Não se pode medir a importância e profundidade das ideias dos pensadores pelo êxito que alcançam ao publicar as suas obras. Alguns sistemas filosóficos passam por um período mais longo ou mais curto de hibernação até que consigam despertar a atenção e o interesse dos leitores. Outros, que parecem surgir vitoriosos, fenecem com o tempo e cedem a praça a novos sistemas fascinantes à fantasia do homem na sua busca interminável da verdade.
Existirá alguma lei que determine ou que, pelo menos, explique essas variações de êxito dos sistemas filosóficos? Parece que há. Para início de conversa, creio poder afirmar-se que o êxito, em termos humanos, é uma componente quantitativa mais do que qualitativa. Em outras palavras: o sucesso é alcançado por aquele que consegue interessar o maior número de pessoas e não pelo que tem o melhor sistema, a melhor peça teatral, o melhor romance, a mais bela sinfonia. Por conseguinte, podemos também concluir que o êxito mundano de um sistema filosófico depende da sua sintonia com o pensamento dominante de cada época.
Dando um passo mais à frente, parece legítimo afirmar, em consequência, que pensador de êxito é aquele que consegue interpretar e traduzir o sentimento e as tendências dominantes da sua época, ou, por outra, que se afina com o estágio evolutivo das maiorias. Isto vale dizer que cada época tem os filósofos que merece.
Não é difícil de demonstrar a tese. Pelas tendências da sociedade moderna, podemos facilmente inferir os tipos predominantes de pensadores e seus sistemas. E que vemos? Uma esmagadora maioria humana sem rumo, num esforço desesperado para libertar-se dos conceitos fundamentais da moral que, embora nem sempre bem observados, constituíram as bases de tudo de positivo e construtivo que se realizou ao longo dos séculos. Aquilo a que hoje assistimos é a busca desordenada da liberdade total, impossível em qualquer sociedade organizada. Assistimos à procura do prazer a qualquer custo. E vemos apreensivos a repetição de épocas dramáticas do passado, quando aprendemos, através da História, que a fuga desesperada na direção do gozo inconsequente é também uma fuga para longe de Deus.
O homem das megalópoles supercivilizadas é um ser sem rumo, tão frágil na sua aparente segurança, tão abandonado aos seus próprios recursos humanos, que não aguenta uma hora de solidão; quer estar cercado de ruídos, de risos – ainda que falsos –, de alegria – ainda que contrafeita –, de movimento – mesmo que arriscando a vida. Mas que é a vida para esse homem, senão apenas o prazer de viver? Existir é a ordem do dia; não importa como, nem porque, nem para que: o importante é existir pura e simplesmente, seguindo cada qual as suas inclinações e preferências, fazendo o que bem entender, com o mínimo possível de responsabilidade pessoal e social – apenas o necessário para garantir a sobrevivência do corpo. Também, se o corpo morrer, não tem grande importância, porque tudo termina mesmo com a morte… E quanto aos ruídos, os risos, a alegria e os movimentos não conseguem anestesiar suficientemente os sentidos, apela-se para o atordoamento produzido pela bebida e pelas drogas.
Dirá o leitor, algo alarmado, que esse é um retrato pessimista e exagerado da civilização moderna. Talvez seja exagerado; pessimista não, porque nem toda a humanidade está assim contaminada, graças a Deus. Dentro dela grupos humanos equilibrados lutam por dias melhores, aparentemente bradando no deserto, mas semeando a esperança do futuro, preocupados com a alucinação do presente, mas certos do funcionamento inevitável das leis divinas que atuarão no devido tempo para introduzir as correções necessárias.
Enquanto isso não ocorre, porém, é aquele o espetáculo a que assistimos. E do meio do tumulto universal da insatisfação humana, que filosofias e que pensadores vemos medrar vigorosamente e alcançar o sucesso? Jean Paul Sartre e sua companheira Simone de Beauvoir, Camus, e até Gabriel Marcel, que pregam a ausência de Deus, o absurdo da existência, a liberdade total para o homem escolher o seu próprio destino. São os papas e cardeais do existencialismo, uma corrente de pensamento que só cuida do simples fato de existir; o resto não importa, pois, segundo eles, a vida não tem mesmo explicação, nem finalidade, nem sentido.
No campo da teologia, temos os pensadores da chamada teologia radical. São eles William Hamilton e Thomas J. J. Altizer, que se dizem teólogos – e luteranos! – de uma teologia sem Deus. Para eles, Deus morreu. Para eles, não há mais, na sociedade moderna, lugar para Deus. A humanidade precisa aprender a viver sem Deus. Pregam uma das grandes contradições do século, ou seja, o ateísmo teológico. Repetem as palavras de outro luterano famoso – Dietrich Bonhoeffer, executado pelos nazistas já ao fim da Segunda Guerra, que assegurava ser perfeitamente possível viver sem Deus, sem desespero e sem complexos de culpa.
No campo social vamos encontrar Herbert Marcuse, o profeta do caos, que, com sua interpretação freudiana da História, deseja ver liberados todos os instintos porque, segundo ele, o processo civilizador tem sido uma sucessão de repressões. Por outro lado, numa contradição que nós, pobres mortais, não entendemos muito bem, receita a liberdade excessiva que transformaria a Terra num inferno. Suas doutrinas são tão nebulosas quanto sua linguagem hermética, quase iniciática. Aliás, os pensadores do nosso tempo – filósofos, teólogos e uma boa parte dos cientistas – não escrevem mais para o grande público, gente como você e eu: ao contrário, usam uma linguagem difícil, quase impenetrável ao entendimento daqueles que não tiveram muito treinamento para isso. Praticamente escrevem apenas para seus companheiros do mesmo ofício. Procurem ler, por exemplo, “Eros e Civilização” ou “Ideologia da Sociedade Industrial”, de Marcuse, e observem bem como é pequena a quantidade de ensinamentos que se consegue filtrar daquela terminologia agreste e abstrata.
São esses, no entanto, os guias atuais da inquietação humana, os orientadores dos que ainda não encontraram seus caminhos. São os que se afinam com as tendências da época. Não criaram propriamente um sistema; apenas converteram em palavras as angústias e a desorientação da época em que vivem. E por estarem em sintonia com a sua época, com a sua gente e com o estágio evolutivo dessa gente, alcançam o êxito mundano, passam a ser os pensadores da moda.
Enquanto isso, doutrinas amadurecidas e puras como o Espiritismo esperam a sua vez. Esperam que a humanidade as alcance, porque, pela sua maturidade, exigem certo grau mínimo de maturidade de seus adeptos. Por isso, Allan Kardec continua ignorado nas universidades, nos estudos de filosofia, nas histórias do pensamento humano. Apesar da celeuma que levantaram as ideias que ajudou a trazer para o mundo, foi também ignorado em sua época – não estava em sintonia com as maiorias de então.
Ao nascer Allan Kardec em 1804, a França acabava de emergir das crises e das agonias da Revolução Francesa. Brilhava o astro napoleônico e se ensaiava uma reconstrução da sociedade em novas bases, aproveitando o racionalismo, o cientificismo. Quase que junto com Kardec, com uma diferença a mais de seis anos, nasceu também Augusto Comte, o filósofo do Positivismo, doutrina escorada na frieza do fato observado. Fora da observação direta dos sentidos humanos, nada era digno de especulação – estava na área da metafísica. Nessa filosofia também não havia lugar para a sobrevivência do Espírito, nem para Deus. O “Curso de Filosofia Positiva” foi publicado entre 1830 e 1842 e o “Sistema de Política Positiva”, de 1851 a 1854. É praticamente a época em que Kardec começou a se interessar pelo fenômeno das mesas girantes, de tão tremendas consequências.
Em 1857, quando faleceu Comte, surgiu também “O Livro dos Espíritos”. O Positivismo era uma doutrina vitoriosa, porque respondia às tendências principais da especulação da época. O racionalismo frio dos enciclopedistas era ainda recente e deixara profundas marcas nos Espíritos. Comte trabalhara ativa e demoradamente esse terreno fértil e parecia realmente sintonizar-se com as correntes dominantes dos intelectuais contemporâneos. Suas doutrinas se espalharam pelo mundo, e aqui no Brasil, terra tão generosa para as ideias novas, viriam influenciar os homens que lançavam as bases da República. No entanto, apesar de todo o seu idealismo, do sentido humano, e da predominância da moral, faltou à doutrina de Comte o sentido superior da existência. Para ele, eram estéreis as especulações em torno do Espírito e da ideia de Deus, que nem mesmo como hipótese de trabalho entrava nas suas cogitações. Depois da partida dos Espíritos encarnados que lhe davam ressonância, o Positivismo decaiu no interesse daqueles que se ocupam da discussão de ideias.
Com Kardec está acontecendo o contrário: estão chegando os Espíritos que reconhecem nas suas ideias a marca da Verdade. Já naquela época, a despeito da tremenda oposição que encontrou, conseguiu semear largamente a sua seara. Sabia que a colheita não iria ser imediata, nem espetacular, porque apenas uma fração da humanidade estaria madura para aceitar a sua pregação, mas que importa isso para aquele que tem a certeza de estar ao abrigo da Verdade?
Uma pergunta poderá, no entanto, surgir da parte de alguém: Foi Kardec um pensador, um filósofo no sentido em que conhecemos a palavra? A resposta é: Positivamente, sim. Sua obra pode ser dividida em duas partes distintas: uma, a que escreveu, por assim dizer, a quatro mãos com os Espíritos – “O Livro dos Espíritos”; outra, a que escreveu ainda com evidente assistência espiritual, mas com seus próprios recursos e ideias que assimilara no trato dos problemas transcendentais que haviam sido colocados no primeiro.
A muito leitor desavisado poderá parecer de pequena monta o trabalho individual, pessoal, de Kardec na elaboração de “O Livro dos Espíritos”, mas não é isso que se passou. Imagine-se um de nós, o leitor ou eu, diante da tarefa. Sabemos apenas que nos incumbe escrever, com a colaboração dos Espíritos, uma obra de extraordinária importância. É, porém, extremamente cautelosa a colaboração dos Espíritos. A princípio nem mesmo dizem que a tarefa consiste em escrever um livro para instrução do mundo nas coisas espirituais. Não dizem que feição deve ter o trabalho, a que roteiro deverá obedecer. Guiado apenas pelo seu bom senso e pela sua sadia e viva curiosidade, Kardec vai fazendo as perguntas sobre aquilo que lhe interessa conhecer. A princípio – confessaria mais tarde – desejava apenas instruir-se na exploração daquele mundo maravilhoso de conhecimentos que se abria diante dele. O assunto o fascinava, porque lhe trazia respostas a perguntas que até então haviam ficado sem solução no seu espírito. Daí por diante, tudo se aclarava: Deus existia realmente, como existia o Espírito. Este sobrevivia, preexistia e se reencarnava. Os “mortos” se comunicavam com os “vivos” e o universo todo era regido por leis morais flexíveis mas iniludíveis. Cada um tinha a responsabilidade pelos seus atos, recompensas pelas suas vitórias, responsabilidades pelas suas falhas. Os seres, como os mundos, eram organizados em escala hierárquica de valores, onde predominavam as leis simples da moral. A teologia ortodoxa estava toda ela precisando de uma total reformulação nos seus conceitos mais queridos, mais essenciais. Não havia inferno, nem glórias eternas, ao cabo de uma única existência terrena.
Tudo isso surgia das suas conversas intermináveis com os Espíritos. Só o decorrer do tempo e a acumulação das respostas é que lhe vieram mostrar que perguntas e respostas tinham uma estrutura que lhes era própria e adquiriam a feição de um livro que ele resolveu dar à publicidade, pois que se ele aprendera ali tanta coisa útil, embora totalmente revolucionária, era necessário transmitir tais conhecimentos aos seus semelhantes.
E assim surgiu, em 1857, “O Livro dos Espíritos”, obra básica, vital ao entendimento de toda a filosofia espírita. Pela primeira vez rasgavam-se os véus que ocultavam a Verdade. Pela primeira vez se escrevia uma obra reveladora de tão profundos conhecimentos, em linguagem singela, ao alcance de qualquer pessoa. Bastava saber ler ou saber ouvir o que alguém lesse.
Mas não parava ali a tarefa do grande missionário. Era preciso prosseguir, extraindo da nova doutrina as consequências que ela acarretaria sobre os demais ramos do conhecimento humano. Podemos imaginar Kardec a fazer a si mesmo algumas perguntas. Como ficaria a doutrina evangélica de Jesus, diante daquelas ideias? E a Ciência? E a religião dita cristã? Como funcionava essa estranha faculdade a que deu o nome de mediunidade? Dessas perguntas, surgiram os demais livros da sua obra.
E assim, de 1854, quando, aos 50 anos de idade, Kardec se interessou pelo fenômeno das mesas girantes, até 1869, quando regressou ao plano espiritual, decorreram os 15 anos libertadores que a humanidade ainda não aprendeu a reconhecer pelo que realmente valem e pelas influências cada vez maiores que vão exercer no futuro.
Hermínio C. Miranda
Fonte: http://espiritismo-piracicaba.blogspot.com/
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