“A saída de Judas revela que seu gênio bom, seu verdadeiro Eu, o abandonou; Judas realmente encontra, lá fora, o Anjo da Morte. Espíritos arimânicos* o transformam em seu instrumento. A saída do Cristo é imagem do livre derramamento da alma que, desde a origem, foi portadora, no cosmos, da ideia de sacrifício.”
Duas vezes por ano, uma quinta-feira se destaca com uma luz singularmente festiva no decurso do ano: o dia que precede a sexta-feira santa e o dia da Ascensão. Embora pertencente à semana mais séria do ano, a quinta-feira santa se relaciona misteriosamente com a outra quinta-feira, seis semanas mais tarde, quando toda a natureza primaveril já se desenvolveu em luz e perfume emitidos pelas flores. Não seria a quinta-feira santa ocultamente uma segunda véspera de Natal? Sua luz misteriosa é a do crepúsculo que precede as trevas da sexta-feira santa, mas é também, mais ainda, a aurora da Páscoa.
Após ultrapassarmos o meio da semana santa, após os três primeiros dias repletos com a ruidosa e dramática luta com o ambiente, incompatível com o Cristo, desce o silêncio. Na noite da quinta-feira santa penetramos na esfera do silêncio sagrado. De repente, o barulho cede ao silêncio. De dia, os ruídos do povo em movimento nas ruas, milhares de peregrinos a comprar e a discutir atingiram seu auge.
Depois, pouco antes do ocaso do sol, esfera purpúrea, e enquanto nascia do outro lado, a enorme lua cheia prateada, as trombetas do templo deram o sinal para o início dos preparativos. Inicia-se a noite do Pessach durante a qual os fiéis da Velha Liga se preparam para o sábado de Pessach que se iniciará na noite seguinte. Cessa o barulho retumbante. Nas casas logo se reúnem os parentes ao redor das mesas a fim de comerem o cordeiro pascal. As ruas ficam subitamente vazias. Desce um silêncio oprimente. É a magia da noite de Pessach, na qual circula, como outrora no Egito, o Anjo Exterminador.
Jesus com seus discípulos também se retira para a sala onde terão a ceia do Pessach. Os destinos querem que o silêncio desta sala seja múltiplo, já que ela se encontra em uma casa que não é uma habitação privada, mas serve de convento a um círculo sagrado dos esseus. A ordem dos esseus tem aí sua sede em local sagrado e antiquíssimo, no Monte Sion, onde há milênios, antes da história da Velha Liga ter o seu centro neste lugar, já existia um antiquíssimo santuário da humanidade. Em local muito antigo e sagrado encontra-se o cenáculo que os irmãos esseus deixam à disposição de Jesus e seus discípulos para a véspera do Pessach.
Diretamente em frente, também em uma localização tradicional e antiquíssima, encontra-se a casa de Kaifas, casa-matriz da ordem dos saduceus. Lá também se reúne um grupo para comemorar o Pessach. São os inimigos cheios de ódio, quase incapazes de pensar na festa vindoura, pois estão sendo movidos por um plano de ódio e inimizade. Forçosamente, a luta está suspensa.
É preciso aguardar até depois da hora sagrada. E os inimigos, eles próprios ordenam: "Procurem agarrá-lo, mas não antes da festa." Na sala onde estão reunidos Jesus e seus discípulos, cumpre-se o 23° salmo: “Preparas diante de mim uma mesa, à vista de meus inimigos”. Desceu o silêncio, é verdade, mas a fatalidade sombria da noite de Pessach se incorpora nos espectros noturnos daqueles outros comensais, na casa vizinha.
O que há sobre a mesa ao redor da qual se instalaram Jesus e os discípulos? Este grupo também obedece à velha lei e cumpre a tradição. Foi preparado o cordeiro pascal. Jesus se prepara com os discípulos a comê-lo, recordando devotamente o sacrifício do cordeiro que, na época de Moisés, fora o sinal pelo qual o povo judeu foi libertado da escravidão.
Mas o cordeiro pascal na mesa deste Cenáculo adquire um sentido modificado. À mesa está sentado aquele do qual João Batista pode dizer: “Eis o cordeiro de Deus, que assume (carrega) os pecados do mundo”. Em nenhum outro lugar àquela hora, nem antes, nem depois, o cordeiro pascal esteve tão próximo daquele que simboliza. Através de milênios a ceia do cordeiro pascal foi um costume profético. Agora, eis que a profecia se cumpre, logo o apóstolo Paulo poderá dizer: “Nós também temos um cordeiro pascal. É o Cristo que se sacrifica por nós!” (1º Cor. 5,7). No Cenáculo encontram-se a profecia e seu cumprimento. A sala está cheia de pesado pressentimento. Pesam no ar a separação e a tragédia. O sacrifício do Cristo já lança antecipadamente sua sombra. O consciente dos discípulos passa por uma dura prova.
Através do cordeiro pascal sobre a mesa, esta cena inclui a reminiscência dos antigos sacrifícios sangrentos; atua a magia do sangue, que é o sentido de todos os sacrifícios sangrentos da época pré-cristã. O sentido dos antigos sacrifícios residia no seguinte fato: o fluxo do sangue fresco de animais sacrificiais puros possuía a força de induzir as almas humanas – ainda não tão ligadas ao corpo – em alienação extática, de modo que forças divinas do além podiam refletir-se nas condições humanas.
No Cenáculo do Monte Sion o velho sacrifício perde definitivamente o seu sentido. Agora, o mais alto ser divino veio, ele próprio, do além para a Terra. O cordeiro perde seu significado próprio e passa a ser apenas a imagem, o reflexo do mistério do Cristo presente. O antigo sacrifício sangrento torna-se definitivamente supérfluo. A força que antigamente se tentava – cada vez com menor sucesso – atrair do além pelo sacrifício do sangue, está presente agora para se ligar inseparavelmente com o mundo terreno. O cordeiro pascal não pode mais ser um meio mágico, pois na própria existência terrena forma-se um núcleo de germinação e brotação de forças celestes. O cordeiro se transforma em puro símbolo do amor divino que se sacrifica.
Na mesa da Santa Ceia não vemos, entretanto, apenas o cordeiro pascal. Há também, incidentalmente, pão e vinho. E, após cumprirem a velha tradição da ceia do Pessach, os discípulos se admiram ao verem o Cristo tomar em mãos os símbolos, presentes por acaso, do comer e beber e adicionar à ceia do Velho Testamento uma nova refeição. Algo de totalmente novo, inesperado, acontece quando ele oferece aos discípulos o pão e o vinho, dizendo: “Tomai, pois este é meu corpo e este é meu sangue”. Em realidade, estes símbolos não estão na mesa por acaso. Da penumbra de mistérios ocultos surge à luz aquilo que sempre já existira na humanidade. No exterior dos velhos templos havia sacrifícios sangrentos oferecidos em presença do povo; do mesmo modo, ao abrigo esotérico de certos santuários que cultivavam os mistérios solares, sempre houve pão e vinho como os verdadeiros símbolos do deus do sol. No mesmo local onde o grupo está agora reunido para a ceia, dois mil anos antes, nas grutas rochosas onde estavam agora sepultados os Reis e Davi, existira o santuário de Melquisedeque, o supremo iniciado solar. Melquisedeque levara pão e vinho para oferecê-los, no Vale do Kidron, a Abraão, que regressava vitorioso.
Mas pão e vinho jamais puderam representar, mesmo nos templos dos mistérios pré-históricos, a função que adquirem neste momento. Sempre foram apenas símbolos do deus do sol que os veneradores tinham que procurar em outras esferas. Agora, no entanto, são mais do que símbolos. No Cristo está presente o próprio alto espírito solar, e ele pode dizer, ao oferecer o pão: “Este é meu corpo” e, ao oferecer o cálice: “Este é meu sangue”. Sua alma, ao oferecer-se, penetra no pão e no vinho. Pão e vinho se iluminam na semi-escuridão. São envolvidos em um brilho dourado, em uma luminosa aura solar, ao se transformarem no corpo e no sangue do próprio espírito do sol. Todos os mistérios solares da pré-história foram apenas profecias. Neste momento estão sendo cumpridas. Na passagem dos sacrifícios sangrentos da pré-história para o sacrifício sem sangue do pão e do vinho ocorre, para toda a humanidade, a decisiva interiorização da ideia de sacrifício: todos os sacrifícios antigos eram materiais, agora está fundado o sacrifício da alma. Inicia-se na prática do sacrifício um fluxo de verdadeira interiorização. São despedidos os sacrifícios lunares da pré-história e substituídos pelo sacrifício solar. O Cristianismo, verdadeira religião solar, encontra nesta noite sua aurora.
O Cristo não apenas liga a velha ceia à nova; antes e depois da ceia executa atos importantes, de modo que surge um todo de quatro partes. Pela primeira vez reluz a lei que, doravante, será sempre renovada e revelada nas quatro partes do sacramento cristão central. Antes de comer o cordeiro pascal, Jesus pratica o ato do amor simples, inesgotável e indescritível do lava-pés. Obedecendo e elevando um rito comum na ordem dos esseus, ele se abaixa e lava os pés de cada discípulo, inclusive de Judas. Surge uma imagem comovente daquilo que de fato está ocorrendo: o Cristo se dá aos seus, totalmente, com amor. A morte na cruz selará essa dedicação.
Tal como introduziu as duas ceias com o lava-pés, assim também as encerra. Acompanhando o costume praticado nesta hora em todas as casas, segundo o qual, terminada a refeição do Pessach, os pais de família liam ou recitavam a Hagadah, a tradicional história do povo sob forma de lendas, o Cristo também faz seguir-se à ceia um ensinamento. Temos no evangelho de João a mais maravilhosa reprodução de suas palavras de despedida, que culminam com a oração.
São quatro as etapas atravessadas: lava-pés, cordeiro pascal, pão e vinho e discursos de despedida. Ao lavar Jesus os pés dos discípulos, estes parecem já experimentar a mais íntima comunhão das suas almas com a alma de Cristo. Mas, em realidade, o lava-pés nada mais é do que o último resumo simbólico de todos os ensinamentos que Cristo deu a seus discípulos. Por isso, ele lhes diz: “Dou-vos uma nova lei: amai-vos uns aos outros.” O lava-pés é, de certo modo, a ultima parábola aos discípulos, parábola que já não foi falada, mas praticada. O amor é a meta final da doutrina que o Cristo lega aos discípulos.
Após a leitura do Evangelho, feita em total devoção de alma, comer o cordeiro pascal é a etapa do ofertório. Surge a imagem do sacrifício: Cristo – o cordeiro sacrifical que morrerá na cruz no dia seguinte pela humanidade.
Segue-se a terceira etapa: Cristo oferece aos discípulos pão e vinho. Pela primeira vez realiza-se então o mistério da transubstanciação, terceira parte do sacramento, após a leitura do Evangelho e o ofertório. O celeste trans penetra o terreno, o espiritual reluz na matéria. Como uma estrela fulgurante revela-se o sol da transubstanciação que, mais tarde, atingirá seu pleno brilho.
Na quarta parte, nos discursos de despedida, parece que o Cristo dá aos discípulos apenas ensinamentos e instruções para seus caminhos. Em realidade, no entanto, ele se transmite a si mesmo da mais íntima maneira possível. Estas palavras, que captam o eco espiritual da Santa Ceia são, mais ainda do que pão e vinho, corpo e sangue do Cristo. Nelas, a alma do Cristo se oferece a mais íntima comunhão e reunião com as almas dos discípulos. Mas os discípulos só ouvem estas palavras como em sonho. Só há um deles, João, próximo ao coração de Jesus, capaz de ouvir o que fala o coração de Cristo e, por isso mesmo, capaz de preservar para a humanidade, em seu evangelho, uma replica desse momento.
O grande sacramento, de quatro partes, dessa hora, está repleto do amor cósmico que se difunde, que jorra do coração do Cristo. A plenitude da palavra do Cristo forma o final, nos discursos de despedida, e este fato abre uma porta luminosa para o futuro da humanidade. O Cristo do qual parte o fluxo de amor cósmico fala, ao mesmo tempo, como alto espírito da Sabedoria. É como se Júpiter, deus da sabedoria, reaparecesse entre os homens sob uma forma nova.
O santo grupo de comensais é dissolvido de modo dramático. O costume do Pessach e a rigorosa lei proibiam que se saísse à rua nesta noite. Quem o fizesse encontraria o Anjo Exterminador. As ruas ficavam vazias. Não obstante, em determinado momento, vemos alguém sair; nada o reteve após ter recebido sua parte da refeição da mão de Jesus. O evangelho de João adiciona: “era noite”. Em seu interior também reinava a noite; Satanás penetrou nele nesse instante. Judas vai à casa em frente, onde o círculo de Kaifás também cumpre o rito da ceia pascal, mas estão ansiosamente dispostos para as negociações que Judas pretende fazer com eles.
Judas falhou diante do mistério do sacramento. Já na véspera fora tomado pelo demônio da inquietação quando na casa em Bethânia espalhou-se o ambiente sacramental. No cenáculo deparou-se pela segunda vez com a substância do sacramento. Não tem em si a quietude que lhe permitiria aceitar a paz como bênção do sacramento. E, portanto, aquilo que poderia oferecer-lhe paz o precipita no mais alto grau da ausência da paz, na perda arimânica do Eu, na alienação possessa.
Mais uma vez é rompida a proibição do Pessach. Assustando os discípulos, Jesus se ergue e lhes faz sinal para segui-lo. Saem para a noite escura. A luz clara da lua se apagara quase totalmente. Houvera um eclipse. A lua no céu parecia uma esfera cor de sangue. As rajadas frias que acompanham a despedida do inverno começam a soprar quando Jesus chega com seus discípulos a Getsemane.
A dupla saída é imagem de processos interiores. A saída de Judas revela que seu gênio bom, seu verdadeiro Eu, o abandonou; Judas realmente encontra, lá fora, o Anjo da Morte. Espíritos arimânicos o transformam em seu instrumento. A saída do Cristo é imagem do livre derramamento da alma que, desde a origem, foi portadora, no cosmos, da ideia de sacrifício (ofertório). Quando Judas sai, a escritura diz “era noite”. É noite também na alma de Judas. Quando sai o Cristo, podemos dizer “era dia”. Um fulgor dourado se mistura à noite tenebrosa. Um mistério solar envolve o Cristo quando ele desce com os discípulos pelo mesmo caminho pelo qual Melquisedeque, dois mil anos antes, levara pão e vinho. Um sol brilha em plena noite. Por isso pode acontecer mais tarde que o Cristo subjuga o Anjo Exterminador em Getsemane.
A luz solar que os homens viram brilhar no ser do Cristo no domingo de Ramos já penetrou em camadas muito mais profundas. Ninguém o percebe. Não obstante, o mundo recebe uma nova luz nesta noite santa, que mais é uma véspera da Páscoa do que véspera de sexta-feira da Paixão. No dia da Ascensão, outra quinta-feira, seis semanas mais tarde, o germe de luz cujo crescimento começa no cenáculo já terá adquirido onipresença terrena e força cósmica.
Emil Bock
* Arimã ou Arimane é um arquétipo mitológico semelhante ao Satã judaico-cristão. Arimã representa o lado negro da alma de todos os homens, o ego que os guia a prazeres fúteis e os afasta de tudo o que é bom. Arimã era um deus do zoroastrismo da religião persa, e ele era o deus do mal ao contrário do ahura mazda. (Wikipedia)
Fonte do Texto e da Gravura:
Biblioteca Virtual da Antroposofia
http://www.antroposofy.com.br