Se você já viu um sapateiro habilidoso trocar uma sola ou polir couro, ou talvez um jardineiro diligente tratar o solo ao redor de uma planta fraca que está tentando recuperar, você saberá do que estou falando. É que existe um jeito, uma atitude e um comportamento que elevam qualquer ofício à categoria de arte.
E há naquele que exerce uma arte com destreza, uma técnica precisa, um conhecimento do assunto e uma experiência que se evidenciam. Mas também, e sobretudo, há uma dedicação, uma paixão e um esquecimento de si que o tornam instrumento de uma vontade maior. O verdadeiro artista dá lugar e deixa penetrar algo que não lhe pertence, que o arrebata e o atravessa. Nesse sentido, quem faz arte torna o sagrado transparente em suas obras, ou seja, Deus se comunica e se manifesta de maneira particular nessas obras e nessas ações.
Dá para viver com arte? Há algo de arte quando nos referimos à "cerimônia do momento" ou "atuação impecável", o que também poderia ser dito em termos menos poéticos como "fazer da melhor maneira possível o que toca a cada momento". Este tema é mais importante do que parece à primeira vista. Se essa forma de comportamento se torna um hábito, modifica substancialmente nossa vida diária.
De fato, se nos aprofundarmos nos detalhes dessa “maneira de se dispor” aos acontecimentos, descobriremos que ela se relaciona com a vivência na "presença", com a "oração incessante", e inclui a atitude de "abandono na providência divina". Assim como são gerados maus hábitos que depois são muito difíceis de erradicar, também podemos nos acostumar a fazer o bem. Mas, o que é isso de fazer bem e como se relaciona com a prática de uma determinada arte?
Poderíamos agir focados no presente, com calma, precisão, harmonia e integridade em todos os momentos, mas por muitos anos nos movemos sob o comando do medo e da inquietação. Aprendemos "até os ossos" a passar para o próximo momento como se ele nos perseguisse, sempre além do agora, saudoso, ansioso, frenético, correndo atrás de uma felicidade miragem que se torna mais esquiva quanto mais fora de nós a colocamos.
Assim, como não podemos mudar completamente o comportamento habitual do corpo e da mente de um dia para o outro, precisamos de um ponto preciso do dia para aplicar nossa atenção máxima no fortalecimento do espírito. Isso tem sido chamado de "o ofício do cultivo espiritual". Uma atividade, talvez mínima, de alguns minutos todos os dias ou a cada dois dias, onde você usa algo material para desenvolver o espiritual. Como veremos ao praticá-lo, descobre-se que o mundo não é realmente material, mas puro espírito e que a matéria é apenas uma das formas pelas quais o espírito se expressa.
Fizeram arte Mozart, Bach, Michelangelo, Leonardo, Shakespeare e Dante, mas você também a encontra na lojinha da esquina, onde encontra o mesmo traço do divino na disposição aconchegante, colorida e meticulosa das prateleiras.
Como é usar algo material para cultivar o espiritual? O que se faz "fora" tem efeito "dentro" e vice-versa. Em outras palavras, há um vaivém constante entre o mundo interior e o mundo exterior, que são apenas dois mundos na aparência. Embora o mundo apareça aos nossos sentidos físicos em sua forma material, é de natureza espiritual. Sabendo disso passamos a usar toda atividade como ponto de apoio para fortalecer o espírito.
Suponha que você vá à academia, lá você usa alguns pesos para tonificar os músculos. Isso entendemos claramente. Da mesma forma, você pode aproveitar o passeio quando for fazer compras ou sua atividade no escritório ou aquela reunião com amigos para se colocar no espírito. E quanto mais nos acostumamos a viver no espírito, mais fácil fica voltar para ele. Estamos nos familiarizando com a vida espiritual.
Quando vivemos divagando, ou seja, perdidos nos devaneios mentais compensatórios do momento, nosso espírito se desintegra, nossa consciência escurece e a atividade que desenvolvemos é muito semelhante a um simples sonho. Além do mais, esquecemos o que fizemos com a mesma facilidade com que esquecemos o sonho que tivemos na noite passada. Por outro lado, se nos predispusermos a uma prática específica, a tonalidade do que vivemos muda. É o grau de consciência que faz a diferença. O que realmente fazemos, então, não é o exterior da atividade, o que se vê, mas o interior. É a espiritualidade aplicada ao que fazemos que importa.
É por isso que sugerimos escolher um "trabalho de cultivo espiritual" que nos permita concentrar essa intenção de espiritualizar nossa vida, em algo muito específico e concreto. Devemos estar presentes em nossa vida, não ausentes dela. Mas como a fantasia viva ou a ação autômato se tornou carne em nós, essa transformação não é fácil. Então escolhemos algo para fazer o nosso melhor para aprender essa coisa de estar verdadeiramente presente. O que equivale a dizer: aprender a viver em espírito e em verdade.
Haverá quem produza ícones religiosos, quem pinte quadros ou desenhe, quem goste da horta ou do pomar, quem faça da cozinha ou da decoração uma arte. Existe a tecelagem, a escrita, a composição musical ou o canto, a prática de algum desporto, o bonsai, a preparação ou criação de perfumes, o restauro de móveis ou a carpintaria do mesmo, diversas formas de criação artesanal, como o uso do tear, a modelagem em argila, escultura, modelagem e um longo etc. No Oriente eles costumam praticar isso com caligrafia, ikebana ou a arte do arco e flecha. É inclusive bastante conhecida aquela atividade que consiste em criar mandalas intrincadas e detalhadas que depois de finalizadas são varridas como se nada tivesse sido feito. Isso é muito curioso e mostra claramente que o que é substancial é o modo interior de que esta figura é feita e não a figura em si. Para isso tem que haver desapego do resultado e atenção com a própria execução. Os jardins zen também têm muito disso e a cerimônia do chá pode nos ensinar muito sobre a atitude de que estamos falando.
O que define uma atividade como seu ofício de cultivo espiritual é que você decida dar a ela essa natureza, essa marca específica. Não deve ser algo que você já tenha muito mecanizado porque vai dificultar a troca da tônica. É melhor algo novo ou que você não faz há muito tempo ou que adia indefinidamente. Mas acima de tudo deve ser algo que você gostaria muito de fazer bem. Pode ser algo em que você não foi treinado e no qual não é muito bom, mas que pode ser muito útil para esses propósitos espirituais.
Desta forma, este ofício torna-se uma forma especial de não-reação. Uma não-reação ativa que implica o desenvolvimento de certas qualidades precisas até se tornar arte. Talvez nos leve o resto de nossas vidas, mas não é importante alcançar algo nisso exteriormente, mas sim a harmonia, a profundidade e a sutileza espiritual que seu próprio exercício nos dá. É importante estar alheio a todas as comparações, é apenas uma ferramenta para despertar os sentidos espirituais...
El Santo Nombre
Fonte: Blog El Santo Nome
https://elsantonombre.org
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal