Lemos muitas vezes no Bhagavad Gita que todos devemos trabalhar incessantemente. Todo o trabalho é, pela sua natureza, composto de bem e de mal. Não podemos fazer trabalho algum que não resulte em bem algures, e não pode haver trabalho algum que não cause algum mal algures. Bem e mal terão ambos seu resultado, produzirão seu Karma. Boas ações acarretam-nos bons efeitos; más ações acarretam-nos maus efeitos. Mas, boas e más, ambas são cadeias para a alma. A solução alcançada no Bhagavad Gita em relação a essa natureza produtora de cadeias do trabalho, diz que, se não nos apegarmos ao trabalho que fazemos, ele não terá qualquer efeito aprisionador sobre nossa alma. Essa é a ideia central no Bhagavad Gita: trabalhai incessantemente, mas não vos apegueis ao trabalho.
Cada trabalho que realizamos, cada movimento do corpo, cada pensamento que nutrimos, deixa uma impressão sobre a matéria da mente, e mesmo que essas impressões não sejam evidentes à superfície, são suficientemente fortes para agir sob a superfície, subconscientemente. O que somos, a cada momento, é determinado pela soma total dessas impressões na mente. O que eu sou, exatamente neste momento, é o efeito da soma total de todas as impressões da minha vida passada. Isso é, realmente, o que se chama caráter. O caráter de cada homem é determinado pela soma total dessas impressões. Se boas impressões prevalecem, o caráter torna-se bom, se as más prevalecem, o caráter torna-se mau.
Quando um homem fez uma certa quantidade de bom trabalho e pensou uma quantidade de bons pensamentos, há nele uma tendência irresistível para fazer o bem. Mas há um estágio ainda mais alto do que o de ter boa tendência, e é o desejo de libertação. Deveis recordar-vos de que a liberdade da alma é a meta de todas as yogas, e cada uma delas conduz igualmente ao mesmo resultado. Buda foi um trabalhador "jnane", e Cristo era "bhakta", mas idêntica meta foi alcançada por ambos.
Entretanto, há uma dificuldade. Libertação significa liberdade integral, liberdade das ataduras do bem tanto quanto liberdade das ataduras do mal. Uma cadeia de ouro é tão cadeia como a cadeia de ferro. Há um espinho em meu dedo. Eu uso outro espinho para retirar o primeiro, e quando o tiver tirado jogo ambos fora. Não tenho necessidade de conservar o segundo espinho, porque ambos, afinal, não passam de espinhos.
Trabalha, mas não deixa que a ação ou o pensamento do trabalho produza impressão funda em sua mente. Como se pode fazer isso? Vemos que a impressão de qualquer ação à qual nos liguemos, permanece. Portanto, sede desapegados. Deixai as coisas trabalharem; deixai os centros do cérebro trabalharem, trabalhai incessantemente, mas não deixeis que uma ondulação domine a vossa mente. Trabalhai como se fosseis um forasteiro nesta Terra, um residente temporário. Este mundo não é nossa habitação, é apenas um dos muitos estágios através dos quais estamos passando. A essência toda deste ensinamento é que deveríeis trabalhar como senhores e não como escravos, trabalhar incessantemente, mas não fazer trabalho de escravo. Noventa por cento da humanidade trabalha, mas como escravos, e o resultado é angústia, porque todo esse trabalho é egoístico.
Assim, trabalhai através da liberdade, através do amor. O amor jamais chega enquanto não houver liberdade. Não é possível haver amor verdadeiro no escravo. O trabalho e o dever raramente são doces. Só quando o amor lubrifica as rodas é que ele corre mansamente. De outra maneira, a fricção é contínua. A única forma de subir é cumprir o dever que nos está próximo, e assim reunir forças, subindo até alcançar o mais alto estágio.
Cumpramos o dever que é nosso por nascimento, e quando o tivermos feito, cumpramos, então, o dever que é nosso por nossa posição na vida e na sociedade. Portanto, precisamos recordar que devemos, sempre, tentar ver o dever de outros através de seus próprios olhos e nunca julgar os costumes de outros povos pelos nossos próprios padrões. Eu não sou o padrão do universo. Tenho que me acomodar ao mundo, e não o mundo a mim. Vemos, assim, que o ambiente modifica a natureza de nossos deveres, e cumprir o dever que é nosso em qualquer ocasião em particular, é a melhor coisa que podemos fazer neste mundo.
O trabalhador que se apega aos resultados é quem resmunga a propósito da natureza do dever que lhe coube. Para o trabalhador desapegado todos os deveres são igualmente bons e se tornam instrumentos eficientes com os quais o egoísmo pode ser morto e a liberdade da alma assegurada. Todos temos tendência para pensar muitíssimo bem de nós mesmos. Nossos deveres são determinados pelos nossos merecimentos, em extensão muito maior do que gostaríamos de supor. A competição desperta inveja, e mata a bondade do coração. Para o resmungão, todos os deveres são desagradáveis, nada o satisfaz e toda a sua existência está voltada ao insucesso.
Trabalhemos, fazendo em nosso caminho o que quer que seja de nosso dever, e mostrando-nos sempre prontos a pôr nossas mãos à obra. Então, e seguramente, veremos a Luz.
Swami Vivekananda
Fonte: do livro "Quatro Yogas de Auto-Realização", Ed. Pensamento, São Paulo, 1972
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal