Um dos pontos centrais da teoria junguiana é o processo de individuação, e quando é citado sempre surgem algumas questões a respeito de aspectos negativos presentes neste processo, os quais eu gostaria de evidenciar no momento.
O processo de individuação ou de transformação interna nos leva sempre a um questionamento e consequente conscientização de determinadas partes escondidas de nossa psique assim como nos aproxima mais de nossa verdadeira essência. Isso o transforma numa grandeza imensurável cujo contato se faz difícil e na maioria das vezes muito doloroso de se enfrentar.
O autoconhecimento que nos conduz à profundezas inesperadas e a um reconhecimento de nosso lado sombrio, egóico, tem força suficiente para desencadear perturbações geradoras de problemas e consequentes mudanças de personalidade que jamais poderíamos prever. O confronto com situações conflituosas provenientes do inconsciente requer intencionalidade e inteireza no propósito, pois simplesmente não podemos amenizar o sofrimento deste contato com desculpas ilusórias ou explicações cômodas. Desta forma só estaríamos ampliando, em muito, as possibilidades destrutivas existentes.
O inconsciente é de natureza amoral, e é dele que se apresenta o que for necessário para nos desapegarmos dos agregados ilusórios do ego, resultando em um crescimento em direção à uma consciência mais ampla. E isto não é tarefa fácil, pois dificilmente abriremos mão do que somos, de nossas identificações, para aceitarmos uma posição, uma perspectiva ou um jeito novo que em geral nos é totalmente desconhecido e oposto a nós.
Daí surge a necessidade de um trabalho psicoterapêutico onde a análise junguiana se caracteriza pelo confronto dialético entre consciência e inconsciente. E nossa individuação se faz percebida pela tomada de consciência de componentes de nossa personalidade, que originariamente apresenta sintomas negativos, aos quais Jung denominou de sombra.
Quando damos uma atenção especial às nossas questões internas, vamos de encontro a esta personalidade inferior, onde está contido tudo que não se encaixa, que não procede. Tudo que não se ajusta às leis e regras de nossa vida consciente. Na realidade, tudo que é esquecido ou rejeitado não só por motivos de ordem moral como também por conveniências inconsequentes.
Em resumo, todas aquelas pequenas e insignificantes imposições as quais somos condicionados deste pequenos, tais como: ‘mamãe não gosta’ ou ‘papai do céu acha feio’; e todas as demais características que somos levados a nos identificar para melhor sermos aceitos no meio onde crescemos.
Na verdade todo o nosso inconsciente é a nossa própria sombra quando o contrapomos à consciência representada pela luz, ou ainda, quando tomamos uma postura de distanciamento, rejeição ou medo, em relação aos conteúdos desse inconsciente, ou melhor dizendo, de nós mesmos.
O que caracteriza alguma coisa como pertencente à sombra é exatamente a nossa postura em relação a ela ou à forma como reagimos a esses conteúdos. As diferentes perspectivas pelas quais vemos determinados conflitos internos surgem a partir de influências de nossas próprias emoções que nos farão lidar com tais conflitos de maneira agradável e simples, ou desagradável e autodestrutiva.
Normalmente nos livramos dos aspectos desta metade obscura de nossa alma usando de artifícios onde atribuímos aos outros o que é feio, preconceituoso e esquisito. Ou, às vezes, para nos sentirmos salvos ou isentos de pecados, os transferimos para um mediador divino através de um ato de arrependimento. Jung dizia que sem pecado não há arrependimento, e sem arrependimento não há o ato de redenção.
Somente através de uma análise profunda é que podemos nos confrontar com essa metade obscura da personalidade, pois uma vez iniciado o processo, torna-se inevitável esse contato e na maioria das vezes, muito doloroso.
Esse é um momento psicológico onde não há opção; somos expulsos do paraíso. Restando-nos apenas suportar com paciência, coragem e confiança até que ocorra a solução, a mudança de paradigma, no devido momento. Nem antes nem depois.
E quando nos aventuramos por um passeio por esse inferno dantesco, i.e., quando tentamos entender o que nosso inconsciente produz, o caminho mais direto e natural seria permitir à nossa alma um curso livre, através de um recuo de nossas projeções internas, sem interferências do ego.
Modelando a realidade que nos circunda com uma concepção mais realista da vida e livre de ilusões. Agindo dentro do que é certo, em cada momento, de acordo com o que temos disponível, com o que somos, para que não se permita que forças maléficas se tornem explicitamente excessivas.
Uma vez que corrigimos essas projeções, ou seja, que separamos a realidade, das camadas de ilusão que a envolvem, nos aproximamos de limites perigosos onde ultrapassá-los significaria um empreendimento muito difícil. Pois esses limites representam verdades específicas de um momento psicológico que normalmente preferimos evitar.
Se obstáculos existem, é porque eles devem ter alguma serventia, e talvez encubram algum recanto delicado com uma escuridão que às vezes é salutar. Determinados aspectos que talvez fossem muito mais tranquilos que jamais viessem à luz.
Essas mudanças decorrentes dessa experiência interna são tão profundas que possuem um caráter numinoso, i.e., somos compelidos a achar que elas representam uma vontade de Deus. Isso é devido ao caráter autônomo dos símbolos que surgem, pois o caminho ou a solução para os conflitos se apresentam com um impacto tão grande que nos fazem entender essa força resultante desta maneira.
Esses símbolos, que possuem os opostos representados em si, são manifestações de um ponto central que representa a totalidade, o Uno, e acabam funcionando como um Senhor do Mundo Interior, portando, em sua estrutura, luz e trevas.
Os primitivos possivelmente tinham alguma percepção dessa grandeza, pois em seus rituais representavam o Sol como Deus-Pai. Fecundador e criador, fonte de toda a energia do mundo. O Sol não só é benfazejo como também destruidor com seu calor abrasador. Ele brilha igualmente para todos, bons e maus. E faz crescer tanto vidas úteis quanto nefastas. Todas essas características o tornam adequado para representar o Deus visível deste mundo, nossa força propulsora, a libido cuja essência é produzir a nossa realidade.
Em culturas diferentes, existem infinitas outras representações para simbolizar esse arquétipo central da totalidade portador do bem e do mal. Na mitologia hindu encontramos Shiva, que dispôs de uma metade de seu corpo para servir de morada para a sua consorte, Parvati. Esta é uma magnífica representação do mistério da união dos opostos que simboliza a essência da iluminação. Neste padrão hindu de Deus-Shiva e sua Shakti se encontra o poder procriador da substância imortal, fonte de toda a vida.
Na iconografia tibetana encontramos a mesma representação na imagem de Vajradhara e sua contraparte feminina, estreitamente abraçados numa formação conhecida como yab-yum. Aqui, as duas figuras fundem-se uma na outra em suprema concentração e absorção tântrica.
Sentados num trono de lótus que simboliza o Portal do Universo, em régia atitude de calma imortal. As imagens de Shiva-Shakti simbolizam a vida universal e individual como uma incessante interação de opostos cooperantes.
Outra representação de Shiva relativa a um par de opostos começou a surgir na Índia com a invasão dos povos árias do norte. Eles possuíam uma coletânea de hinos chamados Rig Vedas, em sânscrito primitivo, usado quando se ofereciam os sacrifícios arianos. Ali, Shiva, conhecido como Rudra, O Terrífico, era uma divindade menor a qual os devotos se dirigiam em apenas três hinos.
Sob o nome de Shiva, mais tarde esta divindade vem a se transformar em um dos três principais deuses do panteão hindu, depois de absorver algumas características de um Deus da Fertilidade indígena. Nesse momento configurou-se a trindade constituída por Vishnu, significando existência, luz, concentração e preservação. Shiva como representante de aniquilamento, trevas, dispersão e destruição. E Brahma, no centro, com eixo de equilíbrio, construção.
Shiva, depois de passar, como Rudra, por características sinistras, misteriosas e associadas às funções destrutivas, apresenta-se plenamente desenvolvido, combinando características contrastantes. Como Mahakala, ele é o grande deus do tempo infinito, que tudo destrói. Com um aspecto oposto, ele é Pashupati, o senhor de toda a criação. Contam que a terra estava ficando desolada e foram pedir a Vishnu que despejasse sobre a terra o rio cósmico Ganga, para restaurar toda a vida do planeta.
Acontece que este rio tinha uma tal força torrencial que se caísse sobre a terra, destruiria tudo, a faria em pedaços. Shiva, ao saber, amparou o rio em sua cabeça, e pela água que lhe escorriam pelo seus longos cabelos negros surgiram os veios que deram origem ao rio Ganga (Ganges), que possui exatamente esta função restauradora e purificadora.
Shiva é ainda Nilakanta, o Garganta Azul. Dizem que a serpente Vasúki espalhou sobre o universo um veneno que o ameaçava de destruição. Os devas e asuras, que não podiam lidar com tamanho problema, recorreram a Shiva que bebeu o veneno livrando todo o universo de ser destruído.
Já como Nataraja, o Senhor da Dança, Shiva possui os dois aspectos: destruidor e criador. Na reclusão de sua morada, no alto do Monte Kailasa, nos Himalaias, Shiva dança. E ao executar este ritual ele revolve toda a neve sob seus pés, e à sua volta. Assim, enquanto dança ele destrói o universo. Mas a neve remexida pela dança se derrete e começa a formar um pequeno filete de água que desce as montanhas formando pequenos veios que mais abaixo se transformam numa volumosa fonte de vida que é o rio Ganga.
Shiva é ainda Ashutosha, Aquele Que se Basta, o Senhor do Desapego. Aceita de bom grado o que lhe é oferecido valorizando, desse modo, mais a intenção do que o objeto oferecido.
Como uma lembrança do que é impermanente ou da constante mudança, Shiva é Akasha, o éter, o sem forma. Os fiéis de Shiva neste estado o veneram em ritos usando uma pedra normalmente colhida no rio Ganga ou no rio Gandaki, no Nepal, para representar a sua imagem sem forma. E transcendendo o estado de Akasha encontramos a “consciência pura”.
Com todas essas manifestações através das formas e da não forma, de sua dança através dos tempos, encontramos nos Svetasvattara Upanishads uma menção sobre “este Deus (que) é o artesão do Universo, o Ser Supremo. (Ele) mora eternamente no coração das criaturas”. E ainda é dito que “quando não há trevas, não há nem dia nem noite, nem ser nem não ser, então (este) é Shiva , o Absoluto, é o Imperecível”.
Para que os devotos lidem com todas essas representações, é pedido a eles que adorem não os nomes e as formas, mas o dinamismo, a torrencial corrente cósmica de fugazes evoluções, que continuamente produz e aniquila as existências individuais, como gotas de uma poderosa queda d’água. O indivíduo passa a ter uma atitude, identificando sua mente com o princípio que lhe dá existência. Que o lança para dentro de um processo de crescimento, eliminando as contradições existentes em seu caminho. Assim ele se sente como parte dessa força suprema. Tanto os pesares quanto as alegrias são transcendidos na entrada em um estado puro, livre de opostos.
Assim como em todo este simbolismo védico, as estruturas psicológicas contêm secretamente o seu oposto, ou está de alguma forma ligado a ele. E não existe nenhum ritual, ou momento psicológico, que não se converta em seu oposto quando se toma uma posição extrema. Quanto mais tomamos uma atitude unilateral, tanto mais podemos esperar sua reversão para o seu contrário. Isto é chamado Enantiodromia.
Portanto, todas as nossas qualidades e características das quais mais gostamos e defendemos são as mais ameaçadas com certa perversão diabólica. Pois são exatamente elas que mais reprimem o mal.
O autoconhecimento é uma aventura que nos conduz a amplidões e profundezas inesperadas, sendo sempre muito doloroso desencadearmos perturbações difíceis de se administrar. Nossa existência individual caracteriza-se por uma relação entre a alma livre, pura e perfeita, e as ilusões do mundo exterior. Mas sempre poderemos transcender esses obstáculos temporais e todos os nossos apegos para conseguirmos discernir a realidade aparte das camadas de ilusão que a envolvem.
Para a psicologia moderna, com esse empreendimento estaremos sempre lidando com a vida e a morte da consciência comum, para dar lugar ao surgimento de uma consciência superior. Num confronto com a sombra, que apesar de sinistro e inevitável, é o que nos projeta para a individuação.
E, sempre que olho para lugares ermos do inconsciente, vejo Shiva. No topo do Monte Kailasa. Pronto para começar a sua dança.
Sérgio Pereira Alves
Fonte do texto e das gravuras: GnosisOnLine
http://www.gnosisonline.org/
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sexta-feira, 13 de junho de 2014
A DANÇA DE SHIVA
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