domingo, 19 de abril de 2020

A SABEDORIA ECOLÓGICA DOS INDÍGENAS



O Que Temos a Aprender Com os Povos Tradicionais


Em vários aspectos, o mais novo e o mais velho se unem hoje para renovar e ampliar radicalmente nosso modo de enxergar a realidade.

Nas últimas décadas do século 20, a vanguarda da física redescobriu a filosofia esotérica através de Fritjof Capra, David Bohm e outros. O químico da NASA Jim Lovelock descobriu que o planeta Terra pode ser considerado um ser vivo – como pensava o mundo grego – e criou a teoria de Gaia. Na biologia, Rupert Sheldrake resgatou velhos conceitos da filosofia do oriente, especialmente o akasha e a luz astral, através de modernos métodos experimentais. Estas mudanças na visão científica do mundo estabelecem as bases para uma relação inteiramente nova entre ser humano e ambiente natural, e nos fazem compreender, também, que podemos aprender grandes lições avaliando melhor a filosofia de vida dos primeiros habitantes da América. 

Segundo a ecologia profunda, todos os seres têm – em princípio – igual direito à vida. Esta corrente de pensamento aberta e sem dogmas foi criada na Noruega no início da década de 70 pelo filósofo e músico Arne Naess. Nos últimos anos os livros e seminários dedicados ao tema têm ganhado espaço rapidamente, inclusive no Brasil.

Embora seja moderno na aparência e inspire uma nova geração de cientistas, este modo de enxergar a vida é antigo e tradicional. A autoria do maior e mais famoso manifesto de ecologia profunda que conheço é atribuída ao chefe Seattle, dos índios norte-americanos Duwamish, em 1855, isto é, onze anos antes de o biólogo alemão Ernest Haeckel propor pela primeira vez, em 1866, a criação de uma “nova disciplina” a ser chamada no futuro de “ecologia”. O chefe Seattle perguntou ao presidente norte-americano Franklin Pearce, que lhe havia proposto comprar as terras indígenas:

“É possível comprar ou vender o céu e o calor da terra? Tal ideia é estranha para nós. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como você poderá comprá-los? Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada areia da praia, cada bruma nas densas florestas, cada clareira e cada inseto a zumbir são sagrados na memória do meu povo. A seiva que corre através das árvores carrega as memórias do homem vermelho.”

A ideia central da ecologia profunda é abandonar a ideia de que a natureza é apenas um amontoado de “recursos naturais”. Todo egoísmo tem uma vocação inevitável para o fracasso, e as políticas de preservação ambiental implantadas no século 20 fracassaram amplamente porque partiam de uma filosofia baseada na ideia de que o homem pode usar e abusar da natureza. Quando você parte de uma premissa falsa, seu raciocínio e sua prática estão destinados à derrota. Só quando deixamos de lado a impressão ilusória de que o homem é o centro do universo passa a ser possível, para nós, perceber que pertencemos à natureza, somos seus filhos e devemos respeitá-la. A premissa correta, centro da filosofia do futuro, afirma que a alma da vida universal está presente em todas as coisas, e o homem é parte dela. Cabe a ele, agora, ser consciente disso. Assim a preservação ambiental terá êxito. Nas palavras do chefe Seattle:

“Os rios são nossos irmãos, eles saciam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar às suas crianças que os rios são nossos irmãos, e seus também, e vocês devem, daqui em diante, dar aos rios a bondade que dariam a qualquer irmão.”

Em uma análise comparativa, poucos deixariam de afirmar que nossa civilização tecnológica é mais avançada que as dos indígenas. Mas o que estamos fazendo com nossas crianças? Abandonando-as?  Matando-as? Prostituindo-as? O que são os assaltantes das grandes cidades além de crianças abandonadas que cresceram aprendendo violência?

Considerando o que estamos fazendo com nossos rios e florestas e também o grau de violência, corrupção e poluição que há em nossas cidades, em que coisas somos de fato melhores, e em que aspectos somos mais bárbaros, mais violentos e atrasados que os indígenas das Américas tradicionais?

“Não há um lugar calmo nas cidades do homem branco”, afirma a carta dos duwamish: “Nenhum lugar para escutar o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreenda. O ruído parece apenas insultar os ouvidos. E o que resta da vida, se o homem não pode escutar o choro solitário de um pássaro ou o coaxar dos sapos em volta de uma lagoa à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio aroma do vento, limpo por uma chuva do meio-dia, ou perfumado pelos pinheiros.”

Recuperar a capacidade de conviver com o mundo natural é avançar em direção àquele futuro em que as cidades trarão para si o melhor do campo, e o campo terá em si o melhor das cidades. Então desaparecerão as doenças físicas e emocionais causadas pela tensão nervosa das grandes cidades. Desaparecerão fenômenos como a síndrome do pânico, a insegurança das ruas modernas ou a violência contra os agricultores sem terra. E ainda respiraremos melhor, como os indígenas faziam. Também neste aspecto, temos a aprender com eles:

“O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro. O animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. O homem branco parece não sentir o ar que respira. Como um animal que agoniza há vários dias, ele é incapaz de sentir o mau cheiro. (…) Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas crianças. Tudo o que ocorrer com a terra, ocorrerá com os filhos da terra. Se os homens desprezam o solo, estão desprezando a si mesmos. A terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra.” [1]

Um testemunho menos conhecido, mas não menos belo, foi deixado a nós pelo chefe Urso-em-pé, dos Lakota. Ele disse, lembrando de tempos anteriores:

“Os velhos Lakota amavam o solo e sentavam-se ou reclinavam-se no chão com o sentimento de estarem próximos de um poder maternal. Era bom para a pele tocar a terra, e os velhos gostavam de se descalçar e andar com os pés nus sobre a terra sagrada. As tendas eram erguidas sobre a terra, e os altares feitos de terra. O solo era tranquilizante, revigorador, purificador e medicinal. Por isso é que os velhos índios ainda se sentam diretamente na terra, fonte de suas forças vitais. Para eles, sentar-se ou deitar-se no chão permite pensar com mais profundidade e sentir com mais clareza; podem penetrar nos mistérios da vida e descobrir seu parentesco com outras formas de vida ao redor. (…) Os velhos Lakota eram sábios. Sabiam que o coração do homem distante da natureza se torna duro; sabiam que a falta de respeito pelas coisas vivas leva imediatamente à falta de respeito pelos humanos.” [2]

Urso-em-pé mencionou aqui uma causa central da violência e degeneração da vida emocional das grandes cidades. Dominadas hoje por meios eletrônicos de “comunicação” cuja influência parece crescer lado a lado com a falta de comunicação real entre seres humanos, as cidades degeneram pelo seu distanciamento da natureza e dos seus ritmos vitais básicos. Como um animal em cativeiro que perde a alegria de viver, o ser humano distante da natureza é preso por suas preocupações pessoais, e dificilmente encontra paz, dentro ou fora de si. O resultado é a violência: primeiro em pensamento e sentimento, e depois na realidade externa. 

Por outro lado, temos alguns erros em comum com as sociedades indígenas e um deles é a superstição. A maior parte da população brasileira atual, herdeira da cultura europeia, ainda é guiada por fortes crenças ilusórias. Algumas das nossas superstições são materialistas (como pensar que o dinheiro traz felicidade), e outras são religiosas (como a de pensar que, para ser religioso, basta adorar e pedir favores a um Deus em forma humana). Até mesmo nossos modernos pajés, os cientistas e intelectuais, participam em grande parte das superstições coletivas da nossa civilização.

Os indígenas também tinham uma visão relativamente estreita do mundo. Vemos com facilidade os erros do pensamento indígena tradicional, porque é sempre fácil enxergar os defeitos alheios e nossas limitações são outras. Mas apesar das cegueiras culturais, dos tabus e nacionalismos tribais, havia em todas as sociedades indígenas – como há hoje na nossa – uma tradição de sabedoria transcendental. Ela permanecia à disposição dos que estavam prontos e eram capazes de erguer os olhos para ela. Quando o aprendiz está pronto, a sabedoria aparece – em qualquer tempo e lugar.

Certo dia o indigenista brasileiro Orlando Villas Bôas ficou surpreso ao conversar com um pajé do rio Xingu, o mais versado, ali, nos conhecimentos que vão além do saber comum. Ele conta o fato em seu livro A Arte dos Pajés [3]. Um pajé de meia-idade, Arru, chegou do mato cansado de caminhar e sentou-se ao lado de Orlando.

“Lá é o céu”, diz Arru, apontando para o alto.

“Sei”, responde Orlando.

“Lá é a aldeia dos que morrem.”

“Sei”, diz Orlando, conhecedor da cultura indígena.

Depois de um momento em silêncio, olhando bem para o alto, Arru acrescenta:

“Lá no céu do céu… ela está lá.”

Orlando pensa que quem está lá no céu do céu deve ser um deus antropomórfico.

“Quem está lá? Um índio velho que sabe tudo?”

A resposta de Arru é enfática:

“Não, apenas uma sabedoria.”

O pajé do Xingu surpreendeu Orlando mostrando que acreditava na existência de uma lei ou sabedoria universal, e que estava livre da superstição de um deus em forma humana, de quem se pode obter favores pessoais fazendo-lhe homenagens como a um rei todo-poderoso.

O diálogo entre Villas Bôas e Arru tem outros aspectos interessantes. A “aldeia dos que morrem”, que existe no céu dos índios xinguanos, é um conceito equivalente, de certo modo, ao kama loka da tradição esotérica. Para o kama loka vão os níveis intermediários da consciência de um ser humano fisicamente morto. Ali, os níveis médios de consciência passam por uma purificação que dará lugar ao devachan ou bem-aventurança, um longo período de descanso antes de um novo renascimento. O devachan equivale à “terra sem males” dos tupis brasileiros,  local mítico e  não-espacial. Ali ninguém morre ou adoece, a lavoura se trabalha sozinha e a colheita ocorre sem que seja necessário fazer esforço.

Do ponto de vista esotérico, não conheço referências muito complexas ou exatas ao processo pós-morte na tradição indígena das Américas. Porém, na sua simplicidade, os povos indígenas reconhecem a existência de um mundo sutil ou astral em que são registrados os nossos atos e no qual vivem seres invisíveis, ao lado das forças arquetípicas da natureza e dos seres que se foram do mundo físico.

“Há na cultura indígena uma total dependência da criatura com o mundo sobrenatural”, escreveu Villas Bôas. Se trocarmos a palavra “sobrenatural” por “astral”, a frase fica correta do ponto de vista esotérico e se aplica não só aos indígenas, mas a todos os povos e seres do mundo em todos os tempos. O mundo físico inteiro é reflexo do mundo astral e, por isso, depende dele. Todas as relações de causa e efeito operam no mundo astral, que é perfeitamente natural, porém invisível ao olhar físico, e que, em seus níveis superiores, leva à vida especificamente imortal e espiritual em que se localiza o devachan e se alcança o nirvana.

As culturas indígenas populares tinham acesso a uma versão simplificada da sabedoria espiritual dos descendentes de Atlântida. Depois da destruição daquele continente, o conhecimento iniciático e esotérico foi inteiramente reorganizado. Então, da Índia e do Egito antigos surgiu uma nova série de civilizações que dura até hoje. Esotericamente, considera-se que os indígenas americanos são descendentes da tradição espiritual Atlântida, que corresponde à quarta raça-raiz, segundo Helena Blavatsky. A nossa quinta raça-raiz, mais racional, perdeu a antiga intuição humana. Mas já começa a recuperá-la em um nível superior, combinando o método científico experimental com a antiga capacidade de comunhão com a natureza e o respeito por todos os seres, habilidades que as sabedorias indígenas, sobreviventes da tradição atlântida, ainda mantêm intactas.

As tradições do extremo oriente são outras tantas ramificações da quarta raça-raiz e têm ensinado lições de grande valor ao nosso confuso ocidente através da medicina tradicional, da meditação zen, das artes marciais de fundo espiritual, do taoismo, e do feng-shui, para citar alguns poucos exemplos. Helena Blavatsky afirma em seu livro clássico “A Doutrina Secreta” que desde o século 19 surgem, aqui e ali, os primeiros cidadãos da sexta raça-raiz. Eles não podem ser identificados por qualquer característica física, mas sim por uma percepção intuitiva dos princípios da sabedoria e da fraternidade universal que guiarão a humanidade, de modo consciente, no futuro. Para a ciência esotérica, a fraternidade universal da humanidade é uma lei, e a diversidade racial é indispensável à evolução.

Neste momento, cabe repensar o processo civilizatório.  É preciso parar a destruição dos ambientes naturais e respeitar os povos que preservam o conhecimento de como viver em intimidade com a natureza. É prioritário proteger as crianças, símbolos do  futuro, e aprender aquela sabedoria universal que permeia a história de todos os povos, independentemente das características físicas, hábitos culturais ou níveis de desenvolvimento tecnológico dos seus cidadãos.

Devemos ter a humildade necessária para reconhecer que os povos mais desenvolvidos tecnologicamente nem sempre foram os mais sábios, e que hoje somos um notável exemplo disso. Devemos ser capazes de lembrar que, segundo o manifesto atribuído ao chefe Seattle, “os cumes rochosos, os sulcos úmidos do campo, o calor do corpo do potro e o homem, todos pertencem à mesma família”.



Carlos Cardoso Aveline



Fonte do Texto e da Gravura: FilosofiaEsotérica
https://www.filosofiaesoterica.com/a-sabedoria-ecologica-dos-indigenas/




NOTAS:

[1] “Preservação do Meio Ambiente – Manifesto do chefe Seattle ao Presidente dos EUA”, Editora Interação/Fundação SOS Mata Atlântica, SP, 1989.

[2] “Pés Nus Sobre a Terra Sagrada”, Compilador: T.C. McLuhan, Ed. L&PM, Porto Alegre, 1994, ver pp. 13-14.

[3] “A Arte dos Pajés”, de Orlando Villas Bôas, Editora Globo, 2000, ver pp. 89-90.

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