sábado, 18 de maio de 2013

VAZIO


Vazio é uma modalidade de percepção, uma maneira de encarar as experiências. Ela não adiciona nada e não retira nada dos dados brutos dos eventos físicos e mentais. Você vê os eventos na mente e nos sentidos sem qualquer pensamento quanto à existência de algo por detrás deles.

Essa modalidade é chamada de vazio porque ela é desprovida das pressuposições que normalmente adicionamos às experiências para que elas façam sentido: as estórias e ideias sobre o mundo que criamos para explicar quem somos e o mundo no qual vivemos. Embora essas estórias e ideias tenham utilidade, o Buda descobriu que algumas questões mais abstratas que surgem em decorrência delas - sobre a nossa verdadeira identidade e a realidade do mundo exterior - desviam a nossa atenção da experiência direta de como os eventos influenciam uns aos outros no momento presente. Dessa forma, elas nos atrapalham quando tentamos entender e solucionar o problema do sofrimento.

Digamos por exemplo, que você esteja meditando e apareça uma sensação de raiva em relação à sua mãe. Imediatamente, a reação da mente é de identificar a raiva como "minha" raiva, ou de dizer que "eu estou" com raiva. Em seguida você elabora sobre a sensação, quer seja procurando encaixá-la dentro do seu histórico de relacionamento com a sua mãe ou como parte das suas ideias gerais sobre quando e onde a raiva em relação às nossas mães podem ser justificadas. O problema com tudo isso, sob a perspectiva do Buda, é que essas estórias e ideias causam muito sofrimento. Quanto mais você se envolve nelas, mais você desvia a atenção de enxergar a verdadeira causa do sofrimento: os rótulos de "eu" e "meu" que colocam todo o processo em movimento. Como resultado, você não consegue encontrar a forma de desemaranhar a causa e dar um fim ao sofrimento.

Se, no entanto, você conseguir adotar a modalidade vazio - não agindo ou reagindo em relação à raiva, mas simplesmente observando-a como uma série de eventos em si mesmos - você verá que a raiva está vazia de qualquer coisa com a qual valha a pena se identificar ou possuir. A medida que você domine a modalidade vazio com mais consistência, verá que essa verdade não se aplica somente a emoções mais grosseiras como a raiva, mas também, até para os eventos mais sutis na esfera da experiência. Esse é o sentido de vazio em todas as coisas. Quando você enxergar isso, compreenderá que rótulos como "eu" e "meu" são inadequados, desnecessários e que causam nada além de estresse e sofrimento. Então você poderá abandoná-los. Quando você os abandonar completamente, descobrirá uma forma de experiência ainda mais profunda que é completamente livre.

Para obter domínio sobre a modalidade vazio de percepção é necessário treinamento em sólida virtude, concentração e sabedoria. Sem esse treinamento, a mente tende a ficar na modalidade que cria estórias e ideias sobre o mundo. E sob a perspectiva dessa modalidade, o ensinamento sobre o vazio soa simplesmente como mais uma estória ou ideia sobre o mundo, com novas regras. Em relação à estória do seu relacionamento com a sua mãe, parece estar dizendo que na verdade não existe uma mãe, nem você. Em relação às suas ideias sobre o mundo, parece estar dizendo que, ou o mundo na verdade não existe, ou que o vazio é o grande fundamento não diferenciado dos seres, do qual todos viemos e para o qual algum dia todos retornaremos.

Essas interpretações não somente não atingem o significado de vazio como também evitam que a mente adote a modalidade adequada. Se o mundo e as pessoas na estória da sua vida realmente não existem, então todas as ações e reações nessa estória são como uma matemática de zeros e você irá se perguntar se existe alguma razão para a prática da virtude. Se, por outro lado, você vê o vazio como o grande fundamento não diferenciado dos seres para o qual todos iremos retornar, então qual é a necessidade para o treinamento da mente em concentração e sabedoria, já que todos chegaremos lá de todo jeito? E mesmo se precisarmos de treinamento para regressar ao nosso fundamento dos seres, o que irá evitar que escapemos dele e soframos novamente? Portanto, em todas essas alternativas a ideia de treinar a mente parece ser fútil e sem sentido. Ao focarmos na questão de se realmente existe ou não algo por detrás das experiências, a mente fica tomada por assuntos que impedem-na de penetrar na modalidade do momento presente.

Agora, as estórias e ideias sobre o mundo têm sua utilidade. O Buda as empregou para ensinar as pessoas, mas ele nunca usou a palavra vazio quando falava nessas modalidades. Ele contava a estória das vidas das pessoas para mostrar como o sofrimento surgia das percepções inábeis que estavam por trás das suas ações e como a libertação do sofrimento pode surgir sendo mais perceptivo. E ele descreveu os princípios básicos subjacentes ao ciclo de renascimentos para mostrar como as ações intencionais inábeis e prejudiciais conduzem à dor dentro desse ciclo e como as hábeis e benéficas conduzem ao prazer, enquanto que as ações deveras hábeis podem conduzir à completa superação do ciclo. Em todos esses casos, os ensinamentos têm como objetivo fazer com que as pessoas foquem na qualidade das percepções e intenções da mente no presente momento - em outras palavras, fazer com que elas entrem na modalidade vazio. Tendo conseguido isso, elas podem usar os ensinamentos sobre o vazio para o objetivo desejado: afrouxar todos os apegos a ideias, estórias e pressuposições, deixando a mente vazia de todo desejo, raiva e delusão e dessa forma vazia de sofrimento e estresse. E no final das contas, esse é o vazio que realmente vale.


Thanissaro Bhikkhu



(Desconheço a fonte do texto)
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal