Desejo e ignorância são as duas coisas que nos prendem no samsara, e quem quer isso? Temos de ser capazes de minar essas duas qualidades. Existem diferentes maneiras de manifestação do desejo, e há a ignorância fundamental de não saber a verdadeira natureza das coisas, que não há um lugar permanente para o "eu". Essa posição do "eu" é uma invenção, uma delusão* fundamental. E claro, a maneira que a mente tenta estabelecer a posição do "eu" é tentar se colocar acima ou colocar os outros para baixo, depreciando ou vendo os defeitos nos outros. Essas são algumas das maneiras através das quais sustentamos o nosso descontentamento. Basta lembrar que a noção do "eu" está sempre tentando se estabelecer em coisas que são completamente instáveis e não confiáveis. A verdadeira natureza das coisas é que não há um lugar permanente para o "eu".
[...] (Uma) qualidade nobre mencionada pelo Buda é não exaltar a si mesmo ou menosprezar os outros. Penso que esse é um outro elemento importante em termos da prática do Dharmma - não se trata apenas de tentar eliminar os desejos ou tentar limitar a nossa capacidade para o apego. É reconhecer aquilo que está além de onde o eu se estabelece, onde não estamos tentando nos colocar acima ou diminuir os outros. Não se trata de tentar sustentar a noção de que "eu" sou especial, "eu" sou alguma coisa, ou "eu" sou alguém que tem alguma qualidade única. Chegamos ao ponto de abrir mão de qualquer posição de um "eu".
[...] (Outra) qualidade que o Buda mencionou foi o contentamento com o desenvolvimento da meditação - bhavana - as qualidades internas de bondade, clareza e paz. Há contentamento em abandonar as contaminações - as qualidades inábeis e prejudiciais em que nos envolvemos. Nossas contaminações são tão dolorosas. Vemos que fazemos as coisas por hábito; é realmente patético.
Precisamos reconhecer como podemos chegar a uma situação de contentamento através do desenvolvimento da meditação. O ensinamento do Buda para não exaltar nem menosprezar os outros com respeito aos três requisitos mencionados no suttra também se aplica à meditação. Não precisamos criar a noção de um "eu" com esse treinamento, com esse fundamento básico de afastamento daquilo que é inábil e falso, ou com o desenvolvimento e permanência nessas qualidades benéficas e que estão de acordo com a verdade.
[...] O contentamento é essencial para sustentar a prática. Às vezes, podemos colocar na prática uma grande dose de energia ou entusiasmo idealista, mas essas condições são difíceis de sustentar. Quer seja no plano material (...), ou no plano interno da meditação, inspirem-se na qualidade do contentamento. Façam um esforço para reconhecer quando o descontentamento distorce a percepção, distorce a prática, ou destrói a oportunidade de deliciar-se com os ensinamentos do Buda.
Pratiquem isso que o Buda ensinou. Estabeleçam metas que possam ser alcançadas, metas que são realistas e viáveis. Reconheçam o poder do contentamento e obtenham força dele. Seus esforços irão beneficiar a todos, incluindo as futuras gerações de praticantes do Dharmma (...).
Ajaan Pasanno
* Engano, logro, burla, ilusão, delírio
Fonte: do livro "Meditação - O Coração do Budismo"
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/vectors/eddy-strudel-v%C3%B3rtice-tornado-1454979/