Na última década, houve uma grande expansão nos conhecimentos das bases neurobiológicas do processamento da música devido, em parte, às novas tecnologias de neuroimagem. Tais técnicas permitem revelar em tempo real como o cérebro processa, dá sentido e emoção à impalpabilidade de sons organizados e silêncios articulados.
O processamento musical envolve uma ampla gama de áreas cerebrais relacionadas à percepção de alturas, timbres, ritmos, à decodificação métrica, melódico-harmônica, à gestualidade implícita e modulação do sistema de prazer e recompensa que acompanham nossas reações psíquicas e corporais à música. De que maneira o cérebro sincroniza durações, agrupa e cria distinções entre sons e timbres, reconhece consonância e dissonâncias, programa movimentos precisos na execução instrumental e leitura, armazena e evoca melodias familiares e ritmos?
Como tais processos modulares integram percepções múltiplas em uma experiência singular, essencialmente emocional que seduz e direciona ao mesmo tempo nossos sentidos, nosso corpo e cognição. Entender o cérebro musical pode elucidar aspectos fundamentais da mente humana, da emergência da consciência a partir da emoção, da percepção implícita à consciência autorreflexiva. Se por um lado, a neurociência tradicionalmente lida com a objetividade dos dados e sinais que cartografam o funcionamento cerebral, por outro, a música não pode ser entendida sem levarmos em conta a subjetividade, o envolvimento lúdico e a transitividade que caracterizam a arte.
Ciência e arte compartilham o dinamismo do desenvolvimento, que não é um estado, mas um processo permanente de aprendizagem e busca de equilíbrio e abrange a capacidade de conhecer, conviver, crescer e humanizar-se com as várias dimensões da vida.
Processamento Musical
A atividade musical mobiliza amplas áreas cerebrais, tanto as filogeneticamente mais novas (neocórtex) como os sistemas mais antigos e primitivos como o chamado cérebro reptiliano que envolve o cerebelo, áreas do tronco cerebral e a amígdala cerebral. As vibrações sonoras, resultantes do deslocamento de moléculas de ar, provocam distintos movimentos nas células ciliares (receptoras) localizadas no ouvido interno e são transmitidas para centros do tronco cerebral.
A frequência de vibração dos sons tem uma correspondência com a localização das células ciliadas do ouvido interno e a intensidade dos sons está diretamente relacionada ao número de fibras que entram em ação. Quanto mais intenso o som, mais fibras entram em ação.
Existe uma relação entre a localização da célula sensorial na cóclea e a frequência de vibração dos sons. A frequência que mais excita uma célula sensorial muda sistematicamente de alta (sons agudos) para baixa frequência (sons graves). Assim, os estímulos sonoros nas chamadas células ciliares são levados pelo nervo auditivo de maneira organizada ao córtex auditivo (lobo temporal).
O primeiro estágio, a senso-percepção musical, se dá nas áreas de projeção localizadas no lobo temporal no chamado córtex auditivo ou área auditiva primária responsável pela decodificação da altura, timbre, contorno e ritmo. Tal área conecta-se com o restante do cérebro em circuitos de ida e volta, com áreas da memória como o hipocampo que reconhece a familiaridade dos elementos temáticos e rítmicos, bem como com as áreas de regulação motora e emocional como o cerebelo e a amígdala (que atribuem um valor emocional à experiência sonora) e um pequeno núcleo de substância cinzenta (núcleo acumbens) relacionado ao sentido de prazer e recompensa. Enquanto as áreas temporais do cérebro são aquelas que recebem e processam os sons, algumas áreas específicas do lobo frontal são responsáveis pela decodificação da estrutura e ordem temporal, isto é, do comportamento musical mais planejado.
Há uma especialização hemisférica para a música no sentido do predomínio do lado direito para a discriminação da direção das alturas (contorno melódico), do conteúdo emocional da música e dos timbres (nas áreas temporais e frontais) enquanto o ritmo e duração e a métrica, a discriminação da tonalidade se dá predominantemente no lado esquerdo do cérebro. O hemisfério cerebral esquerdo também analisa os parâmetros de ritmo e altura interagindo diretamente com as áreas da linguagem, que identificam a sintaxe musical.
A música não apenas é processada no cérebro, mas afeta seu funcionamento. As alterações fisiológicas com a exposição à música são múltiplas e vão desde a modulação neurovegetativa dos padrões de variabilidade dos ritmos endógenos da frequência cardíaca, dos ritmos respiratórios, dos ritmos elétricos cerebrais, dos ciclos circadianos de sono-vigília, até a produção de vários neurotransmissores ligados à recompensa e ao prazer e ao sistema de neuromodulação da dor.
Treinamento musical e exposição prolongada à música considerada prazerosa aumentam a produção de neurotrofinas produzidas em nosso cérebro em situações de desafio, podendo determinar não só aumento da sobrevivência de neurônios como mudanças de padrões de conectividade na chamada plasticidade cerebral.
Música e Plasticidade Cerebral
A experiência musical modifica estruturalmente o cérebro. Pessoas sem treino musical processam melodias preferencialmente no hemisfério cerebral direito, enquanto nos músicos, há uma transferência para o hemisfério cerebral esquerdo.
O treino musical também aumenta o tamanho, a conectividade (maior número de sinapses-contatos entre os neurônios) de várias áreas cerebrais como o corpo caloso (que une um lado a outro do cérebro), o cerebelo e o córtex motor (envolvido com a execução de instrumentos). Ativação maior de áreas do hemisfério cerebral esquerdo pode potencializar não só as funções musicais, mas também as funções linguísticas, que são sediadas neste mesmo lado do cérebro.
Vários circuitos neuronais são ativados pela música, uma vez que o aprendizado musical requer habilidades multimodais que envolvem a percepção de estímulos simultâneos e a integração de varias funções cognitivas como a atenção, a memória e das áreas de associação sensorial e corporal, envolvidas tanto na linguagem corporal quanto simbólica.
As crianças, de maneira geral, expressam as emoções mais facilmente pela música do que pelas palavras. Neste sentido, o estudo da música pode ser uma ferramenta única para ampliação do desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças, incluindo aquelas com transtornos ou disfunções do neurodesenvolvimento como o déficit de atenção e a dislexia.
Estimulando o Cérebro Musical
O uso da música para fins terapêuticos data de tempos ancestrais e apoia-se na capacidade da música de evocar e estimular uma série de reações fisiológicas que fazem a ligação direta entre o cérebro emocional e o cérebro executivo.
A música estimula a flexibilidade mental, a coesão social fortalecendo vínculos e compartilhamento de emoções que nos fazem perceber que o outro faz parte do nosso sistema de referência.
Vários estudos revelam efeitos clínicos da música na precisão dos movimentos da marcha, no controle postural, facilitando a expressão de estados afetivos e comportamentais em indivíduos com depressão e ansiedade. Tais efeitos positivos da música têm sido observados em transtornos do desenvolvimento como o déficit de atenção, a dislexia, na doença de Parkinson, na doença de Alzheimer ou em doentes com espasticidade, nos quais a reabilitação com música ou estímulos a ela relacionados como dança, ritmos ou jogos musicais potencializam as técnicas de reabilitação física e cognitiva.
A inteligência musical é um traço compartilhado e mutável que pode estar presente em grau até acentuado mesmo em crianças com deficiência intelectual. Crianças com síndrome de Willians, um tipo de doença genética, apresentam deficiência intelectual e habilidades de percepção, de identificação, classificação de diferentes sons e de nuances de andamento, mudança de tonalidade, muitas vezes, extraordinárias.
O período do neurodesenvolvimento mais sensível para o desenvolvimento de habilidades musicais se dá nos primeiros 8 anos de vida. Estudos com potenciais evocados mostram que bebês já nos primeiros 3 meses de vida apresentam várias competências musicais para reconhecer o contorno melódico, diferenciam consonâncias e dissonâncias e mudanças rítmicas. A exposição precoce à música além de facilitar a emergência de talentos ocultos, contribui para a construção de um cérebro biologicamente mais conectado, fluido, emocionalmente competente e criativo.
Crianças em ambientes sensorialmente enriquecedores apresentam respostas fisiológicas mais amplas, maior atividade das áreas associativas cerebrais, maior grau de neurogênese (formação de novos neurônios em área importante para a memória como o hipocampo) e diminuição da perda neuronal (apoptose funcional).
A educação musical favorece a ativação dos chamados neurônios em espelho, localizados em áreas frontais e parietais do cérebro, e essenciais para a chamada cognição social humana, um conjunto de processos cognitivos e emocionais responsáveis pelas funções de empatia, ressonância afetiva e compreensão de ambiguidades na linguagem verbal e não verbal.
O avanço das correlações da música com a função cerebral exige cada vez mais, um trabalho multidisciplinar (músicos, neurologistas, educadores musicais) que dê acesso à multiplicidade de experiências musicais, lúdicas, criativas, prazerosas, na análise do impacto da música no neurodesenvolvimento. Este alcance poderá significar um resgate do sentido integrado da arte, educação e ciência e um novo status para invenção e criatividade, pois nas palavras de Drummond, o problema não é inventar, é ser inventado, hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente.
Mauro Muszkat
Fonte: A Música na Escola
http://www.amusicanaescola.com.br
Via Biblioteca Virtual da Antroposofia (Texto e Gravura)
http://www.antroposofy.com.br
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