Comecei a pesquisar os ensinamentos internos do cristianismo primitivo por estar convencido de que Jesus não poderia ter omitido de suas instruções uma metodologia para o caminho espiritual, à semelhança dos métodos conhecidos nas principais tradições orientais. Essas tradições têm atraído milhares de cristãos sinceros mas desiludidos com o receituário do cristianismo tradicional.
A riqueza do material encontrado, geralmente pouco conhecido, foi tão surpreendente que resolvi sistematizá-lo e apresentá-lo sob a forma de livro.
Ao mergulhar no estudo das tradições orientais, principalmente do budismo, da ioga, da vedanta e de sua versão moderna, a teosofia, descobri que o lado esotérico da tradição cristã tem todos os ingredientes das formas esotéricas dessas outras, e que a devoção realmente caminha de mãos dadas com a razão. Em vista dos ensinamentos transformadores que capacitam a união do buscador com o Supremo Bem, poder-se-ia dizer que esta tradição seria a ioga cristã, bem pouco conhecida dos cristãos, porque é derivada dos ensinamentos reservados de Jesus. Lembramos que ioga é um termo sânscrito que significa união, mas que é usado também, por extensão, para transmitir de forma sistemática a metodologia que visa promover a união da natureza exterior do homem com sua natureza interior.
Como o esoterismo cristão é muito rico e a literatura existente muito extensa, o foco deste trabalho foi direcionado para o ponto central dos ensinamentos esotéricos de Jesus, ou seja, a busca do Reino de Deus. Procuraremos elucidar esse tema sobre o qual todo o ministério de Jesus foi baseado, explorando o caminho que leva ao Reino, bem como o método e o instrumental facilitador que capacitam a entrada pela porta estreita e o trilhar do caminho apertado.
O mais surpreendente, como será visto a seguir, é que a essência dos ensinamentos mais profundos de Jesus sempre esteve expressa na Bíblia e em outros documentos sem ser devidamente percebida. É como se as jóias mais preciosas da mensagem bíblica estivessem escondidas debaixo de nossos olhos sob a aparência de coisas sem maior importância. Dentre essas preciosidades negligenciadas do esoterismo cristão poderíamos mencionar: “Eu e o Pai somos Um”, “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, “Já não sou eu que vivo mas é Cristo que vive em mim”, “Quem não nascer de novo não poderá entrar no Reino dos Céus”, “Vinde a mim as criancinhas”, “Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer produzirá muito fruto.”
Esses exemplos e muitos outros evidenciam que os ensinamentos esotéricos de Jesus foram preservados em dois segmentos: no primeiro, encontram-se as proposições, instruções e acontecimentos da vida do Salvador, que estão descritos na Bíblia e em diversos documentos apócrifos; no outro, estão os detalhamentos dessas instruções, com as explicações de suas razões e as técnicas e métodos para o aprimoramento da vida espiritual. Essas instruções e explanações que não se encontram na Bíblia ou nos documentos apócrifos foram passadas de boca a ouvido, naquilo que se chama de tradição oral, ou mesmo por intermédio de outros métodos que serão abordados posteriormente. Este livro é em grande parte um trabalho de reconstituição dos diferentes aspectos desses ensinamentos.
Quando buscamos sintonia com o Mestre em nossas meditações, depois de algum tempo, a confusão inicial cede lugar à simplicidade essencial da mensagem divina, facilitando-nos a tarefa de desenterrar a tradição interna que desconhecíamos. Os objetivos da mensagem salvífica de Jesus começam a aclarar-se, seus métodos de transmissão de instruções fazem-se presentes, e seus ensinamentos surgem como jóias preciosas escondidas sob o véu da alegoria.
Vivemos na ilusão da separatividade, alimentados pelo egoísmo e pelo orgulho, pensando que criamos de forma separada e independente alguma coisa. A realidade, no entanto, é que cada ser humano é tão somente uma célula no grande organismo da humanidade. Como tal, a mente de cada um nada mais é do que um aspecto da mente universal, também chamada de inconsciente coletivo ou mente divina. Dentro da mente divina, a verdade está eternamente presente em sua forma essencial, embora seja apresentada de diferentes maneiras, pelos inumeráveis aspectos individuais desse grande Todo. Verifiquei que, quanto mais procurava estudar e meditar sobre os ensinamentos de Jesus, mais livros e ideias sobre o assunto iam aparecendo. Percebi que muitas outras almas já haviam decifrado e interpretado boa parte dos ensinamentos do Salvador. Minha tarefa, portanto, foi grandemente facilitada, pois foi possível coligir a essência do que já estava escrito e aproveitar parte do que ainda estava no mundo mental, a espera de ser expresso. Como é natural, minhas deficiências literárias, intelectuais e espirituais explicam as falhas que serão encontradas ao longo do texto.
(…)
Introdução
O cristão dedicado e sincero, que procura seguir a orientação do Mestre de tomar a sua cruz e segui-lo, pode se questionar como é possível que o entusiasmo da cristandade dos três primeiros séculos, que seguia Jesus com amor e fervor apesar das perseguições implacáveis que ceifaram a vida de milhares de mártires naqueles tempos, possa ter arrefecido e se transformado, para grande parte daqueles que se dizem cristãos, numa mera afiliação religiosa pró-forma sem o envolvimento de seu coração. As causas dessa mudança qualitativa da religiosidade do cristão são complexas, mas podem ser em boa parte imputadas ao fato de que a maioria das igrejas atuais distanciaram-se dos ideais originais, retornando ao comportamento de obediência a rituais externos e a práticas religiosas mecânicas que Jesus havia tão duramente criticado nos fariseus e levitas. São poucos os cristãos no mundo de hoje que procuram realmente entender os ensinamentos de Jesus e, um menor número ainda, seguir o Mestre.
Com o passar dos séculos, a mensagem central de Jesus foi progressivamente desvirtuada e acabou sendo esquecida. Em vez de buscarmos o Reino dos Céus aqui e agora, colocamos a nossa esperança num paraíso distante, talvez no outro mundo. Porém, se meditarmos profundamente sobre a essência dos ensinamentos de Jesus, deixando de lado nossas idéias pré concebidas, chegaremos à conclusão de que somos o próprio filho pródigo e que algum dia retornaremos à Casa do Pai, que é o Reino dos Céus, voltando ao estágio de pureza prístina original de um Filho de Deus, tornando-nos, então, um Cristo e podendo dizer, por experiência própria, que “Eu e o Pai somos um” (Jo 10:30). Paulo demonstra estar em sintonia com essa realidade ao dizer: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2:20). Esse entendimento do potencial ilimitado do homem e o conhecimento da herança divina podem ser obtidos através do estudo e da vivência do lado esotérico de nossa tradição, que permaneceu esquecido e negligenciado por tantos séculos.
O primeiro passo para usufruirmos a herança divina é a decisão de reivindicá-la. Para isso temos que nos desvencilhar dos condicionamentos limitativos impostos por muitos séculos de apatia intelectual e de ausência do exercício da vontade. A verdade sempre esteve ao nosso alcance, mas, por várias razões, deixamos escapar a oportunidade de percebê-la. Podemos, no entanto, reverter esta situação porque o momento atual é extremamente propício para o despertar espiritual. Felizmente, os ensinamentos esotéricos da tradição cristã não foram totalmente perdidos. Eles podem ser recuperados, compreendidos e, se devidamente vivenciados, podem mudar a nossa vida, permitindo que alcancemos “O estado de Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4:13).
O primeiro passo neste estudo dos ensinamentos de Jesus é deixar claro que o cristianismo, em sua essência última, não é uma instituição mas sim uma convicção interior. Essa convicção, a verdadeira fé, deve guiar a conduta de seus seguidores rumo à meta final, o Reino, deixando um rastro de boas obras ao longo do caminho trilhado.
Um aspecto pouco conhecido da natureza cíclica da manifestação é o de que, em cada final de século, a Providência Divina aumenta o fluxo de energias espirituais para estimular o progresso da humanidade. Ocorrem também ciclos maiores, como ciclos milenares e ciclos envolvendo as grandes eras. A humanidade está vivendo agora um momento muito especial, a confluência de três ciclos, o centenário, o milenar e o de transição da era de peixes para a era de aquário. Isso pode ser notado pelas pessoas mais sensitivas. O resultado dessa ação energética inusitada se faz sentir no mundo das idéias e do comportamento humano.
Nesta virada do terceiro milênio, estamos vivendo um momento extremamente propício para tornar conhecidas as coisas ocultas. Por isso esforçamo-nos para fazer com que os ensinamentos de Jesus entesourados em documentos raros, ao alcance apenas de um limitado círculo de estudiosos, sejam postos à disposição dos cristãos sinceros que ainda não conhecem a inteireza de sua mensagem.
Como não podia deixar de ser, essas energias afetaram de forma positiva a vida espiritual do planeta. As estruturas religiosas foram induzidas a alargar seus horizontes para abranger outros grupos e outras etnias. Em virtude da invasão chinesa, que forçou um êxodo de grandes proporções da comunidade monástica tibetana, o budismo tibetano passou a ser conhecido e praticado por centenas de milhares de pessoas em quase todo mundo ocidental, quebrando um milênio de isolamento no Tibete. O sofrimento do povo tibetano foi transmutado em benefício dos buscadores da verdade em todo o mundo, com a tradução das obras dos mestres budistas daquele país e o estabelecimento de centros de ensino do Dharma em vários países do oriente e do ocidente.
Até a rígida e arcaica Igreja de Roma mostrou sinais de abertura. Atendendo aos clamores dos fiéis que há muito se sentiam alienados com os serviços religiosos em latim, uma drástica reforma litúrgica foi implementada, permitindo que a missa fosse conduzida na língua de cada povo e com maior participação dos fiéis. O sacerdote, que anteriormente oficiava boa parte da missa de costas para o público, passa agora a voltar-se de frente para os fiéis numa tentativa de quebrar barreiras e promover a comunicação.
Porém, a iniciativa conciliadora mais importante do Vaticano foi o movimento ecumênico. Depois de muitos séculos de disputas fratricidas a Igreja de Roma, numa demonstração saudável de humildade, tomou a iniciativa de promover o contato com grupos dissidentes dentro da grande tradição cristã, bem como com outras religiões. A mudança de atitude foi, em grande parte, motivada pelo relativo esvaziamento das igrejas católicas, face ao rápido crescimento das seitas protestantes e de outros movimentos, como o espiritismo e as religiões ou filosofias orientais. Esse processo ecumênico, ainda que tímido e cauteloso, em virtude dos ânimos acirrados por séculos de disputas, muitas vezes sangrentas, promove pontos de união e minimiza os de separação.
Esse ecumenismo tem-se mostrado, no entanto, eminentemente externo. Mais importante ainda, com imensas perspectivas de vir a provocar mudanças radicais, inclusive ao nível da espiritualidade das massas de fiéis em todo o mundo, seria um ecumenismo interior, entendido como uma abertura que leve em consideração todos os aspectos da natureza humana. Os cultos de praticamente todas as igrejas cristãs tradicionais, antes e depois da Reforma, baseiam-se num acirramento do aspecto emocional do homem. As liturgias, cânticos, romarias e atos devocionais baseiam-se numa fé emotiva e cega. A questão da verdadeira fé é de grande importância e será examinada posteriormente, pois ela é um dos instrumentos fundamentais do processo transformador da ioga cristã.
Mas a emoção é apenas um dos aspectos interiores do homem. O caminho que leva ao Reino dos Céus requer a integração de todos os aspectos do ser humano. Isso significa que a emotividade religiosa tem que abrir espaço para a razão, a fim de que as duas, emoção e razão, possam ser integradas e transcendidas, no seu devido tempo, pela intuição. Isso só ocorre quando o Cristo interior tem condições de despertar no âmago de nossos corações e, progressivamente, assenhorar-se do comando de nossas vidas. Esse processo de integração, ou ecumenismo interior, é a essência dos ensinamentos internos de Jesus.
Assim como o aumento da intensidade das energias espirituais neste século se fez sentir ao nível das idéias, dos movimentos e das instituições existentes, com mais razão ainda se fez sentir na alma das pessoas. Milhões de indivíduos em todo mundo passaram a sentir o chamado do alto. Esse chamado, sempre sutil, procura por diversos meios fazer com que o homem entenda que sua meta é o Reino e que, para atingi-la, torna-se necessário um progressivo desapego do mundo material. A forma como os homens geralmente sentem esse chamado é através da insatisfação com sua vida, mesmo quando estão aparentemente fazendo as coisas certas e vivendo uma vida ética. Essa divina insatisfação deslancha um processo de busca, que, inicialmente, é confuso, pois o homem não consegue identificar exatamente o que está procurando. Busca livros e outras formas de auto-ajuda, dentro e fora de sua tradição; procura ouvir todo tipo de palestra sobre temas espirituais, enfim; procura por todos os meios saciar sua terrível sede da verdade.
Muitos dos que batem às portas das igrejas voltam desapontados com o receituário prescrito pelos seus sacerdotes e pastores.
Podemos identificar três áreas principais de insatisfação com a ortodoxia: os dogmas, a conceituação do homem como pecador e de Deus como justiceiro e, finalmente, as práticas espirituais sugeridas.
Os dogmas de fé sempre constituíram-se em obstáculos para o crescente segmento pensante da cristandade. Enquanto o domínio da Igreja de Roma era total sobre seus fiéis, o medo era geralmente suficiente para manter os fiéis e até mesmo os intelectuais em linha. Porém, neste último século, com os grandes avanços na educação das massas e a liberdade de pensamento exercida sem as antigas inibições religiosas, o conflito entre dogma e razão vem levando um número crescente de cristãos a assumir uma posição de coerência com seus sentimentos mais íntimos. Infelizmente, isto tem também levado muitos a rechaçarem, juntamente com os dogmas, toda a doutrina cristã e os ensinamentos corretos da Igreja.
A segunda área de conflito com a doutrina ortodoxa já era sentida de forma latente há muitos séculos, como uma repulsa instintiva ao conceito do Deus justiceiro apresentado pelo Antigo Testamento, em sua interpretação literal, que foi encampado pela ortodoxia cristã. Conceber Deus como um Ser sujeito a ataques de fúria que precisam ser aplacados por diversas formas de sacrifícios e holocaustos fere a consciência daqueles que não se recusam a pensar e constitui-se numa verdadeira heresia. A máxima heresia nesse sentido é a proposição de que o Filho de Deus foi oferecido em sacrifício para propiciar o perdão de Deus pelos pecados dos homens, conhecida como doutrina da expiação vicária.
Felizmente, em nosso século, com os avanços da psicologia moderna e o entendimento do lado sombra do ser humano, o cristão começou a entender porque sempre se sentiu incomodado por sua caracterização como ‘vil pecador.’ Jung mostrou que as negatividades inerentes ao nosso processo de aprendizado terreno devem ser entendidas e superadas pela compreensão e amor e não pelo temor de um Deus implacável que castiga nossas falhas e fraquezas com os tormentos do fogo eterno.
Finalmente, muitos dos cristãos que ainda se mantêm fiéis à Igreja mostram seu descontentamento com as práticas espirituais tradicionais da ortodoxia e, em alguns casos, com o significado deturpado dado a elas. A missa, o terço, as romarias e as outras práticas disponíveis aos leigos contrastam com as práticas de outras tradições que, aos poucos, se tornaram conhecidas no Ocidente. Esse descontentamento não se restringe aos católicos mas é sentido, também pelos fiéis das seitas evangélicas e protestantes com sua conhecida inflexibilidade em questões doutrinárias.
Apesar de muita resistência interna, a poderosa energia crística atuando nesta época de transição parece ter rachado, em alguns lugares, a espessa muralha do conservadorismo. Assim, algumas aberturas, como o movimento carismático e os movimentos de jovens e de casais da igreja católica resultaram em entusiástica resposta dos leigos e de parte do clero. Também a divulgação, por iniciativa de alguns padres e monges, de certas práticas meditativas e contemplativas, parcialmente inspiradas nos modelos orientais, tiveram excelente acolhida. Porém, para a grande massa dos buscadores, a Igreja permaneceu uma instituição rígida, distante, indiferente e até mesmo alienada das necessidades espirituais de seus fiéis.
O resultado tem sido um progressivo desapontamento dos fiéis com a ortodoxia religiosa cristã e consequente êxodo para outros movimentos e tradições não cristãos ou fora dos cânones ortodoxos. Isso explica porque o espiritismo, o budismo, o hinduísmo, a ioga e outros movimentos religiosos e filosóficos no Brasil tiveram tão boa acolhida entre os cristãos insatisfeitos com a postura ortodoxa de sua tradição. Isso ocorre porque, nesses movimentos ou tradições, o buscador encontra práticas espirituais sólidas e doutrinas que não agridem a razão.
As tradições budista e da ioga têm exercido grande atração sobre os buscadores ocidentais. Ambas podem ser mais acertadamente consideradas como tradições filosóficas do que religiosas. Seus aspectos doutrinários são extremamente atraentes, englobando conceitos filosóficos e cosmológicos de abrangência e grandeza que fascinam os estudiosos livres de preconceitos. Porém, o ponto que exerce maior atração parece ser a prática espiritual dessas tradições voltadas para a libertação do sofrimento. Dentre essas práticas destaca-se a meditação, com todas suas modalidades e etapas.
Até mesmo alguns padres e monges cristãos, como Thomas Merton e William Johnston, depois de estudarem o budismo, procuraram introduzir suas práticas meditativas nos meios cristãos. Johnston, preocupado com o desinteresse crescente dos fieis pelas práticas devocionais tradicionais (rosário, via sacra e novenas), e verificando a firmeza milenar das práticas budistas, tal como observou no Japão, desabafa:
“A velha contemplação cristã destinava-se a uma elite – os franciscanos, os jesuítas, os dominicanos e as pessoas de bem. Mas o pobre leigo, o cidadão de segunda classe, ficava com as contas de seu rosário. De ora em diante, não é preciso que seja assim.
Assim como a liturgia ampliou-se para abranger a todos, também o mesmo pode dar-se com a contemplação. O muro infame que separava o cristianismo popular do cristianismo monástico pode ser derrubado de forma a que todos possamos ter as nossas visões, alcançar o nosso samadhi.”
A diferença radical de enfoque para a vida espiritual entre a tradição budista e a cristã pode ser aquilatada pela maneira como caracterizam seus membros. Os budistas geralmente se auto denominam “praticantes,” no sentido de serem praticantes do dharma, do corpo de ensinamentos do Senhor Buda. Os cristãos, por sua vez, são normalmente caracterizados como “fieis,” refletindo o fato de serem supostamente fieis à sua crença no corpo doutrinário da Igreja. Enquanto uns praticam os ensinamentos de seu mestre, outros simplesmente crêem passivamente nos dogmas de sua crença, desconhecendo, em geral, os ensinamentos de seu Salvador.
Dentro desse contexto de crescente insatisfação com as práticas cristãs ortodoxas e a constatação de que existem alternativas atraentes nas outras tradições, a apresentação das doutrinas e práticas espirituais do lado interno da tradição cristã assume especial importância. Felizmente, quando conseguimos desvelar os ensinamentos esotéricos de Jesus, verificamos que as práticas do cristianismo primitivo nada deixam a desejar às outras tradições orientais tão em voga atualmente. Este livro vem juntar-se a uma crescente literatura sobre o cristianismo primitivo e os aspectos esotéricos da tradição cristã, enfatizando os métodos e práticas espirituais voltados para a transformação interior, tão escondidos no passado.
Esses antigos ensinamentos abrangentes, profundos e eternamente atuais, levaram Agostinho, reputado como um dos baluartes da Igreja, a escrever há quinze séculos atrás:
“Esta que hoje chamamos de religião cristã existiu entre os antigos e existia desde o começo da raça humana até que o Cristo se fez carne, tempo a partir do qual a verdadeira religião já existente começou a ser denominada de Cristianismo.”
A postura necessária para o estudo dos ensinamentos esotéricos
Se por um lado existe uma natural curiosidade por parte de todo cristão em conhecer os ensinamentos internos de sua tradição, devemos estar preparados para o fato de que esses ensinamentos nem sempre estarão de acordo com nossas idéias tradicionais.
Na verdade, parte dos conceitos ortodoxos deverão ser modificados e, em alguns casos, até mesmo abandonados, à medida que adquirimos um entendimento mais sólido do lado esotérico dos ensinamentos de Jesus. Esse é o processo natural de amadurecimento de todo indivíduo. As noções que governam a atitude das crianças em seus primeiros anos de interação com o mundo exterior, dão geralmente lugar a conceitos mais abrangentes e complexos quando o jovem adulto está suficientemente amadurecido em sua capacidade intelectual e emocional.
Um processo semelhante ocorre em nossa vida espiritual. Para que o devoto possa crescer espiritualmente, ele deve aprender a entender o sentido esotérico subjacente às doutrinas anteriormente aceitas literalmente como dogmas de fé. Um dos principais objetivos deste livro é desvelar os ensinamentos escondidos por trás do simbolismo da Bíblia e de outras fontes de nossa tradição.
Nessa busca, o leitor deve estar disposto a investigar a simbologia bíblica. Essa disposição implica numa atitude de flexibilidade e tolerância para com idéias e argumentos diferentes dos aceitos até então. O verdadeiro estudioso deve submeter todo conceito e argumento, tanto tradicional como não-ortodoxo, ao crivo da razão e, a seguir, à avaliação do coração. O devoto que adotar essa postura espiritualmente sadia estará chamando em seu auxílio o Cristo interior, que derramará suas bênçãos na forma de inspiração para a compreensão mais profunda das verdades transformadoras de nossa tradição. Com isso ele sentirá uma profunda alegria ao efetuar uma leitura crítica, que lhe permitirá construir paulatinamente, e de forma consciente, o arcabouço doutrinário e prático de sua transformação espiritual.
Isso significa que o leitor deve adotar a postura do cientista que, ao iniciar um novo projeto de pesquisa, adota uma série de hipóteses de trabalho, que serão investigadas e testadas. Caso essas hipóteses facilitem o avanço da pesquisa e sejam confirmadas por testes posteriores, então, e só então, poderão ser promovidas de hipóteses a premissas para a implementação da parte prática que permitirá a conclusão do trabalho.
Essa atitude “científica”, apesar de atraente e lógica, é difícil de ser adotada na prática. Todos nós interagimos com o mundo a partir de um grande número de condicionamentos, a maior parte dos quais inconscientes. Nossa mente racional pode estar disposta a considerar uma determinada linha de raciocínio, porém, nossos sentimentos, que são governados pelo inconsciente, usurpam muitas vezes a atribuição da razão e rejeitam os argumentos lógicos tão logo percebem que esses podem ameaçar a segurança de nossa estrutura de valores. Isso explica a natureza intrinsecamente conservadora de todo ser humano. Resistimos à mudança porque toda mudança implica numa revolução interior que demanda um compromisso inabalável com a verdade. Esse compromisso implica em humildade para aceitar a possibilidade de que alguns de nossos mais estimados conceitos foram construídos sobre a areia e, finalmente, uma coragem extraordinária para enfrentar a resistência inicial de nosso ego orgulhoso e inseguro.
Os meandros da mente são muitas vezes desconcertantes para o iniciante. Um profundo estudioso da matéria escreveu: “A mente formal assemelha-se a um ditador de um estado autoritário. Tal dirigente não pode, não ousa, tolerar qualquer interferência de outros no seu despotismo ou sugestão de controle sobre ele, porque se isso prosperasse a sua ditadura eventualmente terminaria.
No que concerne à manutenção de seu sistema e ao controle das mentes cegas de seus membros, a ortodoxia religiosa estreita e defensiva está precisamente na mesma posição. Todo dogmatismo em assuntos religiosos surge do medo e desse impulso para o poder e sua preservação.”
Para o estudante de esoterismo, toda e qualquer proposição doutrinária ou filosófica deve ser tomada como hipótese de trabalho da mente concreta, até que ele alcance o estado místico que lhe permita conhecer diretamente a verdade. Quando em profunda contemplação ele passar a comungar com a Luz, então, e só então, poderá saber com toda certeza as verdades que transcendem a mente intelectiva e que pertencem ao âmbito do que chamamos de intuição (buddhi, em sânscrito). É esse conhecimento que os antigos chamavam de gnosis, o conhecimento direto da verdade que é alcançado com a iluminação, e que gera uma fé inabalável.
Assim sendo, as considerações doutrinárias e de ordem filosófica neste livro devem ser consideradas como de importância secundária. O importante são os ensinamentos transformadores, que poderíamos chamar de metodologia para a transformação do homem velho no homem novo. Quando tivermos nascido de novo, iluminados pelo Cristo interior, estaremos capacitados a reavaliar nossas premissas anteriores para, então, estabelecer nossa fundamentação filosófica com base na Verdade e não mais em hipóteses.
O objetivo primordial deste livro é oferecer ao cristão dedicado essa metodologia transformadora que, se devidamente utilizada, pode levar o devoto ao estado experimentado pelo Apóstolo Paulo quando disse “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2:20). Todas as considerações filosóficas ou doutrinárias do livro devem ser consideradas como meras hipóteses, servindo como elementos auxiliares no desenvolvimento de uma estrutura referencial que acreditamos ser lógica e sequenciada. O estudante que estabelecer como meta a sua transformação interior, não se deixando limitar ou intimidar por argumentos filosóficos ou teológicos, poderá deixar para mais tarde as decisões doutrinárias, quando estiver capacitado pela iluminação transformadora a pronunciar-se sobre esses pontos de forma definitiva. O Mestre deve ter tido isso em mente quando nos disse: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8:32).
Apresentamos a seguir as principais hipóteses que foram usadas para nortear o trabalho. Estas hipóteses serão examinadas com mais detalhes ao longo do texto.
1. O objetivo de todo ministério de Jesus foi alertar a humanidade para a realidade do Reino e ensinar os homens como alcançá-lo, retornando à Casa do Pai.
2. Para chegar ao Reino, ou seja, para alcançar a perfeição, o homem deve encontrar e trilhar o Caminho ao longo de todas as suas etapas.
3. A maioria das pessoas ainda não despertou para a realidade do Caminho, pois estão mergulhadas na vida material e sensual, sem o menor interesse pela vida espiritual.
4. O Caminho tem três grandes etapas, que poderiam ser chamadas de religiosa, espiritual e mística. Essas etapas têm um estreito paralelo com as três grandes fases da vida do homem: infância, vida adulta e maturidade. Nem todos os homens chegam a última etapa em sua plenitude, envelhecendo sem tornarem-se sábios, muitos agindo como crianças em idade avançada.
5. Na infância a criança deve ser conduzida e protegida por seus pais e tutores, enquanto está sendo preparada para enfrentar a vida adulta por seus próprios meios. Nessa etapa a criança caracteriza-se por sua relativa subserviência, passividade e crença no poder e sabedoria de seus mentores, valendo-se principalmente da emoção como instrumento de resposta ao mundo. O caminho religioso tradicional equivale à infância da humanidade, em que os fieis são conduzidos pelos sacerdotes, como representantes do Pai Celestial e da Madre Igreja, crendo em dogmas e obedecendo os mandamentos e regras estabelecidos. As práticas religiosas são fundamentadas essencialmente no aspecto emotivo da natureza humana.
6. A transformação da criança em adulto ocorre na adolescência, um período caracterizado, entre outras coisas, pela rebeldia do jovem. Essa rebeldia, dentro de certos limites, é saudável, pois prepara o jovem para pensar e agir por conta própria, usando a razão e desenvolvendo o discernimento. Um período de transição semelhante também ocorre com o devoto que começa e sentir-se insatisfeito com a vida emocionalmente protegida dentro de sua religião. Ele começa a se rebelar contra a doutrina estabelecida e a obediência às regras e à autoridade religiosa constituída. Esse período é extremamente penoso e eivado de contradições, mas é essencial para a entrada na próxima etapa do Caminho. É caracterizado por uma insatisfação essencial que leva à busca da verdade.
7. A etapa intermediária do Caminho, que chamamos de vida espiritual, equivale a vida do adulto. Nela o buscador deve assumir a responsabilidade por sua vida e procurar viver de acordo com a mais alta ética que seu discernimento lhe dirá ser apropriada para uma vida responsável, harmônica e construtiva dentro da família humana. O aspecto mais importante dessa fase é a constante preocupação com o crescimento espiritual da pessoa, que deverá efetuar diversas mudanças em sua atitude e seu comportamento, para purificar-se e chegar cada vez mais perto da meta.
8. Ao desenvolver um ego forte, lúcido e crítico o homem maduro chegará um dia ao último estágio do Caminho, a etapa mística. Essa etapa também corresponde, de certa forma, ao caminho ocultista, que será descrito mais adiante. O místico é o buscador espiritual que, tendo feito tudo o que podia para a sua autotransformação, reconhece que os esforços do ego não são suficientes para alcançar a meta suprema, o que só pode ser feito com a ajuda do Alto. A Graça Divina não pode ser forçada, mas o terreno para que ela seja concedida pode e deve ser devidamente preparado por uma vida de purificação, meditação e serviço. O místico procura subordinar seu ego desenvolvido para fazer a vontade de Deus e não mais a sua.
9. No Caminho ocorre um drástico afunilamento de uma etapa para a outra, como havia sido indicado por Jesus que “muitos são chamados, mas poucos escolhidos” (Mt 22:14) e também que “escolherei dentre vós, um entre mil e dois entre dez mil” (Evangelho de Tomé, versículo 23). (11) Portanto, não é de se estranhar que as instruções esotéricas de Jesus eram dirigidas “aos poucos”, enquanto seu ministério público era voltado para “os muitos.” Da mesma forma, dentre os milhares de buscadores que se dedicam a vida espiritual, são poucos os que alcançam as realizações místicas avançadas associadas ao Reino dos Céus.
10. O ministério de Jesus cobriu as três etapas do Caminho. O ensinamento aberto ao povo, mais tarde acrescido das doutrinas e dogmas estabelecidos pela Igreja, visava atender a primeira etapa de desenvolvimento do homem. Seus ensinamentos esotéricos, velados nas parábolas e ministrados diretamente a seus discípulos, tinham por objetivo guiar o homem ao longo da segunda etapa de busca espiritual. Seu método de ensino, incluindo a crítica à sabedoria convencional, ou seja, à religião ortodoxa dos judeus de sua época (que será examinado, em especial, nos capítulos 4 e 10), visava estimular a razão, o discernimento e o senso de responsabilidade do homem em busca do Reino. Esses ensinamentos e, principalmente, os mistérios ou sacramentos que Jesus ministrava aos poucos que estavam preparados para eles, visavam levar o homem à última etapa, a vida unitiva do caminho místico. Nessa etapa o homem aprende que deve morrer para o mundo para alcançar o Reino, ou seja, entregar-se inteiramente a Deus para alcançar a Salvação.
Observamos que o Caminho, como tudo na vida, apresenta uma periódica alternância de ciclos. Na primeira etapa a criança tem uma atitude passiva para com a vida, aceitando a orientação de seus superiores. O adulto, ao contrário, para ser bem sucedido, deve assumir uma atitude ativa, buscando sua liberdade para decidir sobre o que julga ser melhor para seus interesses. Na última etapa, o futuro sábio deve mais uma vez retornar à passividade, aguardando com paciência, humildade e perseverança a chegada da Graça, que trará a iluminação.
A classificação das três etapas do Caminho como religiosa, espiritual e mística deve ser entendida como indicativa de características básicas do comportamento e atitude dos indivíduos. Para evitar controvérsias semânticas, deve ficar claro que um indivíduo na etapa espiritual ou até mesmo na via mística pode se considerar corretamente como sendo religioso, cristão ou católico. A religião em seu sentido mais amplo deve acomodar almas em todos os estados evolutivos, da mesma forma como o Reino do Pai, que tem muitas moradas.
Esta obra foi dividida em sete partes. Na primeira, procuramos identificar o estado atual da vida espiritual do cristão comum, alheio aos ensinamentos internos de Jesus, e indicar porque o momento presente é especialmente propício para resgatar esses ensinamentos, confirmando as palavras do Mestre de que “nada há de oculto que não venha a ser manifesto, e nada em segredo que não venha à luz do dia” (Mc 4:22).
A segunda parte estabelece a definição de ‘tradição interna’, determina as fontes primárias e secundárias dessa tradição e as formas para termos acesso ao seu material. A importância da interpretação do material bíblico é ressaltada.
O significado da meta suprema apontada por Jesus, o Reino dos Céus, é o objeto da terceira parte. Contrastando com o conceito de ‘Reino’ na tradição judaica e como ele foi interpretado pelas igrejas ortodoxas, é sugerido que o Reino dos Céus não é um lugar no tempo e no espaço, e que não é atingido somente após a morte, mas que é um estado de espírito que pode e deve ser alcançado aqui e agora. Ao contrário do que muitos crêem, só aqueles que alcançam o Reino enquanto encarnados podem gozar da bem-aventurança celestial após a morte.
A quarta parte é a descrição do processo de retorno à Casa do Pai, a nossa meta, sendo a Parábola do Filho Pródigo um exemplo de como a interpretação de um mito ou alegoria pode proporcionar a chave para o entendimento dos ensinamentos ocultos de Jesus. Dois outros mitos cosmogônicos ainda mais abrangentes e profundos do que aquela parábola, conhecidos como o Hino da Pérola e o mito de Pistis Sophia, são apresentados em anexo, oferecendo outras fontes para o mesmo ensinamento. Como o objetivo do trabalho não é meramente acadêmico, as questões práticas relacionadas com o método e o instrumental transformador legado pela nossa tradição são enfatizadas, ocupando a maior parte do livro.
A quinta parte aborda o método para alcançar o Reino dos Céus, que foi descrito por Jesus como a Porta Estreita e o Caminho Apertado. Em sua essência, o método poderia ser resumido no que a ortodoxia chamou de ‘arrependimento’, mas que no original grego era metanoia, que tinha um significado bem mais amplo, que era o de mudança dos estados mentais que levam à mudança de consciência pela superação dos condicionamentos e da ignorância anterior. Esse conceito é basicamente psicológico e oferece um paralelo com o enfoque da tradição budista de transformação da mente. Ainda nesta parte são abordados os primeiros passos no caminho espiritual, incluindo o despertar para a realidade última da vida, a eterna busca da felicidade e o papel da aspiração ardente. Finalmente, são examinadas as regras do caminho espiritual, a fundação da verdadeira fé. Dentre essas regras são discutidas a unidade de todas as coisas, a natureza cíclica da manifestação, o objetivo do processo de manifestação, o papel do livre arbítrio e da lei de causa e efeito e a importância do conhecimento de si mesmo.
O instrumental transformador de nossa tradição é tão rico e efetivo como o das tradições orientais. Esse instrumental, que se constitui verdadeiramente nas chaves do Reino dos Céus, é examinado na sexta parte. Assim como a Bíblia nos fala dos doze apóstolos de Jesus, a tradição interna legou-nos doze instrumentos transformadores. Os seis primeiros servem como fundação para o processo transformador, promovendo o que os místicos chamam de via negativa ou purgativa e os cristãos primitivos de kenosis, ou esvaziamento que prepara a alma para receber a Graça suprema do Espírito. Esses seis primeiros instrumentos fundamentais são a fé, o amor a Deus, a vontade, a purificação, a renúncia e o discernimento. Os outros seis instrumentos são de natureza mais operativa. São eles: estudo, oração e meditação, lembrança de Deus, atenção, rituais e sacramentos e, finalmente, a prática das virtudes.
A sétima e última parte do livro examina algumas questões de interesse para aqueles que começam a trilhar o caminho. Dentre elas destacam-se a integração entre a natureza superior e a inferior do homem, semelhante ao processo de individuação descrito por Jung, como necessária para que ocorra o verdadeiro crescimento espiritual. Verifica-se que o amor e a verdade são os elementos integradores mais importantes no processo. De interesse especial para o devoto são os indícios de que a transformação está ocorrendo e está levando-o progressivamente à união com o Supremo Bem, a meta de todo esforço.
Um fato de especial interesse para o devoto é que a vida do Cristo, pode ser vista como uma alegoria do caminho acelerado, em que os marcos de seu nascimento, batismo, transfiguração, morte e ressurreição e, finalmente, a ascensão representam as cinco grandes iniciações. [...]
Prof. Raul Branco
(Membro da Sociedade Teosófica - Loja Brasília)
Fonte: Apresentação e esboço do livro "Os Ensinamentos de Jesus e a Tradição Esotérica Cristã" - Via GnosisOnline - http://www.gnosisonline.org/
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal