pela cosmogonia bíblica. A prótese divina nem teve princípio nem terá fim, porque o movimento e a ação caracterizam a vida, e o Criador cessaria de o ser, se, por um momento, fosse inerte, inativo, em repouso. Deus, pois, criou desde o princípio dos tempos, e criará, incessantemente, por toda a eternidade. Cria mundos e cria espíritos. A criação constante dos primeiros já é princípio corrente na ciência, que chegou a determinar como do fluido cósmico sai a nebulosa, e desta se destacam os núcleos de novos gigantes do espaço. A criação constante dos segundos é dedução forçada da pluralidade de mundos habitados, pois de outro modo não haveria onde se proverem de habitantes os milhares de milhões existentes e os que lhes aumentam o número, por sua constante criação.
[...] Tomemos, pois, os dois novos princípios: pluralidade de mundos e pluralidade de existências da alma, e vejamos o que de sua combinação resulta. Deus cria mundos, ou, antes, estabeleceu a lei da criação de mundos, em identidade de condições, pois não há razão para diferenças, nem as leis do mundo material, como quaisquer outras, são variáveis; e, pelo contrário, mostra-nos a observação que tudo no Universo obedece a normas fixas.
[...] Deus cria espíritos em identidade de condições, pois não há razão para exceções, preferências e exclusões, que não se conformam com os infinitamente perfeitos atributos do Criador... Somos todos criados em estado de inocência, isto é, sem consciência do bem e do mal, faculdade que se vai desenvolvendo, à medida que vamos usando do nosso livre arbítrio. Somos todos criados em estado de ignorância, mas dotados de inteligência, pela qual devemos conquistar o conhecimento universal, como pelo desenvolvimento do senso moral devemos conquistar a virtude universal.
Os espíritos criados, assim, em identidade de condições intelectuais e morais, trazem consigo, latentes, todas as faculdades de que necessitarão para realizar sua transformação da ignorância nativa à mais alta sabedoria, e da inocência inconsciente à mais sublimada virtude. Com estas armas, de que todos são dotados para subirem ao destino a todos marcado, Deus deu sempre sem exceção, a liberdade ou o poder de cada um empregá-los, como quiser, para alcançar aquele destino.
O que se empenhar, 'totis viribus'*, no aperfeiçoamento intelectual e moral de seu ser, fará carreira mais rápida e, conseguintemente, menos dolorosa. Aquele, porém, que desprezar os recursos que lhe foram dados, e entregar-se aos gozos materiais... ou que dormir, preguiçoso, nos pousos da longa viagem, fará carreira mais lenta, e, conseguintemente, mais tormentosa.
E, pois, dando aos espíritos as mesmas condições originais, as mesmas armas para seguirem o seu destino, e idêntico, tanto como excelso destino, o Criador completou sua obra dotando-os da mais plena liberdade no emprego daquelas armas. É do bom ou mau uso que fazem desse sublime dom, que resultam as variedades de todo o gênero, que se observam no seio da humanidade, e o que faz que os ignorantes atribuam a Deus tais variedades. Não; o homem é senhor de seu destino, pela liberdade, mas, por isso mesmo que é livre, é responsável.
Nasce daí uma nova ordem de cogitações. O homem (espírito) que faz bom uso de sua liberdade, no desenvolvimento de sua perfectibilidade, adquire méritos; o que procede de modo aposto, sobrecarrega-se de deméritos. Méritos e deméritos provocam, por lei fatal, recompensas e castigos, e, no mundo moral, as leis de Deus têm a mesma inexorabilidade que as do mundo físico. “Cada um segundo suas obras” é a grande lei da evolução espiritual, da qual resulta que assim como somos livres de praticar o bem ou o mal, somos, por isso mesmo, os que nos julgamos incursos, merecedores de penas ou recompensas, segundo a lei na justiça eterna. Essa justiça não cogita de personalidades: é indefectível...
[...] Como um corpo posto em movimento adquire progressivamente maior velocidade, assim os espíritos, começando o exercício de suas faculdades intelectuais e afetivas, vão progressivamente adquirindo conhecimentos e sentimentos mais apurados, até chegarem ao termo de sua perfectibilidade... A perfectibilidade humana, sendo indefinida, é óbvio que, na vida da Terra, o homem não alcança o destino para que foi criado; apenas conseguirá, se conseguir, os primeiros degraus da longa escada. Outras existências e maiores esforços são indispensáveis para a consecução do altíssima fim.
Terminando a primeira existência corpórea, o espírito que empregou esforços, para progredir, recebe o prêmio de animação; aquele, porém, que dormiu ou só fez mal, recebe a consequência de suas faltas. Tanto o prêmio como o castigo não podem ter duração eterna, porque não foi completado o ciclo do progresso, cuja realização é lei do ser racional.
Deus não seria Pai, se condenasse seus filhos a penas eternas por faltas de um momento; assim como não seria juiz reto, se, por limitado mérito, desse o inestimável prêmio da glória devida a todo o mérito. E ao que ficaria reduzida a perfectibilidade humana, se não passasse do que sabemos e praticamos nesta vida? Os que fossem para o céu, no dizer dos católicos, não precisariam mais progredir, e os que fossem para o inferno, não poderiam fazê-lo.
[...] Assim, se nas coisas humanas não se admitem julgamentos definitivos, mediante provas incompletas, como admitir-se em Deus tais leviandades e precipitações, que redundariam em injustiça e crueldade? Além disto, se o homem é essencialmente perfectível, e se numa existência não pode chegar ao último grau de sua perfectibilidade, como admitir penas e prêmios eternos, depois dessa existência? No céu, é estulto pensar que ainda se tenha de progredir, e, no inferno, para quê?
Por último, se depois de ligeira prova os espíritos têm seu destino irrevogável, e se no fim do mundo, segundo a Igreja Romana, tem de haver completa separação dos glorificados e dos condenados, teremos a eternização do mal, ou antes, a vitória do mal, porque "satanás" ficará sendo por toda a eternidade, o deus do inferno, o senhor dos condenados, por igual a Jeová, Deus do céu e senhor dos bem-aventurados!
Isto não pode calar no pensamento de quem reconhece em Deus os altos atributos de justiça, misericórdia e amor infinitos. O céu torna impossível o inferno. Deus não seria Deus, se "satanás" a ele fosse igual em poder.
Vimos que uma vida única é insuficiente para o amplo desenvolvimento da perfectibilidade humana. Vimos que os espíritos não são criados para o corpo, mas, sim, que este lhes é dado como instrumento de progresso. Destes dois postulados, que só podem ser impugnados, ou pela ignorância invencível, ou pela incredulidade sistemática, resultam as seguintes consequências lógicas: Não há uma única vida, nem um único mundo. Não há penas eternas, pois os espíritos têm mais de uma vida corpórea. Não há inferno, pois não há penas eternas e materiais. Não há demônios pessoais, pois não há inferno, nem penas eternas... Não houve, finalmente, criação de um só par humano, visto que a própria Bíblia atesta a existência de outros seres humanos na Terra, ao tempo de Adão, e sem que dele procedessem.
[...] A medida, porém, que vai evoluindo, o espírito vai ganhando luz, e, à medida que vai tendo luz, vai reconhecendo e repelindo certos preconceitos mais grosseiros e divisando horizontes menos escuros.
Dr. Bezerra de Menezes (Max)
* Trabalhar muito, trabalhar duro, esforçar-se muito... (Expressão latina)
Fonte: "A LOUCURA SOB NOVO PRISMA"
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