Estátua de Tomás de Kempis (1380-1471), situada na cidade em que nasceu.
Um Estudo Teosófico Sobre Obra Clássica
A Teosofia tem as suas maneiras próprias de identificar a sabedoria eterna presente nos ensinamentos cristãos, resgatando-a da letra morta do ritualismo e da crença cega.
Como um pequeno exemplo prático desse fato, apresentamos a seguir 34 fragmentos do livro clássico “Imitação de Cristo” [1]. Os Comentários visam decodificar estas passagens, liberando-as da forma exterior e revelando suas ideias internas, que fazem parte da visão teosófica da vida.
O autor de “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis (1380-1471), foi educado pela Irmandade da Vida em Comum e mais tarde se tornou membro dela. A esta Irmandade pertenceu também o cardeal e filósofo Nicolau de Cusa (1400-1464). [2] De acordo com Helena Blavatsky, Cusa foi um adepto e um precursor do movimento teosófico moderno. [3]
Os três primeiros Livros de “Imitação de Cristo” equivalem a um tratado de filosofia estoica, colocado sob uma roupagem cristã: daí a sua importância em teosofia. O quarto Livro ou quarta parte da obra, porém, não se harmoniza com o resto do conteúdo. Parece algo alheio. Poderia ter sido escrito para escapar da perseguição do Vaticano.
Há algumas “chaves de leitura” para o texto de “Imitação”. Em geral é correto ler a palavra “Deus” como significando “Lei Universal”. Em alguns casos, porém – como no caso da relação pessoal com Deus – o termo designa o próprio eu superior ou alma eterna do ser humano, cuja substância é universal.
O termo “cruz” significa “Carma”.
As palavras “Cristo” e “Jesus” são termos lendários que designam o sexto princípio da consciência humana, também conhecido como “eu superior” e “alma espiritual”.
Os 34 fragmentos são apresentados em itálico, em negrito. Ao final de cada um deles são indicados o Livro (ou Parte), o capítulo e o parágrafo a que pertencem.
Um: a Fonte Mais Alta
“A doutrina de Cristo é mais excelente que a de todos os santos (…).” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)
Comentário:
A primeira frase selecionada de “Imitação” significa que devemos ir à fonte mais elevada possível.
Os Evangelhos constituem uma autêntica luz inspiradora, quando lidos adequadamente. Eles contêm um grande número de ensinamentos pitagóricos, judaicos, confucionistas e budistas, e muitos princípios retirados de outras religiões.
No entanto, os ensinamentos de “Cristo” também estão além da literatura. Eles correspondem simbolicamente à “voz do silêncio”, o mantra sem palavras emitido pela própria alma de cada buscador da verdade, em seu aspecto universal e divino.
Dois: um Maná Invisível
“… E quem tiver seu espírito encontrará nela [na doutrina de Cristo] um maná escondido.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)
Comentário:
Nenhuma leitura da letra morta pode ser eficiente em filosofia ou religião. O real significado está oculto, do ponto de vista do mundo das aparências. Portanto o estudo filosófico deve combinar vários níveis de consciência. É necessário decodificar as palavras para ver o ensinamento como um processo vivo e criativo.
Três: a Visão Correta
“Quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo, é-lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)
Comentário:
Para realmente entender a teosofia, devemos testar e aplicar o seu ensinamento na vida diária. O mundo sagrado está potencialmente presente em cada situação. A vida de H.P. Blavatsky – assim como a de outros sábios de diferentes épocas – constitui uma fonte autorrenovada de orientação e nos inspira.
Quatro: Além das Palavras
“Que te aproveita discutires sabiamente sobre a Santíssima Trindade, se não és humilde, desagradando, assim, a essa mesma Trindade? Na verdade, não são palavras elevadas que fazem o homem justo; mas é a vida virtuosa que o torna agradável a Deus. Prefiro sentir a contrição [arrependimento] dentro de minha alma, a saber defini-la.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)
Comentário:
“Deus” é a lei universal, e é a Natureza em sua totalidade e diversidade absolutas. A Trindade simboliza o mistério da unidade interior que convive com o contraste e diferença externos.
Nenhuma fala pode ser mais valiosa que a intenção que está na sua origem. Tampouco pode ser muito mais forte que a prática diária da qual emerge.
Cinco: a Caridade e a Graça
“Se soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos, de que te serviria tudo isso sem a caridade e a graça de Deus?” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)
Comentário:
Ainda que você saiba recitar de memória as escrituras religiosas de todos os povos e os ensinamentos de cada filósofo clássico, oriental e ocidental, o fato será inútil se você não perceber a unidade de todos os seres, e não enxergar o seu próprio dever para com a Vida Una da qual você faz parte.
Seis: a Suprema Sabedoria
“Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade (Eclesiastes, 1, 2), senão amar a Deus e só a ele servir. A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao reino dos céus.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)
Comentário:
Tudo é vaidade, exceto a tarefa de cumprir nosso dever para com nosso eu superior e para com a lei do equilíbrio universal.
Sete: uma Felicidade que Dura Sempre
“Vaidade é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar nelas. Vaidade é também ambicionar honras e desejar posição elevada. Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar aquilo pelo que, depois, serás gravemente castigado. Vaidade, desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se de que seja boa. Vaidade, só atender à vida presente sem providenciar para a futura. Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 4.)
Comentário:
Estar preocupado sobretudo com coisas de curto prazo, e desprezar o futuro de longo prazo – que eu mesmo estou, em grande parte, preparando durante minha encarnação atual -; isso também é vaidade.
Oito: Buscar o Invisível
“Lembra-te a miúdo do provérbio: ‘Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir’ (Eclesiastes 1, 8). Portanto, procura desapegar teu coração do amor às coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis: pois aqueles que satisfazem seus apetites sensuais mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 5.)
Comentário:
A verdadeira consciência é a voz sem palavras do nosso eu superior ou alma espiritual.
As palavras “graça de Deus” designam a energia sutil e impessoal do amor cósmico e indicam o sexto princípio da consciência humana. A expressão revela a unidade transcendente dos seres ao mesmo tempo que respeita a sua aparente diversidade. A graça superior está em todas as partes. Não pertence a alguma divindade específica, muito menos a um deus “pessoal”.
Nove: o Valor do Conhecimento
“Todo homem tem desejo natural de saber; mas que aproveitará a ciência, sem o temor de Deus? Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus, do que o filósofo soberbo que observa o curso dos astros mas se descuida de si mesmo.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 1.)
Comentário:
Nosso Criador é o nosso eu superior, que fez com que nascêssemos na presente encarnação, mas também pode ser descrito como a Lei Universal.
Aquele que “teme a Deus”, ou “reverencia o mundo divino”, é quem vive em harmonia com sua própria alma espiritual.
Em teosofia, o astrônomo e o humilde camponês devem ser a mesma pessoa. Não há oposição entre os dois: o real conhecimento é inseparável da pureza de coração.
Dez: Autoconhecimento
“Aquele que se conhece bem despreza-se e não se compraz em humanos louvores. Se eu soubesse quanto há no mundo, porém me faltasse a caridade, de que me serviria isso perante Deus, que me há de julgar segundo minhas obras?” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 1.)
Comentário:
“Desprezar-se” aqui significa desprezar o caminho falso do egoísmo e admitir sinceramente seus erros perante o tribunal da sua própria consciência.
Neste trecho temos um princípio teosófico central. O “deus” que me irá julgar é o meu eu superior. Ao final da minha encarnação atual, ele revisará cada ação feita, estabelecendo as linhas cármicas não só dos meus estados pós-morte, mas do meu próximo nascimento.
Onze: Evitar Distrações
“Renuncia ao desordenado desejo de saber, porque nele há muita distração e ilusão. Os letrados gostam de ser vistos e tidos como sábios. Muitas coisas há cujo conhecimento pouco ou nada aproveita à alma. E muito insensato é quem de outras coisas se ocupa e não das que tocam à sua salvação. As muitas palavras não satisfazem à alma, mas uma palavra boa refrigera [renova] o espírito e uma consciência pura inspira grande confiança em Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 2.)
Comentário:
A demonstração externa de santidade ou de erudição não satisfaz à alma. Conforme diz outra versão desta obra (“The Imitation of Christ”, translated by P.G. Zomberg, Dunstan Press), “é a bondade das nossas vidas que traz conforto às nossas mentes”. E Helena Blavatsky escreveu:
“…A Ética da Teosofia é ainda mais necessária à humanidade do que os aspectos científicos dos fatos psíquicos da natureza e do homem.” [4]
Doze: uma Vida Sagrada
“Quanto mais e melhor souberes, tanto mais rigorosamente serás julgado, se com isso não viveres mais santamente. Não te desvaneças, pois, com qualquer arte ou conhecimento que recebeste.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 3.)
Comentário:
O “Dia do Julgamento” é também individual e não necessariamente coletivo, conforme o pensador português Antônio Vieira explicou no ano de 1652 em um dos seus sermões.[5]
O “julgamento” individual é feito pelo nosso próprio eu superior de acordo com a Lei do Carma e acontece ao final de cada encarnação. Os “julgamentos” coletivos são pontos cármicos de não-retorno na evolução humana e planetária. Eles são examinados no livro “A Doutrina Secreta”, de Helena Blavatsky.
O que fazemos com o nosso suposto conhecimento é a questão-chave para a teosofia autêntica. O conhecimento precisa ser confirmado e validado pela ação correspondente, e esta será necessariamente imperfeita. A ação correta consiste na tentativa sincera de fazer o melhor que podemos. Nossos esforços nesse sentido devem ser corrigidos e renovados periodicamente, à medida que as circunstâncias se alteram. Gradualmente aprendemos a aprender com os erros, e a concentrar a mente e o coração na meta nobre livremente escolhida por nós.
Treze: Para Aprender o que é Útil
“Se te parece que sabes e entendes bem muitas coisas, lembra-te que é muito mais o que ignoras. ‘Não presumas de alta sabedoria’ (Romanos, 11, 20), antes confessa a tua ignorância. Como tu queres a alguém preferir-te, quando se acham muitos mais doutos do que tu e mais versados na lei? Se queres saber e aprender coisa útil, deseja ser desconhecido e tido por nada.” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 3.)
Comentário:
Nossos pensamentos devem ser honestos e verdadeiros. Seja o que for que disserem os que nem sequer tentam agir com ética e com respeito pela verdade, eles são seres infelizes e estão muito longe do caminho correto. No entanto, merecem nosso respeito impessoal. Colherão o que plantaram, e no futuro terão uma chance de corrigir seus erros.
Devemos ter como objetivo aprender com quem é mais sábio que nós. Não importa se o nosso contato com eles é interno ou externo e se ocorre através de palavras escritas ou sem o uso de palavras. [6] Para viver esta aprendizagem superior, é preciso tratar de ajudar o trabalho das Almas que guiam a humanidade pelo caminho da luz.
Catorze: Permaneça Vigilante
“Ainda quando vejas alguém pecar publicamente ou cometer faltas graves, nem por isso te deves julgar melhor, pois não sabes quanto tempo poderás perseverar no bem.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 4.)
Comentário:
Combata o crime e o egoísmo. Lute ainda mais contra as sementes deles e as suas fontes. Não lave as mãos diante da injustiça de qualquer tipo. Encare a injustiça contra qualquer um como uma injustiça contra o seu pai, a sua mãe ou seu mestre espiritual. Tenha piedade e compaixão diante das pessoas egoístas, mas não aceite as suas ações daninhas. Os desinformados são parte da família humana, assim como você.
Quinze: Não Compare
“Nós todos somos fracos mas a ninguém deves considerar mais fraco que a ti mesmo.” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 4.)
Comentário:
Cabe seguir o exemplo dos sábios, e manter à nossa frente o ideal de progresso e perfeição humanos.
Se parecemos mais fortes do que alguém, isso não tem importância. E se pensarmos que o fato é importante, este pensamento vaidoso mostra fraqueza e ilusão.
Dezesseis: Ignorando Questões Obscuras
“Bem-aventurado aquele a quem a verdade por si mesma ensina, não por figuras e vozes que passam, mas como em si é. Nossa opinião e nossos juízos muitas vezes nos enganam e pouco alcançam. De que serve a sutil especulação sobre questões misteriosas e obscuras [7], por cuja ignorância não seremos julgados?” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 1.)
Comentário:
Agir de acordo com a Lei do Equilíbrio é melhor que estar limitado a explicações teóricas. No entanto, combinar as duas coisas é necessário. O lema do movimento teosófico é “Não há religião mais elevada que a verdade”. A Verdade transcende todas as suas descrições verbais, mas os enfoques limitados dela são úteis, quando examinados de modo inteligente.
Dezessete: Olhar e Não Ver
“Grande loucura é descurarmos as coisas úteis e necessárias, entregando-nos, com avidez, às curiosas e nocivas. Temos olhos para não ver. (Salmo 113, 13)” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 1.)
Comentário:
A melhor defesa do peregrino é o cumprimento do seu dever maior.
A compreensão saudável da vida depende de olhar para ela desde um ponto de vista correto, e é a prática do altruísmo que garante isso. As mentes egoístas distorcem tudo o que olham: a verdadeira inteligência é universal.
Dezoito: o Coração Firme na Paz
“Aquele a quem fala o Verbo eterno se desembaraça de muitas questões. Desse Verbo único procedem todas as coisas e todas o proclamam e esse é o princípio que também nos fala (João 8, 25). Sem ele não há entendimento nem reto juízo. Quem acha tudo neste Único, e tudo a ele refere e tudo nele vê, poderá ter o coração firme e permanecer em paz com Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 2.)
Comentário:
O trecho inteiro ressoa em harmonia com os escritos de H. P. Blavatsky.
O Verbo é o “Som” primordial, o Mantra da manifestação universal, a Música das Esferas.
Dezenove: Silêncio e Verdade
“Ó Deus de verdade, fazei-me um convosco na eterna caridade! Enfastia-me, muita vez, ler e ouvir tantas coisas; pois em vós acho tudo quanto quero e desejo. Calem-se todos os doutores, emudeçam todas as criaturas em vossa presença; falai-me vós só.” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 2.)
Comentário:
A personalização simbólica do universo e de suas leis deve ser aceita como um processo cultural que ocorre em todas as nações ao redor do mundo, e como uma forma de codificar e registrar o Mistério inefável. A tradição esotérica ensina como interpretar as lendas relacionadas a Zeus e Saturno, ao deus cristão, ao Brahman e ao Parabrahman hindus, aos Imortais taoistas, e assim por diante.
Quando a crença cega predomina, algo é considerado verdade porque “deus”, ou o Cristo, ou algum profeta ou guru diz que é verdade. Em filosofia, ocorre o contrário. Algo não é verdade porque um sábio afirma que é, mas o sábio diz que algo é verdadeiro porque essa é a verdade.
O verdadeiro Mestre nunca se coloca acima da lei ou da verdade, mas trabalha humildemente a serviço delas.
Vinte: Recolhimento Traz Compreensão
“Quanto mais recolhido for cada um e mais simples de coração, tanto mais sublimes coisas entenderá sem esforço, porque do alto recebe a luz da inteligência.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 3.)
Comentário:
Este ensinamento é parte da teosofia original de Helena Blavatsky e dos Mestres de Sabedoria.
Vinte e Um: o Espírito Puro
“O espírito puro, singelo e constante não se distrai no meio de múltiplas ocupações porque faz tudo para honra de Deus, sem buscar em coisa alguma o seu próprio interesse. O que mais te impede e perturba do que os afetos imortificados do teu coração? O homem bom e piedoso ordena primeiro no seu interior as obras exteriores; nem estas o arrasam aos impulsos de alguma inclinação viciosa, senão que as submete ao arbítrio da reta razão.” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 3.)
Comentário:
Nosso “Deus” ou “Senhor” é anônimo: é o nosso eu superior, e a ele devemos lealdade.
Vinte e Dois: Enxergando as Nossas Fraquezas
“Que mais rude combate haverá do que procurar vencer-se a si mesmo? E este deveria ser nosso empenho: vencermo-nos a nós mesmos, tornarmo-nos cada dia mais fortes e progredirmos no bem.”
“Toda a perfeição, nesta vida, é mesclada de alguma imperfeição, e todas as nossas luzes são misturadas de sombras. O humilde conhecimento de ti mesmo é caminho mais certo para Deus que as profundas pesquisas da ciência.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parágrafos 3 e 4.)
Comentário:
O cristianismo que gira em torno de rituais não oferece um caminho para o esclarecimento e a iluminação. O estudo da letra morta das escrituras é inútil, e a advertência inclui os escritos teosóficos. Para trilhar o caminho que leva à Verdade é necessário fazer pesquisas independentes, com um coração humilde e observando calmamente nossas próprias fraquezas.
Vinte e Três: a Vida Virtuosa
“Não é reprovável a ciência ou qualquer outro conhecimento das coisas, pois é boa em si e ordenada por Deus; sempre, porém, devemos preferir-lhe a boa consciência e a vida virtuosa. Muitos, porém, estudam mais para saber, que para bem viver; por isso erram a miúdo e pouco ou nenhum fruto colhem.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 4.)
Comentário:
O propósito da vida é aprender. No entanto cada porção de conhecimento que obtemos vem até nós com uma inevitável quota de deveres éticos.
Cabe examinar cuidadosamente para que usamos o conhecimento. Porque só um coração honesto, ao buscar metas nobres, sabe usar o conhecimento de maneira correta e está à altura das informações mais amplas sobre a vida.
Vinte e Quatro: a Pergunta Que Será Feita
“Ah! se se empregasse tanta diligência em extirpar vícios e implantar virtudes como em ventilar questões, não haveria tantos males e escândalos no povo, nem tanta relaxação nos claustros. De certo, no dia do juízo não se nos perguntará o que lemos, mas o que fizemos; nem quão bem temos falado, mas quão honestamente temos vivido.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 5.)
Comentário:
O cristianismo místico sempre teve uma relação difícil com as igrejas autoritárias.
Um exemplo disso, entre milhares, é o fato de que Geert de Groote – o fundador da Irmandade da Vida em Comum da qual fazia parte Tomás de Kempis -, denunciou e combateu os abusos sacerdotais. [8]
Vinte e Cinco: o Verdadeiro Sábio
“Dize-me: onde estão agora todos aqueles senhores e mestres que bem conheceste, quando viviam e floresciam nas escolas? Já outros possuem suas prebendas [posições de prestígio], e nem sei se porventura deles se lembram. Em vida pareciam valer alguma coisa, e hoje ninguém deles fala.”
“Oh! como passa depressa a glória do mundo! Oxalá a sua vida tenha correspondido à sua ciência; porque, destarte, terão lido e estudado com fruto. Quantos, neste mundo, descuidados do serviço de Deus, se perdem por uma ciência vã! E porque antes querem ser grandes que humildes, se esvaecem em seus pensamentos (Romanos 1, 21). Verdadeiramente grande é aquele que tem grande caridade. Verdadeiramente grande é aquele que a seus olhos é pequeno e avalia em nada as maiores honras. Verdadeiramente prudente é quem considera como lodo tudo o que é terreno, para ganhar a Cristo (Filipenses 3, 8). E verdadeiramente sábio é aquele que faz a vontade de Deus e renuncia à própria vontade.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parágrafos 5 e 6.)
Comentário:
A “vontade de Deus” é o propósito da nossa alma espiritual; “Cristo” simboliza a consciência cósmica.
Vinte e Seis: Independência e Autorresponsabilidade
“Não se há de dar crédito a toda palavra nem a qualquer impressão, mas cautelosa e naturalmente se deve, diante de Deus, ponderar as coisas.” (Livro Primeiro, capítulo 4, parág. 1.)
Comentário:
Com a exceção da palavra “Deus”, esta ideia pertence literalmente às filosofias de todos os povos, incluindo o budismo, o pitagorismo e a teosofia.
Vinte e Sete: Evite Falar Mal dos Outros
“Mas ai! que mais facilmente acreditamos e dizemos dos outros o mal que o bem, tal é a nossa fraqueza. As almas perfeitas, porém, não creem levianamente em qualquer coisa que se lhes conta, pois conhecem a fraqueza humana inclinada ao mal e fácil de pecar por palavras.”
“Grande sabedoria é não ser precipitado nas ações, nem aferrado obstinadamente à sua própria opinião; sabedoria é também não acreditar em tudo que nos dizem, nem comunicar logo a outros o que ouvimos ou suspeitamos.” (Livro Primeiro, capítulo 4, parágrafos 1 e 2.)
Comentário:
Este ensinamento é teosófico e H. P. Blavatsky fez afirmações semelhantes.
Vinte e Oito: Prudência e Humildade
“Toma conselho com um varão sábio e consciencioso, e procura antes ser instruído por outrem, melhor que tu, que seguir teu próprio parecer. A vida virtuosa faz o homem sábio diante de Deus e entendido em muitas coisas. Quanto mais humilde for cada um em si e mais sujeito a Deus, tanto mais prudente será e calmo em tudo.” (Livro Primeiro, capítulo 4, parágrafo 2.)
Comentário:
Entre os degraus da Escada de Ouro dos ensinamentos teosóficos, podemos ver os seguintes:
“Afeto fraternal para com seu codiscípulo; presteza para dar e receber conselho e instrução; leal senso de dever para com o Instrutor…”. [9]
Os sábios ensinam que a ajuda mútua é essencial na busca da verdade.
Vinte e Nove: o Amor à Verdade
“Nas Sagradas Escrituras devemos buscar a verdade, e não a eloquência. Todo livro sagrado deve ser lido com o mesmo espírito que o ditou. Nas Escrituras devemos antes buscar nosso proveito que a sutileza de linguagem. Tão grata nos deve ser a leitura dos livros simples e piedosos, como a dos sublimes e profundos. Não te mova a autoridade do escritor, se é ou não de grandes conhecimentos literários; ao contrário, lê com puro amor a verdade. Não procures saber quem o disse; mas considera o que se diz.” (Livro Primeiro, capítulo 5, parág. 1.)
Comentário:
A ideia de Sagradas Escrituras inclui os livros clássicos que pertencem às religiões e filosofias de todos os povos e todos os tempos, desde o Manuscrito Huarochirí, dos Andes, até o “Popol Vuh” da América Central e “A Doutrina Secreta”, publicada no século 19.
Deve-se ler os livros sobre sabedoria divina desde o ponto de vista do coração e de acordo com a afinidade interior.
Trinta: a Verdade Fala de Muitos Modos
“Os homens passam, mas a verdade do Senhor permanece eternamente (Salmo 116, 2). De vários modos nos fala Deus, sem acepção de pessoas.” (Livro Primeiro, capítulo 5, parág. 2.)
Comentário:
A anônima Lei Universal fala para nós de muitas maneiras.
Um Mestre de Sabedoria escreveu para uma discípula leiga: “Trate, filha, de aprender uma lição através de quem quer que seja que ela estiver sendo dada. ‘Até mesmo as pedras podem pregar sermões’.” [10]
A independência é fundamental, e o Buddha ensinou:
“Não se deixem desorientar por relatos, por tradição ou por ouvir dizer. Não se deixem desorientar pelo conhecimento das Coleções (de Escrituras), nem por mera lógica e inferência, nem pela consideração de razões, nem pela reflexão sobre algum ponto de vista e pela aprovação dele, nem pela conveniência, nem pelo fato de o recluso (que defende o ponto de vista) ser o seu instrutor. Mas quando vocês souberem por si mesmos: ‘Estas coisas não são boas, estas coisas são erradas, estas coisas são censuradas pelos inteligentes, estas coisas, quando realizadas e colocadas em prática, conduzem à perda e ao sofrimento’ – então as rejeitem.” [11]
Trinta e Um: Lê com Humildade
“A nossa curiosidade nos embaraça, muitas vezes, na leitura das Escrituras; porque queremos compreender e discutir o que se devia passar singelamente. Se queres tirar proveito, lê com humildade, simplicidade e fé, sem cuidar jamais do renome do letrado.”
“Pergunta de boa vontade e ouve calado as palavras dos santos; nem te desagradem as sentenças dos velhos, porque eles não falam sem razão.” (Livro Primeiro, capítulo 5, mesmo parág. 2.)
Comentário:
Lê os escritos dos homens e mulheres sábios de todos os tempos.
Escuta os teus codiscípulos, porque eles são corresponsáveis pelo teu bem-estar espiritual, e a responsabilidade é mútua. Podes aprender com as ações corretas deles, e também podes aprender com os erros deles, assim como eles aprendem com os teus erros e teus acertos.
Trinta e Dois: Aceita a Paz
“Todas as vezes que o homem deseja alguma coisa desordenadamente, torna-se logo inquieto. O soberbo e o avarento nunca sossegam; entretanto, o pobre e o humilde de espírito vivem em muita paz. O homem que não é perfeitamente mortificado facilmente é tentado e vencido, até em coisas pequenas e insignificantes. O homem espiritual, ainda um tanto carnal e propenso à sensualidade, só a muito custo poderá desprender-se de todos os desejos terrenos. Daí a sua frequente tristeza, quando deles se abstém, e fácil irritação, quando alguém o contraria.”
“Se, porém, alcança o que desejava, sente logo o remorso da consciência, porque obedeceu à sua paixão, que nada vale para alcançar a paz que almejava. Em resistir, pois, às paixões, se acha a verdadeira paz do coração, e não em segui-las. Não há portanto, paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas externas, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual.” (Livro Primeiro, capítulo 6, parágrafos 1 e 2.)
Comentário:
O estudante bem informado mantém uma busca constante do ideal de progresso e perfeição humanos, e faz experiências práticas de desapego em relação às coisas terrenas.
O peregrino evita dois extremos.
Ele não deve obedecer cegamente aos apetites inferiores; de outro lado, é inútil seguir um tipo de disciplina que gera um excesso de conflitos neuróticos. O equilíbrio é essencial. O esforço é de longo prazo, e cada um deve ser o seu próprio mestre e discípulo.
Há também marés cármicas, que devem ser observadas e compreendidas nesse esforço de uma vida inteira.
Uma vez que o peregrino compreende verdades universais, os desejos do eu inferior perdem força gradualmente. A disciplina diária, o estudo e a contemplação da lei universal destroem pouco a pouco as raízes do egocentrismo no eu inferior do estudante.
O alicerce da autodisciplina vitoriosa está na compreensão da nossa interconexão pessoal com o Cosmo inteiro. Quando o horizonte individual inclui o horizonte da galáxia, fica mais fácil aceitar a paz e a vida humilde no plano físico.
Trinta e Três: Vive Como um Pobre
“Insensato é quem põe sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de servir a outrem por Jesus Cristo, e ser tido como pobre neste mundo.” (Livro Primeiro, capítulo 7, parág. 1.)
Comentário:
A ideia de que alguém não deve ter vergonha de servir a outrem pelo bem da sua própria alma espiritual está presente em religiões mais antigas que o cristianismo.
Nos Vedas, por exemplo, o Brhad-aranyaka Upanixade afirma:
“Não é pelo marido em si que o marido é amado, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] no marido, que o marido é amado. Não é pela esposa em si que a esposa é amada, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] na esposa, que a esposa é amada. Não é pelos filhos em si mesmos que os filhos são amados, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] nos filhos, que os filhos são amados.” [12]
Há uma dimensão impessoal e divina nos afetos humanos, da qual podemos tornar-nos plenamente conscientes.
Trinta e Quatro: Faze o que Está a Teu Alcance
“Não confies em ti mesmo, mas põe em Deus [a Lei] tua esperança. Faze de tua parte o que puderes, e Deus [a Lei] ajudará tua boa vontade. Não confies em tua ciência, nem na sagacidade de qualquer vivente, mas antes na graça de Deus [a Lei], que ajuda os humildes e abate os presunçosos.” (Livro Primeiro, capítulo 7, mesmo parág. 1.)
Comentário:
A renúncia ao desejo pessoal conduz a uma vida de simplicidade voluntária, na qual a ética e a sabedoria são possíveis.
A justiça é imparcial, e um dos Mahatmas dos Himalaias escreveu que, para os raja-iogues, “um lustrador de botas honesto é tão bom quanto um rei honesto, e […] um varredor de ruas imoral é muito melhor e mais desculpável do que um imperador imoral.” [13]
A recomendação “faze de tua parte o que puderes…” expressa a principal ideia dos ensinamentos de Epicteto. Ao cumprir o seu dever espiritual interno, o peregrino evita desperdiçar energias com o que não depende dele. Focando a atenção no que lhe diz respeito, ele aprende a cooperar não só com o seu próprio eu superior, mas com outros seres, mais experientes e mais avançados.
Carlos Cardoso Aveline
Fonte do Texto e da Gravura: FilosofiaEsotérica
https://www.filosofiaesoterica.com/a-imitacao-de-cristo/
NOTAS:
[1] “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis, Ed. Vozes, Petrópolis, vigésima-oitava edição, 1993, 277 pp. O livro tem numerosas edições em português, inclusive da editora Ediouro (1968), em que o nome de autor aparece como Thomas A. Kempis; da Editora Ave-Maria Ltda. (SP, 1928), em que não há nome de autor; e da Livraria Editora Francisco Alves, RJ, 1898, traduzido em versos por Affonso Celso e com 620 páginas. O livro, o capítulo e o parágrafo de cada citação são mencionados entre parênteses no seu final. Edições em inglês da obra incluem: “The Imitation of Christ”, translated by P.G. Zomber, Dunstan Press, Maine, USA, copyright 1984, 250 pp.; “Of the Imitation of Christ”, by Thomas à Kempis, Whitaker House, USA, 1981, 256 pp.; “The Inner Life”, Penguin Books, 2004, translated by Leo Sherley-Price, 108 pp.; e “The Imitation of Christ”, Thomas A. Kempis, translated by George F. Maine, published by Collins Sons, 1957, London and Glasgow, 1957, 280 pp.
[2] “A Concise Encyclopedia of Christianity”, Geoffrey Parrinder, itens “Brethren of the Common Life”, “Kempis, Thomas à”, e “Nicholas of Cusa”.
[3] Sobre Nicolau de Cusa, veja em nossos websites o artigo “Reencarnação Consciente e Imediata”. Examine também “Collected Writings”, H. P. Blavatsky, TPH, vol. XIV, pp. 377-378. Leia os itens “Nicholas of Cusa” e “Brethren of the Common Life”, conforme as indicações dadas na Nota 2, acima. Cabe ter presente o fato de que H.P. Blavatsky escreve, em “Ísis Sem Véu”, Ed. Pensamento, volume III, p. 29: “A Magia, em todos os seus aspectos, foi amplamente e quase abertamente praticada pelo clero até a Reforma.” De posse destas informações, fica mais fácil compreender por que a mística cristã, incluindo o franciscanismo, tem até hoje elementos teosóficos importantes.
[4] “Five Messages”, H. P. Blavatsky, Theosophy Co., Los Angeles, 1922, Second message, p. 12. O livreto está disponível em nossos websites. Para vê-lo, basta clicar aqui.
[5] Padre Antônio Vieira, “Sermões”, Editora das Américas, SP, volume IV, 1957, 441 pp., ver por exemplo pp. 28-40.
[6] Um tal contato frequentemente inclui as palavras escritas de ensinamentos clássicos e uma inspiração silenciosa em níveis superiores de percepção.
[7] Uma das melhores edições em inglês desta obra, preparada por P.G. Zomber (ver nota 1, acima), usa a expressão “coisas esotéricas”, “esoteric things” (p. 6).
[8] Veja “A Concise Encyclopedia of Christianity”, Geoffrey Parrinder, item “Brethren of the Common Life”, p. 48.
[9] Examine o artigo “Comentários à Escada de Ouro”.
[10] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C. Jinarajadasa, Ed. Teosófica, Brasília, 1996, ver p. 147, segunda carta para Laura C. Holloway.
[11] “The Wisdom of Buddhism”, Edited by Christmas Humphreys, Curzon-Humanities, London, UK, 1987, 280 pp., p. 71.
[12] “The Principal Upanisads”, Edited with Notes by S. Radhakrishnan, London: George Allen & Unwin Ltd; New York: Humanities Press Inc., 1974, 958 pp., ver p. 197.
[13] “Cartas dos Mahatmas”, Ed. Teosófica, Brasília, volume I, Carta 29, p. 158.