A auto-observação e o autoestudo, realizados corretamente, podem nos fazer perceber que há algo de errado com nossa máquina e com nossas funções em seu estado normal. Percebemos que estamos adormecidos e que, por causa disso, vivemos e trabalhamos em uma pequena parte de nós mesmos. A grande maioria de nossas possibilidades não é concretizada, a grande maioria de nossos poderes não é desenvolvida. Sentimos que não obtemos da vida tudo o que ela tem a oferecer em função de defeitos funcionais específicos de nossa máquina, a qual, em seu estado de sono, não consegue receber impressões. A ideia de autoestudo assume novo sentido. Vemos cada função tal como é agora, e como poderia ou deveria ser, e nos perguntamos se vale a pena nos estudarmos assim como somos neste momento. A auto-observação nos leva a compreender que precisamos mudar.
E, ao nos observarmos, percebemos que a própria auto-observação produz certas mudanças em nossos processos interiores. Começamos a compreender que a auto-observação é um instrumento de automudança, um meio de despertar. Ao nos observarmos, lançamos, por assim dizer, um raio de luz sobre processos interiores que até então funcionaram na escuridão. Sob a influência dessa luz, os próprios processos começam a mudar. Há muitos processos psíquicos que só ocorrem no escuro. Até uma débil luz de consciência basta para transformar completamente o caráter de um processo e para tornar impossíveis muitos processos.
A auto-observação é possível apenas depois de nos tornarmos atentos. Precisamos admitir que não temos atenção. E para tentar obtê-la, precisamos começar pelas pequenas coisas. Um aspirante a pianista, por exemplo, só consegue aprender aos poucos. Se quisermos tocar alguma música sem praticar antes, nunca chegaremos a tocar de verdade. Nossas interpretações serão cacofônicas e farão sofrer nossos ouvintes. Isso também acontece com a vivência de ideias psicológicas: a fim de compreender qualquer coisa, precisamos praticar muito. Antes, precisamos tentar realizar pequenas coisas. Se começarmos almejando grandes coisas, nunca conseguiremos nada, e nossas manifestações serão como melodias cacofônicas, fazendo com que as pessoas nos detestem.
A fim de fazer o que é difícil, antes precisamos aprender o que é fácil e admitir que existem dois tipos de ação — a ação automática e a ação segundo uma meta. Precisamos escolher algo simples que hoje não conseguimos fazer e tornar sua realização nossa meta, nosso Deus. Não podemos deixar que nada interfira — nossa única meta é essa. Então, se conseguirmos atingir essa meta, seremos capazes de assumir tarefas maiores. Hoje temos um apetite anormal por coisas que são grandiosas demais para nós. Nunca conseguimos realizar essas coisas. E esse apetite nos impede de fazer as pequenas coisas que poderíamos realizar. Temos de destruir esse apetite e esquecer as coisas grandiosas. Precisamos fazer da luta contra esses hábitos a nossa meta.
Em nossas relações com outras pessoas, precisamos admitir que tolerar as manifestações alheias é importante, a última coisa para nós. Apenas o homem perfeito ou a mulher perfeita conseguem fazer isso. Logo, começamos almejando a capacidade de suportar a manifestação de uma pessoa que hoje não conseguimos suportar sem reagir. Se eu “quiser” — ou seja, se “tiver vontade” — eu “posso”. Sem “vontade”, nunca “posso”. A vontade é a coisa mais poderosa do mundo. A principal causa de nossa fraqueza é nossa incapacidade de aplicar a vontade simultaneamente a nossos três centros (movimento, sentimento e pensamento). Com a vontade consciente, tudo pode acontecer.
Não temos energias para cumprir metas voluntárias, porque todas as nossas forças, adquiridas à noite em nosso estado passivo, são usadas em manifestações negativas. Elas são manifestações automáticas, o oposto de manifestações voluntárias, positivas. Para os que conseguem se lembrar automaticamente da meta mas não têm forças para realizá-la, há um exercício que pode ajudar. Fique sentado sozinho por, pelo menos, uma hora. Relaxe todos os músculos. Permita que as associações surjam, mas não se deixe absorver por elas. Diga-lhes: “Se você me permitir fazer o que quero fazer agora, mais tarde irei satisfazer seus desejos”. Olhe para as associações como se elas pertencessem a outra pessoa, a fim de não se identificar com elas. No final dessa hora, pegue uma folha de papel e escreva ali a sua meta. Faça desse papel o seu Deus — tudo o mais não significa nada. Leia sua meta de maneira constante, todos os dias. Desse modo, ela irá se tornar mesmo sua, uma parte de você: no começo, intelectualmente; mais tarde, de fato. Dedicar-se a uma meta voluntária e realizá-la confere magnetismo e a capacidade de “fazer”.
Georges Ivanovitch Gurdjieff
Fonte: "Em Busca do Ser : o quarto caminho para uma nova consciência"
Tradução Marcello Borges
São Paulo : Editora Pensamento, São Paulo, 2017
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal