domingo, 19 de abril de 2020

OS TEXTOS BÍBLICOS E A REVELAÇÃO ESPÍRITA


Entrevista que a Eliana Haddad fez com o professor Severino Celestino da Silva, sobre os textos bíblicos e a revelação espírita.

Professor, pesquisador e escritor, Severino Celestino da Silva é estudioso de línguas antigas e profundo conhecedor da Bíblia. Doutor em odontologia pela Fundação de Ensino Superior de Pernambuco, é professor-titular no curso de odontologia da Universidade Federal da Paraíba e espírita há mais de 40 anos. Tem pós-doutorado em ciências das religiões pela Pontifícia Universidade Católica de Goiânia-GO, e é fundador e professor do curso de ciências das religiões da Universidade Federal da Paraíba, onde lecionou judaísmo e cristianismo primitivo por 15 anos. Durante este período, Severino se debruçou intensamente sobre as obras de Kardec, relacionando o espiritismo com a Bíblia, em hebraico, sua língua original. Sobre o tema, o professor possui diversas obras publicadas, dentre elas: Analisando as traduções bíblicas, O sermão do monte e Analisando as traduções bíblicas. Leia a esclarecedora entrevista que Severino concedeu ao Correio Fraterno.

Por que a mensagem de Jesus tem tantas versões?

Em princípio, a mensagem de Jesus é universal. Ela veio para todos, religiosos e não religiosos. O objetivo foi sempre nos assistir, através do seu amor. No entanto, os homens sempre tiveram dificuldade de entendê-la por vários motivos. Inicialmente, pelo fato de que Jesus falava hebraico e aramaico e sua mensagem foi escrita pelos discípulos em grego. Nem todos entendem estes idiomas e ficam na dependência de tradutores, às vezes não confiáveis e fiéis ao que está escrito nos textos originais. Também, as religiões cristãs traduziram e têm traduzido a mensagem de Jesus com intenções de atender, às vezes, a sua visão religiosa. 

Que importância tem o estudo da Bíblia para o espiritismo?

Tem grande importância. A doutrina espírita tem bases e um grande suporte nos textos bíblicos. Não existe espiritismo sem Evangelho. A Bíblia, em seus textos originais, representa um repositório de fenômenos e registros de histórias mediúnicas de todos os tipos. Em O livro dos médiuns, vamos encontrar explicações científicas para estes fenômenos produzidos pelos profetas que, na verdade, foram grandes médiuns. A Bíblia também apresenta ensinamentos que foram adotados na codificação da doutrina espírita, como a reencarnação (as vidas sucessivas) que se encontra em muitas passagens do Velho Testamento e Evangelhos. 

A que o senhor atribui as guerras religiosas?

A guerra, de qualquer natureza, está sempre relacionada com interesses pessoais e materiais, além do egoísmo e do orgulho que estão sempre presentes nestes casos. As religiosas são ainda muito mais surpreendentes, porque não se consegue entender como alguém ligado à espiritualidade e ao amor pode promover uma guerra. A guerra religiosa é um contrassenso, e maior ainda, quando religiosos de qualquer corrente procuram justificá-la como se fosse uma vontade do ser superior espiritual a quem eles seguem. Como entender que Alá, Buda, Krishna e Jesus possam concordar com as guerras que seus seguidores têm feito em nome de Deus?

Como melhor compreender os Evangelhos? Como estudá-los?

Os Evangelhos são as melhores mensagens sobre os ensinamentos de Jesus. Eles contêm o seu ensino moral, seus atos, parábolas e predições. Podem ser estudados partindo-se do conhecimento de que Jesus era um judeu, que teve sua história escrita por judeus e para os judeus. E devem ser estudados seguindo-se a ordem dos ministérios de Jesus, sem esquecer a importância de conhecermos o idioma em que foram escritos. Também seguir sua sequência, separando-se os itens: o ensino moral de Jesus, depois os seus atos, suas parábolas e, por último, suas predições.

O apego à letra não prejudica a compreensão da essência da mensagem? 

Claro! Prejudica não só a mensagem de Jesus como também toda a mensagem bíblica. Os estudiosos orientais afirmam que quem utiliza o sentido interpretativo literal da Bíblia se perde no entendimento de sua compreensão. Por isso, devemos buscar estudar a Bíblia didaticamente, separando a mensagem da Primeira Revelação e Segunda ou Novo Testamento, até chegar a mensagem de Jesus, analisando e procurando conhecer todos os fatores que envolveram a sua origem. A Bíblia é uma biblioteca com 73 livros com autores diferentes e escritos em épocas diferentes. Por isso, necessitamos conhecer a origem de cada livro, sua história e suas mensagens. Separar cada livro pelo nome e, antes de explorá-lo, ter respostas para as questões: Quando ele foi escrito? Por quem foi escrito? Para quem foi escrito? Qual o objetivo do livro?

O nosso canal com Deus é feito pela mente e pelo coração. Por isso, aconselhamos o estudo do livro A gênese, de Alan Kardec. E, depois de cada leitura, criar o hábito de reflexão, procurando sintonia espiritual e um coração voltado para o Cristo. Ele irá nos assistir sempre.

Como o senhor vê as interpretações dos castigos nos textos sagrados?

Deus é infinitamente misericordioso, justo e bom. Ele não premia nem castiga. Nós somos submetidos à lei de “causa e efeito” que a tudo rege. Jesus nos fala em Mateus 16:27 “que o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos; e então dará, a cada um, segundo as suas obras”. 

Existem inúmeras passagens bíblicas que se referem à colheita daquilo que plantamos, desde o Levítico 5:17: “E, se alguma pessoa pecar e fizer contra algum de todos os mandamentos do Senhor o que se não deve fazer, ainda que o não soubesse, contudo, será ela culpada e levará a sua iniquidade”. No Deuteronômio 8:5, que fala: “Confessa, pois, no teu coração que, como um homem castiga a seu filho, assim te castiga o Senhor, teu Deus”. Passando pelo livro de Jó 5:17: “Eis que bem-aventurado é o homem a quem Deus castiga; não desprezes, pois, o castigo do Todo-Poderoso”. Estes princípios de causa e efeito se encontram em muitas passagens da Bíblia. Considerar e entender estas passagens dos textos bíblicos como castigos de Deus são interpretações dos que não entenderam ainda, a lei de causa e efeito, de que todos nós colhemos o que plantamos.

Podemos dizer que as verdades trazidas, por exemplo, no Velho Testamento já estariam superadas com o advento do espiritismo?

Nunca. As verdades trazidas pela Primeira Aliança ou Velho Testamento ainda estão perfeitamente vigentes, aplicáveis à realidade de hoje. Acrescente-se que os Dez Mandamentos são ensinos morais e não religiosos, são ensinos universais. Se a humanidade houvesse praticado e ainda praticasse os ensinamentos de Moisés, contidos nos Dez Mandamentos, provavelmente não teria havido necessidade da vinda de Jesus entre nós, pois já estaríamos redimidos.

Lamentamos quando ouvimos alguns irmãos da doutrina espírita afirmarem que da Bíblia só devemos considerar o Novo Testamento. Esta afirmativa nega o que afirmam Jesus, Kardec e o Espírito da Verdade. Jesus jurou fidelidade à Torá e aos profetas (Mateus 5:17-19), afirmando que não passará nada da Torá sem que tudo seja cumprido, e ainda lamenta os que alteram o seu significado. Allan Kardec fala nos comentários da questão 59 de O livro dos espíritos que a Bíblia não contém erros, nós que nos equivocamos ao interpretá-la. No primeiro capítulo de O evangelho segundo o espiritismo, “Eu não vim destruir a Lei”, enumera todo o conteúdo dos Dez Mandamentos e acrescenta que eles representam a lei de todos os tempos e de todos os países e que têm por isso mesmo um caráter divino. Também dedica ainda o capítulo 14 ao tema “Honrai vosso pai e vossa mãe”, que é uma recomendação que se encontra no Êxodo 20:12. E, no capítulo 6, item 12, ainda recorre ao ensino do profeta Isaías e do Livro de Jó. O Espírito da Verdade, na questão 275 de O livro dos espíritos, nos aconselha a ler os Salmos e, na questão 560, se refere ao Eclesiastes. São livros do Velho Testamento. 

Como o senhor concilia em seus estudos: a mística dos textos bíblicos e a razão enaltecida na obra de Kardec?

O Espírito da Verdade nos traz uma informação que auxilia a entender tudo isso. Na questão 627 de O livro dos espíritos, Kardec solicita ao Espírito da Verdade esclarecimentos sobre a necessidade da Revelação Espírita, uma vez que já existia as revelações de Moisés e de Jesus. O Espírito da Verdade esclarece que as revelações anteriores possuíam sentido figurado e parabólico, enquanto a doutrina espírita vinha levantar o véu e tornar compreensível o que até então possuía caráter obscuro e figurado.

Acho perfeitamente conciliáveis os textos bíblicos e a razão que envolve a revelação espírita. As três revelações enviadas por Deus representam etapas distintas da mensagem do Cristo. Cada uma delas tem seu conteúdo específico e compatível com a evolução dos povos da época para quem elas vieram. Elas se completam e não apresentam antagonismos entre si como pensam alguns estudiosos.

Esta conciliação está perfeitamente evidenciada na mensagem do espírito Israelita encerrando o item 9 do primeiro capítulo de O evangelho segundo o espiritismo, quando afirma: “Foi Moisés quem abriu o caminho; Jesus continuou a obra, e o espiritismo a arrematará”.

O que nós, espíritas, podemos fazer para que essa fonte não se esgote e continue na sua pureza inicial?

Devemos procurar reviver os ensinamentos do Evangelho de Jesus em sua cristalinidade e pureza inicial, como eram vividos pelos apóstolos e seguidores cristãos dos primeiros três séculos. Temos uma responsabilidade muito grande de fazer reviver, com gestos e atitudes, o verdadeiro significado do grande legado que existe nos Evangelhos de Jesus. 

Analisando racionalmente seus postulados, podemos afirmar que a doutrina espírita nos torna próximos da realidade espiritual dos Evangelhos do Cristo, como a caridade, a fraternidade, as curas, o perdão e demais princípios e ensinamentos do Cristo. Em nossos ombros, repousa a responsabilidade de praticá-los.

O que o senhor gostaria de ver no movimento espírita com relação a esse aspecto?

A reflexão é sempre muito necessária, diante da história que conhecemos, sobre as traduções da Bíblia, para não nos deixarmos levar por princípios e ensinamentos bíblicos sem base e sem racionalidade. Não acreditem em tudo que lhes disserem. Existem muitos falsos líderes que se colocam na condição de donos da verdade e arrastam muitos. Jesus nos adverte no capítulo 24 do Evangelho de Mateus quando afirma: “Atenção para que ninguém vos engane. Pois muitos virão em meu nome, dizendo: ‘O Cristo sou eu’, e enganarão a muitos”. Isso está em Mateus 24:4 e 5. Façamos como nos aconselha Paulo aos Tessalonicenses 5:21: “Discerni tudo e ficai com o que é bom”.

E pra finalizar: em que esse discernimento pode nos auxiliar na evolução espiritual?

O discernimento passa por uma série de fatores que necessitam de algumas análises e reflexões. Não importa a religião. Todas elas possuem um código moral que orienta os seus seguidores para a transformação e para serem melhores. A prática do bem está acima da questão religiosa, é algo que está no interior do campo espiritual de cada ser humano. Todo ser humano tem dentro de si a semente do bem. A religião pode ser um grande auxiliar, mas não é o único. Os não religiosos também praticam o bem, a caridade e o amor. O religioso limita e o espiritual liberta. Assim, o amar, o servir e o perdoar fazem mais parte do ser humano do que da religião. Independentemente de qual seja a sua religião, busque sempre a sua transformação moral. 


Eliana Haddad



Fonte:Editora Correio Fraterno
https://correio.news/entrevista/os-textos-biblicos-e-a-revelacao-espirita
Fonte da Gravura: Pixabay

A IMITAÇÃO DE CRISTO (UM ESTUDO TEOSÓFICO)

  Estátua de Tomás de Kempis (1380-1471), situada na cidade em que nasceu.



Um Estudo Teosófico Sobre Obra Clássica

A Teosofia tem as suas maneiras próprias de identificar a sabedoria eterna presente nos ensinamentos cristãos, resgatando-a da letra morta do ritualismo e da crença cega. 

Como um pequeno exemplo prático desse fato, apresentamos a seguir 34 fragmentos do livro clássico “Imitação de Cristo” [1].  Os Comentários visam decodificar estas passagens, liberando-as da forma exterior e revelando suas ideias internas, que fazem parte da visão teosófica da vida.

O autor de “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis (1380-1471), foi educado pela Irmandade da Vida em Comum e mais tarde se tornou membro dela. A esta Irmandade pertenceu também o cardeal e filósofo Nicolau de Cusa (1400-1464). [2]  De acordo com Helena Blavatsky, Cusa foi um adepto e um precursor do movimento teosófico moderno. [3]

Os três primeiros Livros de “Imitação de Cristo” equivalem a um tratado de filosofia estoica, colocado sob uma roupagem cristã: daí a sua importância em teosofia. O quarto Livro ou quarta parte da obra, porém, não se harmoniza com o resto do conteúdo. Parece algo alheio. Poderia ter sido escrito para escapar da perseguição do Vaticano.

Há algumas “chaves de leitura” para o texto de “Imitação”.  Em geral é correto ler a palavra “Deus” como significando “Lei Universal”. Em alguns casos, porém – como no caso da relação pessoal com Deus – o termo designa o próprio eu superior ou alma eterna do ser humano, cuja substância é universal.

O termo “cruz” significa “Carma”.

As palavras “Cristo” e “Jesus” são termos lendários que designam o sexto princípio da consciência humana, também conhecido como “eu superior” e “alma espiritual”.

Os 34 fragmentos são apresentados em itálico, em negrito. Ao final de cada um deles são indicados o Livro (ou Parte), o capítulo e o parágrafo a que pertencem.

Um: a Fonte Mais Alta

“A doutrina de Cristo é mais excelente que a de todos os santos (…).” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)

Comentário:

A primeira frase selecionada de “Imitação” significa que devemos ir à fonte mais elevada possível.

Os Evangelhos constituem uma autêntica luz inspiradora, quando lidos adequadamente. Eles contêm um grande número de ensinamentos pitagóricos, judaicos, confucionistas e budistas, e muitos princípios retirados de outras religiões.

No entanto, os ensinamentos de “Cristo” também estão além da literatura. Eles correspondem simbolicamente à “voz do silêncio”, o mantra sem palavras emitido pela própria alma de cada buscador da verdade, em seu aspecto universal e divino.

Dois: um Maná Invisível

“… E quem tiver seu espírito encontrará nela [na doutrina de Cristo] um maná escondido.”  (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)

Comentário:

Nenhuma leitura da letra morta pode ser eficiente em filosofia ou religião. O real significado está oculto, do ponto de vista do mundo das aparências. Portanto o estudo filosófico deve combinar vários níveis de consciência. É necessário decodificar as palavras para ver o ensinamento como um processo vivo e criativo.

Três: a Visão Correta

“Quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo, é-lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)

Comentário:

Para realmente entender a teosofia, devemos testar e aplicar o seu ensinamento na vida diária. O mundo sagrado está potencialmente presente em cada situação. A vida de H.P. Blavatsky – assim como a de outros sábios de diferentes épocas – constitui  uma fonte autorrenovada de orientação e nos inspira.

Quatro: Além das Palavras

“Que te aproveita discutires sabiamente sobre a Santíssima Trindade, se não és humilde, desagradando, assim, a essa mesma Trindade? Na verdade, não são palavras elevadas que fazem o homem justo; mas é a vida virtuosa que o torna agradável a Deus. Prefiro sentir a contrição [arrependimento] dentro de minha alma, a saber defini-la.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)

Comentário:

“Deus” é a  lei universal, e é a Natureza  em sua totalidade e diversidade absolutas. A Trindade simboliza o mistério da unidade interior que convive com o contraste e diferença externos.  

Nenhuma fala pode ser mais valiosa que a intenção que está na sua origem. Tampouco pode ser muito mais forte que a prática diária da qual emerge.  

Cinco: a Caridade e a Graça

“Se soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos, de que te serviria tudo isso sem a caridade e a graça de Deus?” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)

Comentário:

Ainda que você saiba recitar de memória as escrituras religiosas de todos os povos e os ensinamentos de cada filósofo clássico, oriental e ocidental, o fato será inútil se você não perceber a unidade de todos os seres, e não enxergar o seu próprio dever para com a Vida Una da qual você faz parte.

Seis: a Suprema Sabedoria

“Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade (Eclesiastes, 1, 2), senão amar a Deus e só a ele servir. A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao reino dos céus.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)

Comentário:

Tudo é vaidade, exceto a tarefa de cumprir nosso dever para com nosso eu superior e para com a lei do equilíbrio universal.

Sete: uma Felicidade que Dura Sempre

“Vaidade é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar nelas. Vaidade é também ambicionar honras e desejar posição elevada. Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar aquilo pelo que, depois, serás gravemente castigado. Vaidade, desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se de que seja boa. Vaidade, só atender à vida presente sem providenciar para a futura. Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 4.)

Comentário:

Estar preocupado sobretudo com coisas de curto prazo, e desprezar o futuro de longo prazo – que eu mesmo estou, em grande parte, preparando durante minha encarnação atual -;  isso também é vaidade.

Oito: Buscar o Invisível

“Lembra-te a miúdo do provérbio: ‘Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir’ (Eclesiastes 1, 8). Portanto, procura desapegar teu coração do amor às coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis: pois aqueles que satisfazem seus apetites sensuais mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 5.)

Comentário:

A verdadeira consciência é a voz sem palavras do nosso eu superior ou alma espiritual.

As palavras “graça de Deus” designam a energia sutil e impessoal do amor cósmico e indicam o sexto princípio da consciência humana. A expressão revela a unidade transcendente dos seres ao mesmo tempo que respeita a sua aparente diversidade. A graça superior está em  todas as partes. Não pertence a alguma divindade específica, muito menos a um deus “pessoal”.

Nove: o Valor do Conhecimento

“Todo homem tem desejo natural de saber; mas que aproveitará a ciência, sem o temor de Deus? Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus, do que o filósofo soberbo que observa o curso dos astros mas se descuida de si mesmo.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 1.)

Comentário:

Nosso Criador é o nosso eu superior, que fez com que nascêssemos na presente encarnação, mas também pode ser descrito como a Lei Universal.

Aquele que “teme a Deus”, ou “reverencia o mundo divino”, é quem vive em harmonia com sua própria alma espiritual.

Em teosofia, o astrônomo e o  humilde camponês devem ser a mesma pessoa. Não há oposição entre os dois: o real conhecimento é inseparável da pureza de coração.

Dez: Autoconhecimento

“Aquele que se conhece bem despreza-se e não se compraz em humanos louvores. Se eu soubesse quanto há no mundo, porém me faltasse a caridade, de que me serviria isso perante Deus, que me há de julgar segundo minhas obras?” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 1.)

Comentário:

“Desprezar-se” aqui significa desprezar o caminho falso do egoísmo e admitir sinceramente seus erros perante o tribunal da sua própria consciência.

Neste trecho temos um princípio teosófico central. O “deus” que me irá julgar é o meu eu superior. Ao final da minha encarnação atual, ele revisará cada ação feita, estabelecendo as linhas cármicas não só dos meus estados pós-morte, mas do meu próximo nascimento.

Onze: Evitar Distrações

“Renuncia ao desordenado desejo de saber, porque nele há muita distração e ilusão. Os letrados gostam de ser vistos e tidos como sábios. Muitas coisas há cujo conhecimento pouco ou nada aproveita à alma. E muito insensato é quem de outras coisas se ocupa e não das que tocam à sua salvação. As muitas palavras não satisfazem à alma, mas uma palavra boa refrigera [renova] o espírito e uma consciência pura inspira grande confiança em Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 2.)

Comentário:

A demonstração externa de santidade ou de erudição não satisfaz à alma. Conforme diz outra versão desta obra (“The Imitation of Christ”, translated by P.G. Zomberg, Dunstan Press), “é a bondade das nossas vidas que traz conforto às nossas mentes”.  E Helena Blavatsky escreveu:

“…A Ética da Teosofia é ainda mais necessária à humanidade do que os aspectos científicos dos fatos psíquicos da natureza e do homem.” [4]

Doze: uma Vida Sagrada

“Quanto mais e melhor souberes, tanto mais rigorosamente serás julgado, se com isso não viveres mais santamente. Não te desvaneças, pois, com qualquer arte ou conhecimento que recebeste.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 3.)

Comentário:

O “Dia do Julgamento” é também individual e não necessariamente coletivo,  conforme o pensador português Antônio Vieira explicou no ano de 1652 em um dos seus sermões.[5]

O “julgamento” individual é feito pelo nosso próprio eu superior de acordo com a Lei do Carma e acontece ao final de cada encarnação. Os “julgamentos” coletivos são pontos cármicos de não-retorno na evolução humana e planetária. Eles são examinados no livro “A Doutrina Secreta”, de Helena Blavatsky.

O que fazemos com o nosso suposto conhecimento é a questão-chave para a teosofia autêntica. O conhecimento precisa ser confirmado e validado pela ação correspondente, e esta será necessariamente imperfeita. A ação correta consiste na tentativa sincera de fazer o melhor que podemos. Nossos esforços nesse sentido devem ser corrigidos e renovados periodicamente, à medida que as circunstâncias se alteram. Gradualmente aprendemos a aprender com os erros, e a concentrar a mente e o coração na meta nobre livremente escolhida por nós. 

Treze: Para Aprender o que é Útil

“Se te parece que sabes e entendes bem muitas coisas, lembra-te que é muito mais o que ignoras. ‘Não presumas de alta sabedoria’ (Romanos, 11, 20), antes confessa a tua ignorância. Como tu queres a alguém preferir-te, quando se acham muitos mais doutos do que tu e mais versados na lei? Se queres saber e aprender coisa útil, deseja ser desconhecido e tido por nada.” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 3.)

Comentário:

Nossos pensamentos devem ser  honestos e verdadeiros. Seja o que for que disserem os que nem sequer tentam agir com ética e com respeito pela verdade, eles são seres infelizes e estão muito longe do caminho correto. No entanto, merecem nosso respeito impessoal. Colherão o que plantaram, e no futuro terão uma chance de corrigir seus erros.

Devemos ter como objetivo aprender com quem é mais sábio que nós. Não importa se o nosso contato com eles é interno ou externo e se ocorre através de palavras escritas ou sem o uso de palavras. [6] Para viver esta aprendizagem superior, é preciso tratar de ajudar o trabalho das Almas que guiam a humanidade pelo caminho da luz.  

Catorze: Permaneça Vigilante

“Ainda quando vejas alguém pecar publicamente ou cometer faltas graves, nem por isso te deves julgar melhor, pois não sabes quanto tempo poderás perseverar no bem.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 4.)

Comentário:

Combata o crime e o egoísmo. Lute ainda mais contra as sementes deles e as suas fontes. Não lave as mãos diante da injustiça de qualquer tipo. Encare a injustiça contra qualquer um como uma injustiça contra o seu pai, a sua mãe ou seu mestre espiritual. Tenha piedade e compaixão diante das pessoas egoístas, mas não aceite as suas ações daninhas. Os desinformados são parte da família humana, assim como você.

Quinze: Não Compare

“Nós todos somos fracos mas a ninguém deves considerar mais fraco que a ti mesmo.” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 4.)

Comentário:

Cabe seguir o exemplo dos sábios,  e manter à nossa frente o ideal de progresso e perfeição humanos.

Se parecemos mais fortes do que alguém, isso não tem importância. E se pensarmos que o fato é importante, este pensamento vaidoso mostra fraqueza e ilusão.

Dezesseis:  Ignorando Questões Obscuras

“Bem-aventurado aquele a quem a verdade por si mesma ensina, não por figuras e vozes que passam, mas como em si é. Nossa opinião e nossos juízos muitas vezes nos enganam e pouco alcançam. De que serve a sutil especulação sobre questões misteriosas e obscuras [7], por cuja ignorância não seremos julgados?” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 1.)

Comentário:

Agir de acordo com a Lei do Equilíbrio é melhor que estar limitado a explicações teóricas. No entanto, combinar as duas coisas é necessário. O lema do movimento teosófico é “Não há religião mais elevada que a verdade”. A Verdade transcende todas as suas descrições verbais, mas os enfoques limitados dela são úteis, quando examinados de modo inteligente.

Dezessete:  Olhar e Não Ver

“Grande loucura é descurarmos as coisas úteis e necessárias, entregando-nos, com avidez, às curiosas e nocivas. Temos olhos para não ver. (Salmo 113, 13)” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 1.)

Comentário:

A melhor defesa do peregrino é o cumprimento do seu dever maior.

A compreensão saudável da vida depende de olhar para ela desde um ponto de vista correto, e é a prática do altruísmo que garante isso. As mentes egoístas distorcem tudo o que olham: a verdadeira inteligência é universal.   

Dezoito: o Coração Firme na Paz

“Aquele a quem fala o Verbo eterno se desembaraça de muitas questões. Desse Verbo único procedem todas as coisas e todas o proclamam e esse é o princípio que também nos fala (João 8, 25). Sem ele não há entendimento nem reto juízo. Quem acha tudo neste Único, e tudo a ele refere e tudo nele vê, poderá ter o coração firme e permanecer em paz com Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 2.)

Comentário:

O trecho inteiro ressoa em harmonia com os escritos de H. P. Blavatsky. 

O Verbo é o “Som” primordial, o Mantra da manifestação universal, a Música das Esferas.

Dezenove:  Silêncio e Verdade

“Ó Deus de verdade, fazei-me um convosco na eterna caridade! Enfastia-me, muita vez, ler e ouvir tantas coisas; pois em vós acho tudo quanto quero e desejo. Calem-se todos os doutores, emudeçam todas as criaturas em vossa presença; falai-me vós só.” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 2.)

Comentário:

A personalização simbólica do universo e de suas leis deve ser aceita como um processo cultural que ocorre em todas as nações ao redor do mundo, e como uma forma de codificar e registrar o  Mistério inefável. A tradição esotérica ensina como interpretar as lendas relacionadas a Zeus e Saturno, ao deus cristão, ao Brahman e ao Parabrahman hindus, aos Imortais taoistas, e assim por diante.

Quando a crença cega predomina, algo é considerado verdade porque “deus”,  ou o Cristo, ou algum profeta ou guru diz que é verdade. Em filosofia, ocorre o contrário. Algo não é verdade porque um sábio afirma que é,  mas o sábio diz que algo é verdadeiro porque essa é a verdade.

O verdadeiro Mestre nunca se coloca acima da lei ou da verdade, mas trabalha humildemente a serviço delas.  

Vinte: Recolhimento Traz Compreensão

“Quanto mais recolhido for cada um e mais simples de coração, tanto mais sublimes coisas entenderá sem esforço, porque do alto recebe a luz da inteligência.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 3.)

Comentário:

Este ensinamento é parte da teosofia original de Helena Blavatsky e dos Mestres de Sabedoria.

Vinte e Um: o Espírito Puro

“O espírito puro, singelo e constante não se distrai no meio de múltiplas ocupações porque faz tudo para honra de Deus, sem buscar em coisa alguma o seu próprio interesse. O que mais te impede e perturba do que os afetos imortificados do teu coração? O homem bom e piedoso ordena primeiro no seu interior as obras exteriores; nem estas o arrasam aos impulsos de alguma inclinação viciosa, senão que as submete ao arbítrio da reta razão.” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 3.)

Comentário:

Nosso “Deus” ou “Senhor” é anônimo: é o nosso eu superior, e a ele devemos lealdade.  

Vinte e Dois: Enxergando as Nossas Fraquezas

“Que mais rude combate haverá do que procurar vencer-se a si mesmo? E este deveria ser nosso empenho: vencermo-nos a nós mesmos, tornarmo-nos cada dia mais fortes e progredirmos no bem.”

“Toda a perfeição, nesta vida, é mesclada de alguma imperfeição, e todas as nossas luzes são misturadas de sombras. O humilde conhecimento de ti mesmo é caminho mais certo para Deus que as profundas pesquisas da ciência.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parágrafos 3 e 4.)

Comentário:

O cristianismo que gira em torno de rituais não oferece um caminho para o esclarecimento e a iluminação. O estudo da letra morta das escrituras é inútil, e a advertência inclui os escritos teosóficos. Para trilhar o caminho que leva à Verdade é necessário fazer pesquisas independentes, com um coração humilde e observando calmamente nossas próprias fraquezas.   

Vinte e Três: a Vida Virtuosa

“Não é reprovável a ciência ou qualquer outro conhecimento das coisas, pois é boa em si e ordenada por Deus; sempre, porém, devemos preferir-lhe a boa consciência e a vida virtuosa. Muitos, porém, estudam mais para saber, que para bem viver; por isso erram a miúdo e pouco ou nenhum fruto colhem.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 4.)

Comentário:

O propósito da vida é aprender. No entanto cada porção de conhecimento que obtemos vem até nós com uma inevitável quota de  deveres éticos.

Cabe examinar cuidadosamente para que usamos o conhecimento. Porque só um coração honesto, ao buscar metas nobres, sabe usar o conhecimento de maneira correta e está à altura das informações mais amplas sobre a vida.  

Vinte e Quatro: a Pergunta Que Será Feita

“Ah! se se empregasse tanta diligência em extirpar vícios e implantar virtudes como em ventilar questões, não haveria tantos males e escândalos no povo, nem tanta relaxação nos claustros. De certo, no dia do juízo não se nos perguntará o que lemos, mas o que fizemos; nem quão bem temos falado, mas quão honestamente temos vivido.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 5.)

Comentário:

O cristianismo místico sempre teve uma relação difícil com as igrejas autoritárias.

Um exemplo disso, entre milhares, é o fato de que Geert de Groote – o fundador da Irmandade da Vida em Comum da qual fazia parte Tomás de Kempis -, denunciou e combateu os abusos sacerdotais. [8]

Vinte e Cinco: o Verdadeiro Sábio

“Dize-me: onde estão agora todos aqueles senhores e mestres que bem conheceste, quando viviam e floresciam nas escolas? Já outros possuem suas prebendas [posições de prestígio], e nem sei se porventura deles se lembram. Em vida pareciam valer alguma coisa, e hoje ninguém deles fala.”

“Oh! como passa depressa a glória do mundo! Oxalá a sua vida tenha correspondido à sua ciência; porque, destarte, terão lido e estudado com fruto. Quantos, neste mundo, descuidados do serviço de Deus, se perdem por uma ciência vã! E porque antes querem ser grandes que humildes, se esvaecem em seus pensamentos (Romanos 1, 21). Verdadeiramente grande é aquele que tem grande caridade. Verdadeiramente grande é aquele que a seus olhos é pequeno e avalia em nada as maiores honras. Verdadeiramente prudente é quem considera como lodo tudo o que é terreno, para ganhar a Cristo (Filipenses 3, 8). E verdadeiramente sábio é aquele que faz a vontade de Deus e renuncia à própria vontade.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parágrafos 5 e 6.)

Comentário:

A “vontade de Deus” é o propósito da nossa alma espiritual; “Cristo” simboliza a consciência cósmica.

Vinte e Seis: Independência e Autorresponsabilidade

“Não se há de dar crédito a toda palavra nem a qualquer impressão, mas cautelosa e naturalmente se deve, diante de Deus, ponderar as coisas.”  (Livro Primeiro, capítulo 4, parág. 1.)

Comentário:

Com a exceção da palavra “Deus”,  esta ideia pertence literalmente às filosofias de todos os povos, incluindo o budismo, o pitagorismo e a teosofia.

Vinte e Sete:  Evite Falar Mal dos Outros

“Mas ai! que mais facilmente acreditamos e dizemos dos outros o mal que o bem, tal é a nossa fraqueza. As almas perfeitas, porém, não creem levianamente em qualquer coisa que se lhes conta, pois conhecem a fraqueza humana inclinada ao mal e fácil de pecar por palavras.”

“Grande sabedoria  é não ser precipitado nas ações, nem aferrado obstinadamente à sua própria opinião; sabedoria é também não acreditar em tudo que nos dizem, nem comunicar logo a outros o que ouvimos ou suspeitamos.” (Livro Primeiro, capítulo 4, parágrafos 1 e 2.)

Comentário:

Este ensinamento é teosófico e H. P. Blavatsky fez afirmações semelhantes.

Vinte e Oito: Prudência e Humildade

“Toma conselho com um varão sábio e consciencioso, e procura antes ser instruído por outrem, melhor que tu, que seguir teu próprio parecer. A vida virtuosa faz o homem sábio diante de Deus e entendido em muitas coisas. Quanto mais humilde for cada um em si e mais sujeito a Deus, tanto mais prudente será e calmo em tudo.” (Livro Primeiro, capítulo 4, parágrafo 2.)

Comentário:

Entre  os degraus da Escada de Ouro dos ensinamentos teosóficos, podemos ver  os seguintes:

“Afeto fraternal para com seu codiscípulo; presteza para dar e receber conselho e instrução; leal senso de dever para com o Instrutor…”. [9]

Os sábios ensinam que a ajuda mútua  é essencial na busca da verdade.

Vinte e Nove:  o Amor à Verdade

“Nas Sagradas Escrituras devemos buscar a verdade, e não a eloquência. Todo livro sagrado deve ser lido com o mesmo espírito que o ditou. Nas Escrituras devemos antes buscar nosso proveito que a sutileza de linguagem. Tão grata nos deve ser a leitura dos livros simples e piedosos, como a dos sublimes e profundos. Não te mova a autoridade do escritor, se é ou não de grandes conhecimentos literários; ao contrário, lê com puro amor a  verdade. Não procures saber quem o disse;  mas considera o que se diz.” (Livro Primeiro, capítulo 5, parág. 1.)

Comentário:

A ideia de Sagradas Escrituras inclui os livros clássicos que pertencem às  religiões e filosofias de todos os povos e todos os tempos, desde o Manuscrito Huarochirí,  dos Andes, até o “Popol Vuh” da América Central e “A Doutrina Secreta”, publicada no século 19. 

Deve-se ler os livros sobre sabedoria divina desde  o ponto de vista do coração e de acordo com a afinidade interior.

Trinta: a Verdade Fala de Muitos Modos

“Os homens passam, mas a verdade do Senhor permanece eternamente (Salmo 116, 2). De vários modos nos fala Deus, sem acepção de pessoas.” (Livro Primeiro, capítulo 5, parág. 2.)

Comentário:

A anônima Lei Universal fala para nós de muitas maneiras.

Um Mestre de Sabedoria escreveu para uma discípula leiga: “Trate, filha, de aprender uma lição através de quem quer que seja que ela estiver sendo dada. ‘Até mesmo as pedras podem pregar sermões’.” [10]

A independência é fundamental, e o Buddha ensinou:

“Não se deixem desorientar por relatos, por tradição ou por ouvir dizer. Não se deixem desorientar pelo conhecimento das Coleções (de Escrituras), nem por mera lógica e inferência, nem pela consideração de razões, nem pela reflexão sobre algum ponto de vista e pela aprovação dele, nem pela conveniência, nem pelo fato de o recluso (que defende o ponto de vista) ser o seu instrutor. Mas quando vocês souberem por si mesmos: ‘Estas coisas não são boas, estas coisas são erradas, estas coisas são censuradas pelos inteligentes, estas coisas, quando realizadas e colocadas em prática, conduzem à perda e ao sofrimento’ – então as rejeitem.” [11]

Trinta e Um: Lê com Humildade

“A nossa curiosidade nos embaraça, muitas vezes, na leitura das Escrituras; porque queremos compreender e discutir o que se devia passar singelamente. Se queres tirar proveito, lê com humildade, simplicidade e fé, sem cuidar jamais do renome do letrado.”

“Pergunta de boa vontade e ouve calado as palavras dos santos; nem te desagradem as sentenças dos velhos, porque eles não falam sem razão.” (Livro Primeiro, capítulo 5, mesmo parág. 2.)

Comentário:

Lê os escritos dos homens e mulheres sábios de todos os tempos.

Escuta os teus codiscípulos, porque eles são corresponsáveis pelo teu bem-estar espiritual,  e a responsabilidade é mútua. Podes aprender com as ações corretas deles, e também podes aprender com os erros deles, assim como eles aprendem com os teus erros e teus acertos.

Trinta e Dois: Aceita a Paz

“Todas as vezes que o homem deseja alguma coisa desordenadamente, torna-se logo inquieto. O soberbo e o avarento nunca sossegam; entretanto, o pobre e o humilde de espírito vivem em muita paz. O homem que não é perfeitamente mortificado facilmente é tentado e vencido, até em coisas pequenas e insignificantes. O homem espiritual, ainda um tanto carnal e propenso à sensualidade, só a muito custo poderá desprender-se de todos os desejos terrenos. Daí a sua frequente tristeza, quando deles se abstém, e fácil irritação, quando alguém o contraria.”

“Se, porém, alcança o que desejava, sente logo o remorso da consciência, porque obedeceu à sua paixão, que nada vale para alcançar a paz que almejava. Em resistir, pois, às paixões, se acha a verdadeira paz do coração, e não em segui-las. Não há portanto, paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas externas, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual.” (Livro Primeiro, capítulo 6, parágrafos 1 e 2.)

Comentário:

O estudante bem informado mantém uma busca constante do ideal de progresso e perfeição  humanos, e faz experiências práticas de desapego em relação às coisas terrenas.

O peregrino evita dois extremos.

Ele não deve obedecer cegamente aos apetites inferiores; de outro lado, é inútil seguir um tipo de disciplina que gera um excesso de conflitos neuróticos. O equilíbrio é essencial. O esforço é de longo prazo, e cada um deve ser o seu próprio mestre e discípulo.

Há também marés cármicas, que devem ser observadas e compreendidas nesse esforço de uma vida inteira.

Uma vez que o peregrino compreende verdades universais, os desejos do eu inferior perdem força  gradualmente. A disciplina diária, o estudo e a contemplação da lei universal destroem pouco a pouco as raízes do egocentrismo no eu inferior do estudante.  

O alicerce da autodisciplina vitoriosa está na compreensão da nossa interconexão pessoal com o Cosmo inteiro. Quando o horizonte individual inclui  o horizonte da galáxia, fica mais fácil aceitar a paz e a vida humilde no plano físico.

Trinta e Três: Vive Como um Pobre

“Insensato é quem põe sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de servir a outrem por Jesus Cristo, e ser tido como pobre neste mundo.” (Livro Primeiro, capítulo 7, parág. 1.)

Comentário:

A ideia de que alguém não deve ter vergonha de servir a outrem pelo bem da sua própria alma espiritual  está presente em religiões mais antigas que o cristianismo.

Nos Vedas, por exemplo, o Brhad-aranyaka Upanixade afirma:

“Não é pelo marido em si que o marido é amado, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] no marido, que o marido é amado. Não é pela esposa em si que a esposa é amada, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal]  na esposa, que a esposa é amada. Não é pelos filhos em si mesmos que os filhos são amados, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] nos filhos, que os filhos são amados.” [12]

Há uma dimensão impessoal e divina nos afetos humanos,  da qual podemos tornar-nos plenamente conscientes.

Trinta e Quatro: Faze o que Está a Teu Alcance

“Não confies em ti mesmo, mas põe em Deus [a Lei] tua esperança. Faze de tua parte o que puderes, e Deus [a Lei] ajudará tua boa vontade. Não confies em tua ciência, nem na sagacidade de qualquer vivente, mas antes na graça de Deus [a Lei], que ajuda os humildes e abate os presunçosos.”  (Livro Primeiro, capítulo 7, mesmo parág. 1.)

Comentário:

A renúncia ao desejo pessoal conduz a uma vida de simplicidade voluntária, na qual a ética e a sabedoria são possíveis.

A justiça é imparcial, e um dos Mahatmas dos Himalaias escreveu que, para os raja-iogues, “um lustrador de botas honesto é tão bom quanto um rei honesto, e […] um varredor de ruas imoral é muito melhor e mais desculpável do que um imperador imoral.” [13]

A recomendação “faze de tua parte o que puderes…” expressa a principal ideia dos ensinamentos de Epicteto. Ao cumprir o seu dever espiritual interno, o peregrino  evita desperdiçar energias com o que não depende dele. Focando a atenção no que lhe diz respeito, ele aprende a cooperar não só com o seu próprio eu superior, mas com outros seres, mais experientes e mais avançados.




Carlos Cardoso Aveline


Fonte do Texto e da Gravura: FilosofiaEsotérica
https://www.filosofiaesoterica.com/a-imitacao-de-cristo/



NOTAS:

[1] “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis, Ed. Vozes, Petrópolis, vigésima-oitava edição, 1993, 277 pp.  O livro tem numerosas edições em português, inclusive da editora Ediouro (1968), em que o nome de autor aparece como Thomas A. Kempis; da Editora Ave-Maria Ltda. (SP, 1928), em que não há nome de autor; e da Livraria Editora Francisco Alves, RJ, 1898, traduzido em versos por Affonso Celso e com 620 páginas. O livro, o capítulo e o parágrafo de cada citação são mencionados entre parênteses no seu final.  Edições em inglês da obra incluem: “The Imitation of Christ”, translated by P.G. Zomber, Dunstan Press, Maine, USA, copyright 1984, 250 pp.;  “Of the Imitation of Christ”, by Thomas à Kempis, Whitaker House, USA, 1981, 256 pp.; “The Inner Life”, Penguin Books, 2004, translated by Leo Sherley-Price, 108 pp.; e “The Imitation of Christ”, Thomas A. Kempis, translated by George F. Maine, published by Collins Sons, 1957, London and Glasgow, 1957, 280 pp.

[2] “A Concise Encyclopedia of Christianity”, Geoffrey Parrinder, itens “Brethren of the Common Life”, “Kempis, Thomas à”,  e “Nicholas of Cusa”.

[3] Sobre Nicolau de Cusa, veja em nossos websites o artigo “Reencarnação Consciente e Imediata”.  Examine também “Collected Writings”, H. P. Blavatsky, TPH, vol. XIV, pp. 377-378. Leia os itens “Nicholas of Cusa” e “Brethren of the Common Life”, conforme as indicações dadas na Nota 2, acima.  Cabe ter presente o fato de que H.P. Blavatsky escreve, em “Ísis Sem Véu”, Ed. Pensamento, volume III, p. 29:   “A Magia, em todos os seus aspectos, foi amplamente e quase abertamente praticada pelo clero até a Reforma.” De posse destas informações, fica mais fácil compreender por que a mística cristã, incluindo o franciscanismo, tem até hoje elementos teosóficos importantes.

[4] “Five Messages”, H. P. Blavatsky, Theosophy Co., Los Angeles, 1922, Second message, p. 12. O livreto está disponível  em nossos websites. Para vê-lo, basta clicar aqui.  

[5] Padre Antônio Vieira, “Sermões”, Editora das Américas, SP, volume IV, 1957, 441 pp., ver por exemplo pp. 28-40.

[6] Um tal contato frequentemente inclui as palavras escritas de ensinamentos clássicos  e uma inspiração silenciosa em níveis superiores de percepção.

[7] Uma das melhores edições em inglês desta obra, preparada por P.G. Zomber (ver nota 1, acima), usa a expressão “coisas esotéricas”, “esoteric things” (p. 6).

[8] Veja “A Concise Encyclopedia of Christianity”, Geoffrey Parrinder, item “Brethren of the Common Life”, p. 48.

[9] Examine o artigo “Comentários à Escada de Ouro”.

[10]  “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C. Jinarajadasa, Ed. Teosófica, Brasília, 1996, ver p. 147, segunda carta para Laura C. Holloway.

[11] “The Wisdom of Buddhism”, Edited by Christmas Humphreys, Curzon-Humanities, London, UK, 1987, 280 pp., p. 71. 

[12] “The Principal Upanisads”, Edited with Notes by S. Radhakrishnan, London: George Allen & Unwin Ltd; New York: Humanities Press Inc., 1974, 958 pp., ver p. 197.

[13] “Cartas dos Mahatmas”, Ed. Teosófica, Brasília, volume I, Carta 29, p. 158.

A SABEDORIA ECOLÓGICA DOS INDÍGENAS



O Que Temos a Aprender Com os Povos Tradicionais


Em vários aspectos, o mais novo e o mais velho se unem hoje para renovar e ampliar radicalmente nosso modo de enxergar a realidade.

Nas últimas décadas do século 20, a vanguarda da física redescobriu a filosofia esotérica através de Fritjof Capra, David Bohm e outros. O químico da NASA Jim Lovelock descobriu que o planeta Terra pode ser considerado um ser vivo – como pensava o mundo grego – e criou a teoria de Gaia. Na biologia, Rupert Sheldrake resgatou velhos conceitos da filosofia do oriente, especialmente o akasha e a luz astral, através de modernos métodos experimentais. Estas mudanças na visão científica do mundo estabelecem as bases para uma relação inteiramente nova entre ser humano e ambiente natural, e nos fazem compreender, também, que podemos aprender grandes lições avaliando melhor a filosofia de vida dos primeiros habitantes da América. 

Segundo a ecologia profunda, todos os seres têm – em princípio – igual direito à vida. Esta corrente de pensamento aberta e sem dogmas foi criada na Noruega no início da década de 70 pelo filósofo e músico Arne Naess. Nos últimos anos os livros e seminários dedicados ao tema têm ganhado espaço rapidamente, inclusive no Brasil.

Embora seja moderno na aparência e inspire uma nova geração de cientistas, este modo de enxergar a vida é antigo e tradicional. A autoria do maior e mais famoso manifesto de ecologia profunda que conheço é atribuída ao chefe Seattle, dos índios norte-americanos Duwamish, em 1855, isto é, onze anos antes de o biólogo alemão Ernest Haeckel propor pela primeira vez, em 1866, a criação de uma “nova disciplina” a ser chamada no futuro de “ecologia”. O chefe Seattle perguntou ao presidente norte-americano Franklin Pearce, que lhe havia proposto comprar as terras indígenas:

“É possível comprar ou vender o céu e o calor da terra? Tal ideia é estranha para nós. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como você poderá comprá-los? Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada areia da praia, cada bruma nas densas florestas, cada clareira e cada inseto a zumbir são sagrados na memória do meu povo. A seiva que corre através das árvores carrega as memórias do homem vermelho.”

A ideia central da ecologia profunda é abandonar a ideia de que a natureza é apenas um amontoado de “recursos naturais”. Todo egoísmo tem uma vocação inevitável para o fracasso, e as políticas de preservação ambiental implantadas no século 20 fracassaram amplamente porque partiam de uma filosofia baseada na ideia de que o homem pode usar e abusar da natureza. Quando você parte de uma premissa falsa, seu raciocínio e sua prática estão destinados à derrota. Só quando deixamos de lado a impressão ilusória de que o homem é o centro do universo passa a ser possível, para nós, perceber que pertencemos à natureza, somos seus filhos e devemos respeitá-la. A premissa correta, centro da filosofia do futuro, afirma que a alma da vida universal está presente em todas as coisas, e o homem é parte dela. Cabe a ele, agora, ser consciente disso. Assim a preservação ambiental terá êxito. Nas palavras do chefe Seattle:

“Os rios são nossos irmãos, eles saciam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar às suas crianças que os rios são nossos irmãos, e seus também, e vocês devem, daqui em diante, dar aos rios a bondade que dariam a qualquer irmão.”

Em uma análise comparativa, poucos deixariam de afirmar que nossa civilização tecnológica é mais avançada que as dos indígenas. Mas o que estamos fazendo com nossas crianças? Abandonando-as?  Matando-as? Prostituindo-as? O que são os assaltantes das grandes cidades além de crianças abandonadas que cresceram aprendendo violência?

Considerando o que estamos fazendo com nossos rios e florestas e também o grau de violência, corrupção e poluição que há em nossas cidades, em que coisas somos de fato melhores, e em que aspectos somos mais bárbaros, mais violentos e atrasados que os indígenas das Américas tradicionais?

“Não há um lugar calmo nas cidades do homem branco”, afirma a carta dos duwamish: “Nenhum lugar para escutar o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreenda. O ruído parece apenas insultar os ouvidos. E o que resta da vida, se o homem não pode escutar o choro solitário de um pássaro ou o coaxar dos sapos em volta de uma lagoa à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio aroma do vento, limpo por uma chuva do meio-dia, ou perfumado pelos pinheiros.”

Recuperar a capacidade de conviver com o mundo natural é avançar em direção àquele futuro em que as cidades trarão para si o melhor do campo, e o campo terá em si o melhor das cidades. Então desaparecerão as doenças físicas e emocionais causadas pela tensão nervosa das grandes cidades. Desaparecerão fenômenos como a síndrome do pânico, a insegurança das ruas modernas ou a violência contra os agricultores sem terra. E ainda respiraremos melhor, como os indígenas faziam. Também neste aspecto, temos a aprender com eles:

“O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro. O animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. O homem branco parece não sentir o ar que respira. Como um animal que agoniza há vários dias, ele é incapaz de sentir o mau cheiro. (…) Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas crianças. Tudo o que ocorrer com a terra, ocorrerá com os filhos da terra. Se os homens desprezam o solo, estão desprezando a si mesmos. A terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra.” [1]

Um testemunho menos conhecido, mas não menos belo, foi deixado a nós pelo chefe Urso-em-pé, dos Lakota. Ele disse, lembrando de tempos anteriores:

“Os velhos Lakota amavam o solo e sentavam-se ou reclinavam-se no chão com o sentimento de estarem próximos de um poder maternal. Era bom para a pele tocar a terra, e os velhos gostavam de se descalçar e andar com os pés nus sobre a terra sagrada. As tendas eram erguidas sobre a terra, e os altares feitos de terra. O solo era tranquilizante, revigorador, purificador e medicinal. Por isso é que os velhos índios ainda se sentam diretamente na terra, fonte de suas forças vitais. Para eles, sentar-se ou deitar-se no chão permite pensar com mais profundidade e sentir com mais clareza; podem penetrar nos mistérios da vida e descobrir seu parentesco com outras formas de vida ao redor. (…) Os velhos Lakota eram sábios. Sabiam que o coração do homem distante da natureza se torna duro; sabiam que a falta de respeito pelas coisas vivas leva imediatamente à falta de respeito pelos humanos.” [2]

Urso-em-pé mencionou aqui uma causa central da violência e degeneração da vida emocional das grandes cidades. Dominadas hoje por meios eletrônicos de “comunicação” cuja influência parece crescer lado a lado com a falta de comunicação real entre seres humanos, as cidades degeneram pelo seu distanciamento da natureza e dos seus ritmos vitais básicos. Como um animal em cativeiro que perde a alegria de viver, o ser humano distante da natureza é preso por suas preocupações pessoais, e dificilmente encontra paz, dentro ou fora de si. O resultado é a violência: primeiro em pensamento e sentimento, e depois na realidade externa. 

Por outro lado, temos alguns erros em comum com as sociedades indígenas e um deles é a superstição. A maior parte da população brasileira atual, herdeira da cultura europeia, ainda é guiada por fortes crenças ilusórias. Algumas das nossas superstições são materialistas (como pensar que o dinheiro traz felicidade), e outras são religiosas (como a de pensar que, para ser religioso, basta adorar e pedir favores a um Deus em forma humana). Até mesmo nossos modernos pajés, os cientistas e intelectuais, participam em grande parte das superstições coletivas da nossa civilização.

Os indígenas também tinham uma visão relativamente estreita do mundo. Vemos com facilidade os erros do pensamento indígena tradicional, porque é sempre fácil enxergar os defeitos alheios e nossas limitações são outras. Mas apesar das cegueiras culturais, dos tabus e nacionalismos tribais, havia em todas as sociedades indígenas – como há hoje na nossa – uma tradição de sabedoria transcendental. Ela permanecia à disposição dos que estavam prontos e eram capazes de erguer os olhos para ela. Quando o aprendiz está pronto, a sabedoria aparece – em qualquer tempo e lugar.

Certo dia o indigenista brasileiro Orlando Villas Bôas ficou surpreso ao conversar com um pajé do rio Xingu, o mais versado, ali, nos conhecimentos que vão além do saber comum. Ele conta o fato em seu livro A Arte dos Pajés [3]. Um pajé de meia-idade, Arru, chegou do mato cansado de caminhar e sentou-se ao lado de Orlando.

“Lá é o céu”, diz Arru, apontando para o alto.

“Sei”, responde Orlando.

“Lá é a aldeia dos que morrem.”

“Sei”, diz Orlando, conhecedor da cultura indígena.

Depois de um momento em silêncio, olhando bem para o alto, Arru acrescenta:

“Lá no céu do céu… ela está lá.”

Orlando pensa que quem está lá no céu do céu deve ser um deus antropomórfico.

“Quem está lá? Um índio velho que sabe tudo?”

A resposta de Arru é enfática:

“Não, apenas uma sabedoria.”

O pajé do Xingu surpreendeu Orlando mostrando que acreditava na existência de uma lei ou sabedoria universal, e que estava livre da superstição de um deus em forma humana, de quem se pode obter favores pessoais fazendo-lhe homenagens como a um rei todo-poderoso.

O diálogo entre Villas Bôas e Arru tem outros aspectos interessantes. A “aldeia dos que morrem”, que existe no céu dos índios xinguanos, é um conceito equivalente, de certo modo, ao kama loka da tradição esotérica. Para o kama loka vão os níveis intermediários da consciência de um ser humano fisicamente morto. Ali, os níveis médios de consciência passam por uma purificação que dará lugar ao devachan ou bem-aventurança, um longo período de descanso antes de um novo renascimento. O devachan equivale à “terra sem males” dos tupis brasileiros,  local mítico e  não-espacial. Ali ninguém morre ou adoece, a lavoura se trabalha sozinha e a colheita ocorre sem que seja necessário fazer esforço.

Do ponto de vista esotérico, não conheço referências muito complexas ou exatas ao processo pós-morte na tradição indígena das Américas. Porém, na sua simplicidade, os povos indígenas reconhecem a existência de um mundo sutil ou astral em que são registrados os nossos atos e no qual vivem seres invisíveis, ao lado das forças arquetípicas da natureza e dos seres que se foram do mundo físico.

“Há na cultura indígena uma total dependência da criatura com o mundo sobrenatural”, escreveu Villas Bôas. Se trocarmos a palavra “sobrenatural” por “astral”, a frase fica correta do ponto de vista esotérico e se aplica não só aos indígenas, mas a todos os povos e seres do mundo em todos os tempos. O mundo físico inteiro é reflexo do mundo astral e, por isso, depende dele. Todas as relações de causa e efeito operam no mundo astral, que é perfeitamente natural, porém invisível ao olhar físico, e que, em seus níveis superiores, leva à vida especificamente imortal e espiritual em que se localiza o devachan e se alcança o nirvana.

As culturas indígenas populares tinham acesso a uma versão simplificada da sabedoria espiritual dos descendentes de Atlântida. Depois da destruição daquele continente, o conhecimento iniciático e esotérico foi inteiramente reorganizado. Então, da Índia e do Egito antigos surgiu uma nova série de civilizações que dura até hoje. Esotericamente, considera-se que os indígenas americanos são descendentes da tradição espiritual Atlântida, que corresponde à quarta raça-raiz, segundo Helena Blavatsky. A nossa quinta raça-raiz, mais racional, perdeu a antiga intuição humana. Mas já começa a recuperá-la em um nível superior, combinando o método científico experimental com a antiga capacidade de comunhão com a natureza e o respeito por todos os seres, habilidades que as sabedorias indígenas, sobreviventes da tradição atlântida, ainda mantêm intactas.

As tradições do extremo oriente são outras tantas ramificações da quarta raça-raiz e têm ensinado lições de grande valor ao nosso confuso ocidente através da medicina tradicional, da meditação zen, das artes marciais de fundo espiritual, do taoismo, e do feng-shui, para citar alguns poucos exemplos. Helena Blavatsky afirma em seu livro clássico “A Doutrina Secreta” que desde o século 19 surgem, aqui e ali, os primeiros cidadãos da sexta raça-raiz. Eles não podem ser identificados por qualquer característica física, mas sim por uma percepção intuitiva dos princípios da sabedoria e da fraternidade universal que guiarão a humanidade, de modo consciente, no futuro. Para a ciência esotérica, a fraternidade universal da humanidade é uma lei, e a diversidade racial é indispensável à evolução.

Neste momento, cabe repensar o processo civilizatório.  É preciso parar a destruição dos ambientes naturais e respeitar os povos que preservam o conhecimento de como viver em intimidade com a natureza. É prioritário proteger as crianças, símbolos do  futuro, e aprender aquela sabedoria universal que permeia a história de todos os povos, independentemente das características físicas, hábitos culturais ou níveis de desenvolvimento tecnológico dos seus cidadãos.

Devemos ter a humildade necessária para reconhecer que os povos mais desenvolvidos tecnologicamente nem sempre foram os mais sábios, e que hoje somos um notável exemplo disso. Devemos ser capazes de lembrar que, segundo o manifesto atribuído ao chefe Seattle, “os cumes rochosos, os sulcos úmidos do campo, o calor do corpo do potro e o homem, todos pertencem à mesma família”.



Carlos Cardoso Aveline



Fonte do Texto e da Gravura: FilosofiaEsotérica
https://www.filosofiaesoterica.com/a-sabedoria-ecologica-dos-indigenas/




NOTAS:

[1] “Preservação do Meio Ambiente – Manifesto do chefe Seattle ao Presidente dos EUA”, Editora Interação/Fundação SOS Mata Atlântica, SP, 1989.

[2] “Pés Nus Sobre a Terra Sagrada”, Compilador: T.C. McLuhan, Ed. L&PM, Porto Alegre, 1994, ver pp. 13-14.

[3] “A Arte dos Pajés”, de Orlando Villas Bôas, Editora Globo, 2000, ver pp. 89-90.