terça-feira, 11 de abril de 2017

TERÇA-FEIRA SANTA: DIA DE MARTE


“Quando o dia registrou verdadeiros atos, a tarde e a noite convocam o eco celeste destes atos. Os resultados do dia não residem unicamente naquilo que foi diretamente criado; quando a atividade diurna bateu às portas do mundo espiritual, podem abrir-se, à noite, as portas de um outro mundo. E (deste mundo espiritual) flui o correspondente a genuína força interior empregada durante o dia.”


Em silêncio, sem provocar as mesmas excitações, realiza-se nas manhãs seguintes o mesmo que no domingo de Ramos. Jesus entra com seus discípulos na Cidade Santa. Já se acalmaram as grandes ondas de entusiasmo aprovador. Jesus, embora já envolvido nos relâmpagos e tensões da decisão que se aproxima, quer obedecer a lei até o fim. Cumpre o rito sagrado de preparação para a festa pascal. Traz suas oferendas. Mas já sentimos: é ele mesmo que será sacrificado e elevado ao céu. As inimizades e o ódio das pessoas o atingem. No domingo ainda podia parecer que o sol espiritual que nele ascendia sobre o horizonte do drama estivesse em coincidência com o sol natural que acende o entusiasmo primaveril nas almas dos homens. Mas, na segunda-feira, o engano se esclarece. Na terça-feira santa, o drama-mistério ultrapassa a simples despedida do velho mundo. Jesus marcha cada vez mais majestoso para a cidade. Quanto mais silenciosa a massa, tanto maior o ardor da volição (vontade) na fisionomia do Cristo. Nasceu o dia de Marte: inflama-se a luta. A massa calou- se: seus líderes têm medo e o medo é a raiz do ódio, que passa à agressão. Cada tropa do exército inimigo envia na vanguarda seus atacantes. Um grupo após o outro aborda o Majestoso. Sucedem-se as perguntas traiçoeiras. Disfarçam sob a forma de questões aquilo que deveria ser um golpe na face ou um golpe de espada. Chegam primeiro os sacerdotes, os sábios das escrituras e os presbíteros, ou seja, todos os membros do Sinédrio judeu. Mandam perguntar a Jesus com que autoridade age. Exigem que se identifique. Chegam depois outros, os fariseus, com os seguidores de Herodes, e pousam a questão embaraçosa: “É justo pagar tributo a César?”. Seguem-se os saduceus: querem saber o que pensa Jesus sobre a ressurreição dos mortos. Finalmente, chega um indivíduo que, acreditando poder comprometê-lo perante todo o povo, pergunta qual é, em sua opinião, a mais nobre das leis. Esses ataques, representando a atração das inimizades, constituem a melhor prova de quão intensamente era sentida a majestade de Cristo. Os cães só latem e mordem quando têm medo. Assim também essas questões, em realidade golpes de ódio, partem do medo. As forças das trevas tremem porque está nascendo o sol.

Jesus responde a cada uma das quatro questões. Mas não se contenta em aparar os golpes investidos contra ele: aceita o desafio e luta com as armas do espírito. Desenrola imagens potentes. Do mesmo modo que nos três anos passados falava aos discípulos em parábolas maravilhosamente poéticas, responde agora aos seus adversários em parábolas de combate. Conta a parábola dos viticultores aos quais fora confiado o parreiral e que se recusam a entregar a safra, matam os mensageiros do dono das parreiras e, finalmente, até seu próprio filho. Os adversários sentem a potência combativa da parábola. Sentem que se refere a eles próprios. De fato, Jesus prediz aos seus inimigos, pela parábola, que eles o matarão. Ele não o faz para ganhar fama de profeta. Sua parábola é uma luta final pelas almas de seus adversários. Quiçá elas ainda desaparecerão. Quiçá ainda serão aterrorizados pela visão de si mesmos.

O Cristo lança aos seus adversários mais uma parábola: a parábola do casamento real. É inestimável a grandeza micaélica desta parábola combativa. Trata-se daqueles que seriam indicados como convidados. Todos falham. O convite é feito, então, a estranhos, a gente que, normalmente, nem seria levada em consideração. Os estudiosos oficiais de Deus revelaram-se como mentirosos e hipócritas, e a Divindade apela então para pessoas cuja aparência não revela estarem à procura de Deus. Isto se dirige diretamente contra os adversários, contra os eclesiásticos privilegiados pela tradição. Ao ser descrita, enfim, a imagem e o destino daquele que não estava usando roupa adequada para a festa, toda a humanidade pode ver-se em rigoroso espelho. Mas, mesmo dirigida, em última análise, contra todos, a parábola das bodas reais é, sem dúvida o mais potente golpe desferido no dia de Marte da Semana Santa.

O Cristo prossegue. Ele mesmo dirige agora uma questão àqueles que lhe pousam perguntas capciosas: “De quem é filho o Messias? “Respondem: É filho de Davi”. O Cristo tem que lhes mostrar, citando o 110º salmo que eles conhecem, no qual Davi designa o Messias como seu senhor. E pergunta: “Como pode ele chamar o Cristo de seu senhor quando se trata de seu filho?” O Cristo desmascara os que o cercam como estranhos ao espírito e sua devoção como desprovida de espiritualidade. Os homens só olham para o terreno. Para compreender o divino, a primeira condição seria ver que o Messias é filho de Deus e não dos homens. O Cristo mostra aos homens o que deveriam reconhecer nele; mas não o reconhecem.

E vem, então o quarto contragolpe pelas armas espirituais do Cristo: os nove “ai-de-vós” sobre os fariseus, desembocando na lamentação sobre Jerusalém, mundo destinado ao declínio. No início de sua atuação, Jesus, no círculo familiar de seus discípulos, pronunciou as nove bem-aventuranças do Sermão da Montanha, revelando as nove partes do Ideal Luminoso do homem-espírito. Agora, no final de sua via terrena, ele põe as nove sombras ao lado das nove luzes. Os “ai-de-vós” são o desmascaramento combativo da humanidade inimiga de Deus, assim como as bem-aventuranças foram a revelação das nove faces do relacionamento entre o homem e Deus. A lamentação sobre Jerusalém inverte a palavra do Sermão da Montanha sobre a “Cidade na Montanha” que, pela primeira vez, fez reluzir a imagem da Jerusalém celeste.

Eis um conteúdo bem pouco silencioso para a “Semana do Silêncio”. Os golpes de espada cintilam de um lado e de outro. Luta-se e briga-se. O poder marcial do Verbo se precipita da boca daquele que mais tarde não se lamentará ao carregar a cruz para o alto do Gólgota.

Ao declinar o dia, quando Jesus com seus discípulos, como todas as tardes, deixa a cidade e, do outro lado do vale de Kidron, galga o Morro de Getsemane através dos jardins onde tantas vezes ensinara na intimidade do círculo de seus discípulos, desta vez não dirige seus passos para Betfagé e Bethânia. No alto do Monte das Oliveiras, em meio a maravilhoso bosque da paz, convida os discípulos a se acomodarem. Ainda estremecendo da luta que travou durante o dia, começa a falar aos discípulos pela última vez ao ar livre. E as palavras destes ensinamentos não são certamente menos poderosas do que as palavras de combate espiritual contra os adversários. Os corajosos atos da alma realizados durante o dia conclamam o eco dos deuses. O Cristo é capaz, mais do que nunca, de oferecer revelações aos discípulos. O que lhes oferece nesta noite – costumamos chamá-lo de “Apocalipse do Monte das Oliveiras” – é uma intervenção nos grandes futuros dos destinos da humanidade. Rasga-se a cortina do futuro. Abrem-se grandes perspectivas apocalípticas.

É sempre assim na vida. Quando o dia registrou verdadeiros atos, a tarde e a noite convocam o eco celeste destes atos. Os resultados do dia não residem unicamente naquilo que foi diretamente criado; quando a atividade diurna bateu às portas do mundo espiritual, podem abrir-se, à noite, as portas de um outro mundo. E (deste mundo espiritual) flui o correspondente a genuína força interior empregada durante o dia.

O presente torna-se transparente. Os discípulos passaram o dia com o Cristo contemplando o templo. Revelou-se que tudo isso está condenado a desaparecer. A destruição de Jerusalém e do templo é uma necessidade espiritual. Se não fosse executada, 40 anos depois, pelos romanos, teria que ser consumada de alguma outra maneira. Na visão que surgiu do declínio do templo transparece a visão de uma grande catástrofe. Todo um mundo submerge. O Cristo pinta, aos olhos dos discípulos, as cores de um ocaso do mundo. E se, durante o dia, se anunciava uma separação dos espíritos em inimigos de Cristo e em um pequeno grupo disposto a formar o apostolado, este fato também se torna transparente: todo o transcurso da História Universal nada mais será do que uma seleção dos espíritos. Alguns tendem para o divino, os outros tendem contra ele. E por mais imponentes que sejam as realizações destes últimos na Terra, tudo não passará de produtos de um medo oculto. E aquilo que, silenciosamente, germinará no grupo – talvez pequeno – daqueles que se unem ao divino portará em si o futuro do mundo.

Jesus continua o apocalipse vespertino que apresenta aos discípulos. Como lançara aos adversários parábolas combativas, assim dá aos discípulos as mais íntimas parábolas que lhes poderia dar: as duas parábolas de sua volta. No apocalipse já dissera que, sob o bramir do temporal universal, o Filho do Homem aparecerá sobre as nuvens do céu. Apontou para um futuro no qual, em meio ao barulho do fim do mundo, a nova revelação do Cristo terá que abrir caminho. Agora, ele mostra aos discípulos, nas parábolas das dez virgens e dos talentos (dinheiro) confiados, o que devem fazer os homens a fim de se preparar para a volta do Cristo. Um dia chegará o noivo da alma. Um dia voltará àquele que, ao partir, confiou aos seus servos o dinheiro; voltará para exigir as contas. Embaixo, no templo, os “ai-de-vós” ressoaram como anti-bem-aventuranças. Agora o dia desemboca em um elevado Sermão da Montanha. Com os últimos e mais íntimos ensinamentos, o Cristo fornece aos discípulos uma provisão de coragem para milhares de anos. As parábolas do retorno e, especialmente, a visão final da seleção dos espíritos em ovelhas e bodes, na qual finaliza todo o Apocalipse do Monte das Oliveiras, são uma provisão que manterá os discípulos através de muitas encarnações. A luz do apocalipse, que ilumina a noite que desce, é o dom solar conquistado de Marte.

As palavras pronunciadas pelo Cristo na terça-feira santa são, em conjunto, uma maravilhosa linha de orientação para toda luta entre as trevas e a luz, para toda luta pelo apostolado de Cristo contra os inimigos de Cristo. A palavra de Goethe, afirmando que toda a história mundial nada mais é do que uma luta constante da fé contra a descrença, já representa uma procura pela chave fornecida em detalhe pelo transcurso da terça-feira santa. Toda oposição contra o Cristo e toda inimizade contra o espírito tem suas raízes na incredulidade, em uma falta de força, em um medo profundamente oculto na alma humana. O apostolado de Cristo se afirma e mantém através da fé germinando força-coragem interior. A campanha cuja estratégia pode ser deduzida do conteúdo da terça-feira santa não é, entretanto, em primeiro lugar, uma campanha de guerra entre dois mundos humanos. É uma luta que deve ser travada interiormente. Em toda alma humana misturam-se o medo e a coragem, o oponente e o discípulo do Cristo.

As parábolas combativas dirigidas aos oponentes expõem sempre o medo como raiz da inimizade contra o espírito. O egoísmo dos viticultores que não queriam entregar o produto da safra é, como todo egoísmo, um produto da fraqueza e do medo interior. Nasce no homem o primeiro germe de coragem quando ele aprende a tudo abandonar e tudo sacrificar porque se compenetra do sentimento de que tudo o que possui e pode possuir pertence à Divindade.

Os “ai-de-vós” são de modo especial, o desmascaramento da descrença. Iniciam-se pelas palavras que, de imediato, arrancam a máscara não só à renegação do espírito, mas também a qualquer tipo de tutela sobre as almas humanas: “Ai-de-vós”, escribas e fariseus! “Desviastes as chaves das portas do céu, onde não podeis entrar e, portanto, não quereis que entrem os que se esforçam para entrar!”

A maior coragem é a exigida pelo trabalho na própria alma. “A luta contra si mesmo é a mais difícil das lutas. Vencer-se a si mesmo é a mais bela vitoria”. Na luta travada no interior de nossa própria alma, conquistamos os mais maduros dons das forças marcianas. Já na parábola combativa das bodas reais reluz na imagem do traje matrimonial, o ideal da autotransformação meditativa. A alma que adquire luminosidade através da purificação e da oração é o traje matrimonial.

Mais ainda, as parábolas das dez virgens e do dinheiro confiado são uma provisão para o trabalho interior. O óleo nas lâmpadas é uma imagem das forças que devem ser adquiridas pela alma; o dinheiro confiado simboliza os órgãos espirituais desenvolvidos no ser humano.

A resposta dada pelo Cristo à questão dos impostos revela como se impõe a genuína coragem adquirida através do esforço interior. Quem se esforça de maneira salutar pelo espírito, não se distancia na Terra, mas sabe manter o equilíbrio entre deveres terrenos e ideais espirituais e, justamente assim, adquire a soberania solar sobre tudo o que é terreno. É capaz de dizer, mesmo se, como era o caso naqueles dias, o trono está ocupado por uma fera: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

Na grande visão final da seleção dos espíritos revela-se, finalmente, o segredo da coragem interior. “O que fizestes a qualquer um de vossos mínimos irmãos, a mim o fizestes”. O fato de um homem estar trilhando corretamente o caminho de sua alma e de seu espírito revela-se em sua capacidade de amar. Amor é o verdadeiro antônimo do medo. Todo verdadeiro esforço ou tendência em direção ao espírito começa pela coragem interior e desemboca no amor. O verdadeiro amor pelos homens é idêntico ao amor pelo próprio Cristo. Os poderes marciais do dia são, embora caia a noite, totalmente irradiados pelo do Cristo quando todas as palavras de luta espiritual culminam a palavra amor.




Emil Bock






Fonte do Texto e da Gravura:
Biblioteca Virtual da Antroposofia
http://www.antroposofy.com.br

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