domingo, 19 de abril de 2020

A IMITAÇÃO DE CRISTO (UM ESTUDO TEOSÓFICO)

  Estátua de Tomás de Kempis (1380-1471), situada na cidade em que nasceu.



Um Estudo Teosófico Sobre Obra Clássica

A Teosofia tem as suas maneiras próprias de identificar a sabedoria eterna presente nos ensinamentos cristãos, resgatando-a da letra morta do ritualismo e da crença cega. 

Como um pequeno exemplo prático desse fato, apresentamos a seguir 34 fragmentos do livro clássico “Imitação de Cristo” [1].  Os Comentários visam decodificar estas passagens, liberando-as da forma exterior e revelando suas ideias internas, que fazem parte da visão teosófica da vida.

O autor de “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis (1380-1471), foi educado pela Irmandade da Vida em Comum e mais tarde se tornou membro dela. A esta Irmandade pertenceu também o cardeal e filósofo Nicolau de Cusa (1400-1464). [2]  De acordo com Helena Blavatsky, Cusa foi um adepto e um precursor do movimento teosófico moderno. [3]

Os três primeiros Livros de “Imitação de Cristo” equivalem a um tratado de filosofia estoica, colocado sob uma roupagem cristã: daí a sua importância em teosofia. O quarto Livro ou quarta parte da obra, porém, não se harmoniza com o resto do conteúdo. Parece algo alheio. Poderia ter sido escrito para escapar da perseguição do Vaticano.

Há algumas “chaves de leitura” para o texto de “Imitação”.  Em geral é correto ler a palavra “Deus” como significando “Lei Universal”. Em alguns casos, porém – como no caso da relação pessoal com Deus – o termo designa o próprio eu superior ou alma eterna do ser humano, cuja substância é universal.

O termo “cruz” significa “Carma”.

As palavras “Cristo” e “Jesus” são termos lendários que designam o sexto princípio da consciência humana, também conhecido como “eu superior” e “alma espiritual”.

Os 34 fragmentos são apresentados em itálico, em negrito. Ao final de cada um deles são indicados o Livro (ou Parte), o capítulo e o parágrafo a que pertencem.

Um: a Fonte Mais Alta

“A doutrina de Cristo é mais excelente que a de todos os santos (…).” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)

Comentário:

A primeira frase selecionada de “Imitação” significa que devemos ir à fonte mais elevada possível.

Os Evangelhos constituem uma autêntica luz inspiradora, quando lidos adequadamente. Eles contêm um grande número de ensinamentos pitagóricos, judaicos, confucionistas e budistas, e muitos princípios retirados de outras religiões.

No entanto, os ensinamentos de “Cristo” também estão além da literatura. Eles correspondem simbolicamente à “voz do silêncio”, o mantra sem palavras emitido pela própria alma de cada buscador da verdade, em seu aspecto universal e divino.

Dois: um Maná Invisível

“… E quem tiver seu espírito encontrará nela [na doutrina de Cristo] um maná escondido.”  (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)

Comentário:

Nenhuma leitura da letra morta pode ser eficiente em filosofia ou religião. O real significado está oculto, do ponto de vista do mundo das aparências. Portanto o estudo filosófico deve combinar vários níveis de consciência. É necessário decodificar as palavras para ver o ensinamento como um processo vivo e criativo.

Três: a Visão Correta

“Quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo, é-lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 2.)

Comentário:

Para realmente entender a teosofia, devemos testar e aplicar o seu ensinamento na vida diária. O mundo sagrado está potencialmente presente em cada situação. A vida de H.P. Blavatsky – assim como a de outros sábios de diferentes épocas – constitui  uma fonte autorrenovada de orientação e nos inspira.

Quatro: Além das Palavras

“Que te aproveita discutires sabiamente sobre a Santíssima Trindade, se não és humilde, desagradando, assim, a essa mesma Trindade? Na verdade, não são palavras elevadas que fazem o homem justo; mas é a vida virtuosa que o torna agradável a Deus. Prefiro sentir a contrição [arrependimento] dentro de minha alma, a saber defini-la.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)

Comentário:

“Deus” é a  lei universal, e é a Natureza  em sua totalidade e diversidade absolutas. A Trindade simboliza o mistério da unidade interior que convive com o contraste e diferença externos.  

Nenhuma fala pode ser mais valiosa que a intenção que está na sua origem. Tampouco pode ser muito mais forte que a prática diária da qual emerge.  

Cinco: a Caridade e a Graça

“Se soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos, de que te serviria tudo isso sem a caridade e a graça de Deus?” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)

Comentário:

Ainda que você saiba recitar de memória as escrituras religiosas de todos os povos e os ensinamentos de cada filósofo clássico, oriental e ocidental, o fato será inútil se você não perceber a unidade de todos os seres, e não enxergar o seu próprio dever para com a Vida Una da qual você faz parte.

Seis: a Suprema Sabedoria

“Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade (Eclesiastes, 1, 2), senão amar a Deus e só a ele servir. A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao reino dos céus.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)

Comentário:

Tudo é vaidade, exceto a tarefa de cumprir nosso dever para com nosso eu superior e para com a lei do equilíbrio universal.

Sete: uma Felicidade que Dura Sempre

“Vaidade é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar nelas. Vaidade é também ambicionar honras e desejar posição elevada. Vaidade, seguir os apetites da carne e desejar aquilo pelo que, depois, serás gravemente castigado. Vaidade, desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se de que seja boa. Vaidade, só atender à vida presente sem providenciar para a futura. Vaidade, amar o que passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 4.)

Comentário:

Estar preocupado sobretudo com coisas de curto prazo, e desprezar o futuro de longo prazo – que eu mesmo estou, em grande parte, preparando durante minha encarnação atual -;  isso também é vaidade.

Oito: Buscar o Invisível

“Lembra-te a miúdo do provérbio: ‘Os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir’ (Eclesiastes 1, 8). Portanto, procura desapegar teu coração do amor às coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis: pois aqueles que satisfazem seus apetites sensuais mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 5.)

Comentário:

A verdadeira consciência é a voz sem palavras do nosso eu superior ou alma espiritual.

As palavras “graça de Deus” designam a energia sutil e impessoal do amor cósmico e indicam o sexto princípio da consciência humana. A expressão revela a unidade transcendente dos seres ao mesmo tempo que respeita a sua aparente diversidade. A graça superior está em  todas as partes. Não pertence a alguma divindade específica, muito menos a um deus “pessoal”.

Nove: o Valor do Conhecimento

“Todo homem tem desejo natural de saber; mas que aproveitará a ciência, sem o temor de Deus? Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus, do que o filósofo soberbo que observa o curso dos astros mas se descuida de si mesmo.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 1.)

Comentário:

Nosso Criador é o nosso eu superior, que fez com que nascêssemos na presente encarnação, mas também pode ser descrito como a Lei Universal.

Aquele que “teme a Deus”, ou “reverencia o mundo divino”, é quem vive em harmonia com sua própria alma espiritual.

Em teosofia, o astrônomo e o  humilde camponês devem ser a mesma pessoa. Não há oposição entre os dois: o real conhecimento é inseparável da pureza de coração.

Dez: Autoconhecimento

“Aquele que se conhece bem despreza-se e não se compraz em humanos louvores. Se eu soubesse quanto há no mundo, porém me faltasse a caridade, de que me serviria isso perante Deus, que me há de julgar segundo minhas obras?” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 1.)

Comentário:

“Desprezar-se” aqui significa desprezar o caminho falso do egoísmo e admitir sinceramente seus erros perante o tribunal da sua própria consciência.

Neste trecho temos um princípio teosófico central. O “deus” que me irá julgar é o meu eu superior. Ao final da minha encarnação atual, ele revisará cada ação feita, estabelecendo as linhas cármicas não só dos meus estados pós-morte, mas do meu próximo nascimento.

Onze: Evitar Distrações

“Renuncia ao desordenado desejo de saber, porque nele há muita distração e ilusão. Os letrados gostam de ser vistos e tidos como sábios. Muitas coisas há cujo conhecimento pouco ou nada aproveita à alma. E muito insensato é quem de outras coisas se ocupa e não das que tocam à sua salvação. As muitas palavras não satisfazem à alma, mas uma palavra boa refrigera [renova] o espírito e uma consciência pura inspira grande confiança em Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 2.)

Comentário:

A demonstração externa de santidade ou de erudição não satisfaz à alma. Conforme diz outra versão desta obra (“The Imitation of Christ”, translated by P.G. Zomberg, Dunstan Press), “é a bondade das nossas vidas que traz conforto às nossas mentes”.  E Helena Blavatsky escreveu:

“…A Ética da Teosofia é ainda mais necessária à humanidade do que os aspectos científicos dos fatos psíquicos da natureza e do homem.” [4]

Doze: uma Vida Sagrada

“Quanto mais e melhor souberes, tanto mais rigorosamente serás julgado, se com isso não viveres mais santamente. Não te desvaneças, pois, com qualquer arte ou conhecimento que recebeste.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 3.)

Comentário:

O “Dia do Julgamento” é também individual e não necessariamente coletivo,  conforme o pensador português Antônio Vieira explicou no ano de 1652 em um dos seus sermões.[5]

O “julgamento” individual é feito pelo nosso próprio eu superior de acordo com a Lei do Carma e acontece ao final de cada encarnação. Os “julgamentos” coletivos são pontos cármicos de não-retorno na evolução humana e planetária. Eles são examinados no livro “A Doutrina Secreta”, de Helena Blavatsky.

O que fazemos com o nosso suposto conhecimento é a questão-chave para a teosofia autêntica. O conhecimento precisa ser confirmado e validado pela ação correspondente, e esta será necessariamente imperfeita. A ação correta consiste na tentativa sincera de fazer o melhor que podemos. Nossos esforços nesse sentido devem ser corrigidos e renovados periodicamente, à medida que as circunstâncias se alteram. Gradualmente aprendemos a aprender com os erros, e a concentrar a mente e o coração na meta nobre livremente escolhida por nós. 

Treze: Para Aprender o que é Útil

“Se te parece que sabes e entendes bem muitas coisas, lembra-te que é muito mais o que ignoras. ‘Não presumas de alta sabedoria’ (Romanos, 11, 20), antes confessa a tua ignorância. Como tu queres a alguém preferir-te, quando se acham muitos mais doutos do que tu e mais versados na lei? Se queres saber e aprender coisa útil, deseja ser desconhecido e tido por nada.” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 3.)

Comentário:

Nossos pensamentos devem ser  honestos e verdadeiros. Seja o que for que disserem os que nem sequer tentam agir com ética e com respeito pela verdade, eles são seres infelizes e estão muito longe do caminho correto. No entanto, merecem nosso respeito impessoal. Colherão o que plantaram, e no futuro terão uma chance de corrigir seus erros.

Devemos ter como objetivo aprender com quem é mais sábio que nós. Não importa se o nosso contato com eles é interno ou externo e se ocorre através de palavras escritas ou sem o uso de palavras. [6] Para viver esta aprendizagem superior, é preciso tratar de ajudar o trabalho das Almas que guiam a humanidade pelo caminho da luz.  

Catorze: Permaneça Vigilante

“Ainda quando vejas alguém pecar publicamente ou cometer faltas graves, nem por isso te deves julgar melhor, pois não sabes quanto tempo poderás perseverar no bem.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 4.)

Comentário:

Combata o crime e o egoísmo. Lute ainda mais contra as sementes deles e as suas fontes. Não lave as mãos diante da injustiça de qualquer tipo. Encare a injustiça contra qualquer um como uma injustiça contra o seu pai, a sua mãe ou seu mestre espiritual. Tenha piedade e compaixão diante das pessoas egoístas, mas não aceite as suas ações daninhas. Os desinformados são parte da família humana, assim como você.

Quinze: Não Compare

“Nós todos somos fracos mas a ninguém deves considerar mais fraco que a ti mesmo.” (Livro Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 4.)

Comentário:

Cabe seguir o exemplo dos sábios,  e manter à nossa frente o ideal de progresso e perfeição humanos.

Se parecemos mais fortes do que alguém, isso não tem importância. E se pensarmos que o fato é importante, este pensamento vaidoso mostra fraqueza e ilusão.

Dezesseis:  Ignorando Questões Obscuras

“Bem-aventurado aquele a quem a verdade por si mesma ensina, não por figuras e vozes que passam, mas como em si é. Nossa opinião e nossos juízos muitas vezes nos enganam e pouco alcançam. De que serve a sutil especulação sobre questões misteriosas e obscuras [7], por cuja ignorância não seremos julgados?” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 1.)

Comentário:

Agir de acordo com a Lei do Equilíbrio é melhor que estar limitado a explicações teóricas. No entanto, combinar as duas coisas é necessário. O lema do movimento teosófico é “Não há religião mais elevada que a verdade”. A Verdade transcende todas as suas descrições verbais, mas os enfoques limitados dela são úteis, quando examinados de modo inteligente.

Dezessete:  Olhar e Não Ver

“Grande loucura é descurarmos as coisas úteis e necessárias, entregando-nos, com avidez, às curiosas e nocivas. Temos olhos para não ver. (Salmo 113, 13)” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 1.)

Comentário:

A melhor defesa do peregrino é o cumprimento do seu dever maior.

A compreensão saudável da vida depende de olhar para ela desde um ponto de vista correto, e é a prática do altruísmo que garante isso. As mentes egoístas distorcem tudo o que olham: a verdadeira inteligência é universal.   

Dezoito: o Coração Firme na Paz

“Aquele a quem fala o Verbo eterno se desembaraça de muitas questões. Desse Verbo único procedem todas as coisas e todas o proclamam e esse é o princípio que também nos fala (João 8, 25). Sem ele não há entendimento nem reto juízo. Quem acha tudo neste Único, e tudo a ele refere e tudo nele vê, poderá ter o coração firme e permanecer em paz com Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 2.)

Comentário:

O trecho inteiro ressoa em harmonia com os escritos de H. P. Blavatsky. 

O Verbo é o “Som” primordial, o Mantra da manifestação universal, a Música das Esferas.

Dezenove:  Silêncio e Verdade

“Ó Deus de verdade, fazei-me um convosco na eterna caridade! Enfastia-me, muita vez, ler e ouvir tantas coisas; pois em vós acho tudo quanto quero e desejo. Calem-se todos os doutores, emudeçam todas as criaturas em vossa presença; falai-me vós só.” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 2.)

Comentário:

A personalização simbólica do universo e de suas leis deve ser aceita como um processo cultural que ocorre em todas as nações ao redor do mundo, e como uma forma de codificar e registrar o  Mistério inefável. A tradição esotérica ensina como interpretar as lendas relacionadas a Zeus e Saturno, ao deus cristão, ao Brahman e ao Parabrahman hindus, aos Imortais taoistas, e assim por diante.

Quando a crença cega predomina, algo é considerado verdade porque “deus”,  ou o Cristo, ou algum profeta ou guru diz que é verdade. Em filosofia, ocorre o contrário. Algo não é verdade porque um sábio afirma que é,  mas o sábio diz que algo é verdadeiro porque essa é a verdade.

O verdadeiro Mestre nunca se coloca acima da lei ou da verdade, mas trabalha humildemente a serviço delas.  

Vinte: Recolhimento Traz Compreensão

“Quanto mais recolhido for cada um e mais simples de coração, tanto mais sublimes coisas entenderá sem esforço, porque do alto recebe a luz da inteligência.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 3.)

Comentário:

Este ensinamento é parte da teosofia original de Helena Blavatsky e dos Mestres de Sabedoria.

Vinte e Um: o Espírito Puro

“O espírito puro, singelo e constante não se distrai no meio de múltiplas ocupações porque faz tudo para honra de Deus, sem buscar em coisa alguma o seu próprio interesse. O que mais te impede e perturba do que os afetos imortificados do teu coração? O homem bom e piedoso ordena primeiro no seu interior as obras exteriores; nem estas o arrasam aos impulsos de alguma inclinação viciosa, senão que as submete ao arbítrio da reta razão.” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 3.)

Comentário:

Nosso “Deus” ou “Senhor” é anônimo: é o nosso eu superior, e a ele devemos lealdade.  

Vinte e Dois: Enxergando as Nossas Fraquezas

“Que mais rude combate haverá do que procurar vencer-se a si mesmo? E este deveria ser nosso empenho: vencermo-nos a nós mesmos, tornarmo-nos cada dia mais fortes e progredirmos no bem.”

“Toda a perfeição, nesta vida, é mesclada de alguma imperfeição, e todas as nossas luzes são misturadas de sombras. O humilde conhecimento de ti mesmo é caminho mais certo para Deus que as profundas pesquisas da ciência.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parágrafos 3 e 4.)

Comentário:

O cristianismo que gira em torno de rituais não oferece um caminho para o esclarecimento e a iluminação. O estudo da letra morta das escrituras é inútil, e a advertência inclui os escritos teosóficos. Para trilhar o caminho que leva à Verdade é necessário fazer pesquisas independentes, com um coração humilde e observando calmamente nossas próprias fraquezas.   

Vinte e Três: a Vida Virtuosa

“Não é reprovável a ciência ou qualquer outro conhecimento das coisas, pois é boa em si e ordenada por Deus; sempre, porém, devemos preferir-lhe a boa consciência e a vida virtuosa. Muitos, porém, estudam mais para saber, que para bem viver; por isso erram a miúdo e pouco ou nenhum fruto colhem.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 4.)

Comentário:

O propósito da vida é aprender. No entanto cada porção de conhecimento que obtemos vem até nós com uma inevitável quota de  deveres éticos.

Cabe examinar cuidadosamente para que usamos o conhecimento. Porque só um coração honesto, ao buscar metas nobres, sabe usar o conhecimento de maneira correta e está à altura das informações mais amplas sobre a vida.  

Vinte e Quatro: a Pergunta Que Será Feita

“Ah! se se empregasse tanta diligência em extirpar vícios e implantar virtudes como em ventilar questões, não haveria tantos males e escândalos no povo, nem tanta relaxação nos claustros. De certo, no dia do juízo não se nos perguntará o que lemos, mas o que fizemos; nem quão bem temos falado, mas quão honestamente temos vivido.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 5.)

Comentário:

O cristianismo místico sempre teve uma relação difícil com as igrejas autoritárias.

Um exemplo disso, entre milhares, é o fato de que Geert de Groote – o fundador da Irmandade da Vida em Comum da qual fazia parte Tomás de Kempis -, denunciou e combateu os abusos sacerdotais. [8]

Vinte e Cinco: o Verdadeiro Sábio

“Dize-me: onde estão agora todos aqueles senhores e mestres que bem conheceste, quando viviam e floresciam nas escolas? Já outros possuem suas prebendas [posições de prestígio], e nem sei se porventura deles se lembram. Em vida pareciam valer alguma coisa, e hoje ninguém deles fala.”

“Oh! como passa depressa a glória do mundo! Oxalá a sua vida tenha correspondido à sua ciência; porque, destarte, terão lido e estudado com fruto. Quantos, neste mundo, descuidados do serviço de Deus, se perdem por uma ciência vã! E porque antes querem ser grandes que humildes, se esvaecem em seus pensamentos (Romanos 1, 21). Verdadeiramente grande é aquele que tem grande caridade. Verdadeiramente grande é aquele que a seus olhos é pequeno e avalia em nada as maiores honras. Verdadeiramente prudente é quem considera como lodo tudo o que é terreno, para ganhar a Cristo (Filipenses 3, 8). E verdadeiramente sábio é aquele que faz a vontade de Deus e renuncia à própria vontade.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parágrafos 5 e 6.)

Comentário:

A “vontade de Deus” é o propósito da nossa alma espiritual; “Cristo” simboliza a consciência cósmica.

Vinte e Seis: Independência e Autorresponsabilidade

“Não se há de dar crédito a toda palavra nem a qualquer impressão, mas cautelosa e naturalmente se deve, diante de Deus, ponderar as coisas.”  (Livro Primeiro, capítulo 4, parág. 1.)

Comentário:

Com a exceção da palavra “Deus”,  esta ideia pertence literalmente às filosofias de todos os povos, incluindo o budismo, o pitagorismo e a teosofia.

Vinte e Sete:  Evite Falar Mal dos Outros

“Mas ai! que mais facilmente acreditamos e dizemos dos outros o mal que o bem, tal é a nossa fraqueza. As almas perfeitas, porém, não creem levianamente em qualquer coisa que se lhes conta, pois conhecem a fraqueza humana inclinada ao mal e fácil de pecar por palavras.”

“Grande sabedoria  é não ser precipitado nas ações, nem aferrado obstinadamente à sua própria opinião; sabedoria é também não acreditar em tudo que nos dizem, nem comunicar logo a outros o que ouvimos ou suspeitamos.” (Livro Primeiro, capítulo 4, parágrafos 1 e 2.)

Comentário:

Este ensinamento é teosófico e H. P. Blavatsky fez afirmações semelhantes.

Vinte e Oito: Prudência e Humildade

“Toma conselho com um varão sábio e consciencioso, e procura antes ser instruído por outrem, melhor que tu, que seguir teu próprio parecer. A vida virtuosa faz o homem sábio diante de Deus e entendido em muitas coisas. Quanto mais humilde for cada um em si e mais sujeito a Deus, tanto mais prudente será e calmo em tudo.” (Livro Primeiro, capítulo 4, parágrafo 2.)

Comentário:

Entre  os degraus da Escada de Ouro dos ensinamentos teosóficos, podemos ver  os seguintes:

“Afeto fraternal para com seu codiscípulo; presteza para dar e receber conselho e instrução; leal senso de dever para com o Instrutor…”. [9]

Os sábios ensinam que a ajuda mútua  é essencial na busca da verdade.

Vinte e Nove:  o Amor à Verdade

“Nas Sagradas Escrituras devemos buscar a verdade, e não a eloquência. Todo livro sagrado deve ser lido com o mesmo espírito que o ditou. Nas Escrituras devemos antes buscar nosso proveito que a sutileza de linguagem. Tão grata nos deve ser a leitura dos livros simples e piedosos, como a dos sublimes e profundos. Não te mova a autoridade do escritor, se é ou não de grandes conhecimentos literários; ao contrário, lê com puro amor a  verdade. Não procures saber quem o disse;  mas considera o que se diz.” (Livro Primeiro, capítulo 5, parág. 1.)

Comentário:

A ideia de Sagradas Escrituras inclui os livros clássicos que pertencem às  religiões e filosofias de todos os povos e todos os tempos, desde o Manuscrito Huarochirí,  dos Andes, até o “Popol Vuh” da América Central e “A Doutrina Secreta”, publicada no século 19. 

Deve-se ler os livros sobre sabedoria divina desde  o ponto de vista do coração e de acordo com a afinidade interior.

Trinta: a Verdade Fala de Muitos Modos

“Os homens passam, mas a verdade do Senhor permanece eternamente (Salmo 116, 2). De vários modos nos fala Deus, sem acepção de pessoas.” (Livro Primeiro, capítulo 5, parág. 2.)

Comentário:

A anônima Lei Universal fala para nós de muitas maneiras.

Um Mestre de Sabedoria escreveu para uma discípula leiga: “Trate, filha, de aprender uma lição através de quem quer que seja que ela estiver sendo dada. ‘Até mesmo as pedras podem pregar sermões’.” [10]

A independência é fundamental, e o Buddha ensinou:

“Não se deixem desorientar por relatos, por tradição ou por ouvir dizer. Não se deixem desorientar pelo conhecimento das Coleções (de Escrituras), nem por mera lógica e inferência, nem pela consideração de razões, nem pela reflexão sobre algum ponto de vista e pela aprovação dele, nem pela conveniência, nem pelo fato de o recluso (que defende o ponto de vista) ser o seu instrutor. Mas quando vocês souberem por si mesmos: ‘Estas coisas não são boas, estas coisas são erradas, estas coisas são censuradas pelos inteligentes, estas coisas, quando realizadas e colocadas em prática, conduzem à perda e ao sofrimento’ – então as rejeitem.” [11]

Trinta e Um: Lê com Humildade

“A nossa curiosidade nos embaraça, muitas vezes, na leitura das Escrituras; porque queremos compreender e discutir o que se devia passar singelamente. Se queres tirar proveito, lê com humildade, simplicidade e fé, sem cuidar jamais do renome do letrado.”

“Pergunta de boa vontade e ouve calado as palavras dos santos; nem te desagradem as sentenças dos velhos, porque eles não falam sem razão.” (Livro Primeiro, capítulo 5, mesmo parág. 2.)

Comentário:

Lê os escritos dos homens e mulheres sábios de todos os tempos.

Escuta os teus codiscípulos, porque eles são corresponsáveis pelo teu bem-estar espiritual,  e a responsabilidade é mútua. Podes aprender com as ações corretas deles, e também podes aprender com os erros deles, assim como eles aprendem com os teus erros e teus acertos.

Trinta e Dois: Aceita a Paz

“Todas as vezes que o homem deseja alguma coisa desordenadamente, torna-se logo inquieto. O soberbo e o avarento nunca sossegam; entretanto, o pobre e o humilde de espírito vivem em muita paz. O homem que não é perfeitamente mortificado facilmente é tentado e vencido, até em coisas pequenas e insignificantes. O homem espiritual, ainda um tanto carnal e propenso à sensualidade, só a muito custo poderá desprender-se de todos os desejos terrenos. Daí a sua frequente tristeza, quando deles se abstém, e fácil irritação, quando alguém o contraria.”

“Se, porém, alcança o que desejava, sente logo o remorso da consciência, porque obedeceu à sua paixão, que nada vale para alcançar a paz que almejava. Em resistir, pois, às paixões, se acha a verdadeira paz do coração, e não em segui-las. Não há portanto, paz no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas externas, mas somente no daquele que é fervoroso e espiritual.” (Livro Primeiro, capítulo 6, parágrafos 1 e 2.)

Comentário:

O estudante bem informado mantém uma busca constante do ideal de progresso e perfeição  humanos, e faz experiências práticas de desapego em relação às coisas terrenas.

O peregrino evita dois extremos.

Ele não deve obedecer cegamente aos apetites inferiores; de outro lado, é inútil seguir um tipo de disciplina que gera um excesso de conflitos neuróticos. O equilíbrio é essencial. O esforço é de longo prazo, e cada um deve ser o seu próprio mestre e discípulo.

Há também marés cármicas, que devem ser observadas e compreendidas nesse esforço de uma vida inteira.

Uma vez que o peregrino compreende verdades universais, os desejos do eu inferior perdem força  gradualmente. A disciplina diária, o estudo e a contemplação da lei universal destroem pouco a pouco as raízes do egocentrismo no eu inferior do estudante.  

O alicerce da autodisciplina vitoriosa está na compreensão da nossa interconexão pessoal com o Cosmo inteiro. Quando o horizonte individual inclui  o horizonte da galáxia, fica mais fácil aceitar a paz e a vida humilde no plano físico.

Trinta e Três: Vive Como um Pobre

“Insensato é quem põe sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de servir a outrem por Jesus Cristo, e ser tido como pobre neste mundo.” (Livro Primeiro, capítulo 7, parág. 1.)

Comentário:

A ideia de que alguém não deve ter vergonha de servir a outrem pelo bem da sua própria alma espiritual  está presente em religiões mais antigas que o cristianismo.

Nos Vedas, por exemplo, o Brhad-aranyaka Upanixade afirma:

“Não é pelo marido em si que o marido é amado, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] no marido, que o marido é amado. Não é pela esposa em si que a esposa é amada, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal]  na esposa, que a esposa é amada. Não é pelos filhos em si mesmos que os filhos são amados, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] nos filhos, que os filhos são amados.” [12]

Há uma dimensão impessoal e divina nos afetos humanos,  da qual podemos tornar-nos plenamente conscientes.

Trinta e Quatro: Faze o que Está a Teu Alcance

“Não confies em ti mesmo, mas põe em Deus [a Lei] tua esperança. Faze de tua parte o que puderes, e Deus [a Lei] ajudará tua boa vontade. Não confies em tua ciência, nem na sagacidade de qualquer vivente, mas antes na graça de Deus [a Lei], que ajuda os humildes e abate os presunçosos.”  (Livro Primeiro, capítulo 7, mesmo parág. 1.)

Comentário:

A renúncia ao desejo pessoal conduz a uma vida de simplicidade voluntária, na qual a ética e a sabedoria são possíveis.

A justiça é imparcial, e um dos Mahatmas dos Himalaias escreveu que, para os raja-iogues, “um lustrador de botas honesto é tão bom quanto um rei honesto, e […] um varredor de ruas imoral é muito melhor e mais desculpável do que um imperador imoral.” [13]

A recomendação “faze de tua parte o que puderes…” expressa a principal ideia dos ensinamentos de Epicteto. Ao cumprir o seu dever espiritual interno, o peregrino  evita desperdiçar energias com o que não depende dele. Focando a atenção no que lhe diz respeito, ele aprende a cooperar não só com o seu próprio eu superior, mas com outros seres, mais experientes e mais avançados.




Carlos Cardoso Aveline


Fonte do Texto e da Gravura: FilosofiaEsotérica
https://www.filosofiaesoterica.com/a-imitacao-de-cristo/



NOTAS:

[1] “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis, Ed. Vozes, Petrópolis, vigésima-oitava edição, 1993, 277 pp.  O livro tem numerosas edições em português, inclusive da editora Ediouro (1968), em que o nome de autor aparece como Thomas A. Kempis; da Editora Ave-Maria Ltda. (SP, 1928), em que não há nome de autor; e da Livraria Editora Francisco Alves, RJ, 1898, traduzido em versos por Affonso Celso e com 620 páginas. O livro, o capítulo e o parágrafo de cada citação são mencionados entre parênteses no seu final.  Edições em inglês da obra incluem: “The Imitation of Christ”, translated by P.G. Zomber, Dunstan Press, Maine, USA, copyright 1984, 250 pp.;  “Of the Imitation of Christ”, by Thomas à Kempis, Whitaker House, USA, 1981, 256 pp.; “The Inner Life”, Penguin Books, 2004, translated by Leo Sherley-Price, 108 pp.; e “The Imitation of Christ”, Thomas A. Kempis, translated by George F. Maine, published by Collins Sons, 1957, London and Glasgow, 1957, 280 pp.

[2] “A Concise Encyclopedia of Christianity”, Geoffrey Parrinder, itens “Brethren of the Common Life”, “Kempis, Thomas à”,  e “Nicholas of Cusa”.

[3] Sobre Nicolau de Cusa, veja em nossos websites o artigo “Reencarnação Consciente e Imediata”.  Examine também “Collected Writings”, H. P. Blavatsky, TPH, vol. XIV, pp. 377-378. Leia os itens “Nicholas of Cusa” e “Brethren of the Common Life”, conforme as indicações dadas na Nota 2, acima.  Cabe ter presente o fato de que H.P. Blavatsky escreve, em “Ísis Sem Véu”, Ed. Pensamento, volume III, p. 29:   “A Magia, em todos os seus aspectos, foi amplamente e quase abertamente praticada pelo clero até a Reforma.” De posse destas informações, fica mais fácil compreender por que a mística cristã, incluindo o franciscanismo, tem até hoje elementos teosóficos importantes.

[4] “Five Messages”, H. P. Blavatsky, Theosophy Co., Los Angeles, 1922, Second message, p. 12. O livreto está disponível  em nossos websites. Para vê-lo, basta clicar aqui.  

[5] Padre Antônio Vieira, “Sermões”, Editora das Américas, SP, volume IV, 1957, 441 pp., ver por exemplo pp. 28-40.

[6] Um tal contato frequentemente inclui as palavras escritas de ensinamentos clássicos  e uma inspiração silenciosa em níveis superiores de percepção.

[7] Uma das melhores edições em inglês desta obra, preparada por P.G. Zomber (ver nota 1, acima), usa a expressão “coisas esotéricas”, “esoteric things” (p. 6).

[8] Veja “A Concise Encyclopedia of Christianity”, Geoffrey Parrinder, item “Brethren of the Common Life”, p. 48.

[9] Examine o artigo “Comentários à Escada de Ouro”.

[10]  “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C. Jinarajadasa, Ed. Teosófica, Brasília, 1996, ver p. 147, segunda carta para Laura C. Holloway.

[11] “The Wisdom of Buddhism”, Edited by Christmas Humphreys, Curzon-Humanities, London, UK, 1987, 280 pp., p. 71. 

[12] “The Principal Upanisads”, Edited with Notes by S. Radhakrishnan, London: George Allen & Unwin Ltd; New York: Humanities Press Inc., 1974, 958 pp., ver p. 197.

[13] “Cartas dos Mahatmas”, Ed. Teosófica, Brasília, volume I, Carta 29, p. 158.

A SABEDORIA ECOLÓGICA DOS INDÍGENAS



O Que Temos a Aprender Com os Povos Tradicionais


Em vários aspectos, o mais novo e o mais velho se unem hoje para renovar e ampliar radicalmente nosso modo de enxergar a realidade.

Nas últimas décadas do século 20, a vanguarda da física redescobriu a filosofia esotérica através de Fritjof Capra, David Bohm e outros. O químico da NASA Jim Lovelock descobriu que o planeta Terra pode ser considerado um ser vivo – como pensava o mundo grego – e criou a teoria de Gaia. Na biologia, Rupert Sheldrake resgatou velhos conceitos da filosofia do oriente, especialmente o akasha e a luz astral, através de modernos métodos experimentais. Estas mudanças na visão científica do mundo estabelecem as bases para uma relação inteiramente nova entre ser humano e ambiente natural, e nos fazem compreender, também, que podemos aprender grandes lições avaliando melhor a filosofia de vida dos primeiros habitantes da América. 

Segundo a ecologia profunda, todos os seres têm – em princípio – igual direito à vida. Esta corrente de pensamento aberta e sem dogmas foi criada na Noruega no início da década de 70 pelo filósofo e músico Arne Naess. Nos últimos anos os livros e seminários dedicados ao tema têm ganhado espaço rapidamente, inclusive no Brasil.

Embora seja moderno na aparência e inspire uma nova geração de cientistas, este modo de enxergar a vida é antigo e tradicional. A autoria do maior e mais famoso manifesto de ecologia profunda que conheço é atribuída ao chefe Seattle, dos índios norte-americanos Duwamish, em 1855, isto é, onze anos antes de o biólogo alemão Ernest Haeckel propor pela primeira vez, em 1866, a criação de uma “nova disciplina” a ser chamada no futuro de “ecologia”. O chefe Seattle perguntou ao presidente norte-americano Franklin Pearce, que lhe havia proposto comprar as terras indígenas:

“É possível comprar ou vender o céu e o calor da terra? Tal ideia é estranha para nós. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como você poderá comprá-los? Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada areia da praia, cada bruma nas densas florestas, cada clareira e cada inseto a zumbir são sagrados na memória do meu povo. A seiva que corre através das árvores carrega as memórias do homem vermelho.”

A ideia central da ecologia profunda é abandonar a ideia de que a natureza é apenas um amontoado de “recursos naturais”. Todo egoísmo tem uma vocação inevitável para o fracasso, e as políticas de preservação ambiental implantadas no século 20 fracassaram amplamente porque partiam de uma filosofia baseada na ideia de que o homem pode usar e abusar da natureza. Quando você parte de uma premissa falsa, seu raciocínio e sua prática estão destinados à derrota. Só quando deixamos de lado a impressão ilusória de que o homem é o centro do universo passa a ser possível, para nós, perceber que pertencemos à natureza, somos seus filhos e devemos respeitá-la. A premissa correta, centro da filosofia do futuro, afirma que a alma da vida universal está presente em todas as coisas, e o homem é parte dela. Cabe a ele, agora, ser consciente disso. Assim a preservação ambiental terá êxito. Nas palavras do chefe Seattle:

“Os rios são nossos irmãos, eles saciam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar às suas crianças que os rios são nossos irmãos, e seus também, e vocês devem, daqui em diante, dar aos rios a bondade que dariam a qualquer irmão.”

Em uma análise comparativa, poucos deixariam de afirmar que nossa civilização tecnológica é mais avançada que as dos indígenas. Mas o que estamos fazendo com nossas crianças? Abandonando-as?  Matando-as? Prostituindo-as? O que são os assaltantes das grandes cidades além de crianças abandonadas que cresceram aprendendo violência?

Considerando o que estamos fazendo com nossos rios e florestas e também o grau de violência, corrupção e poluição que há em nossas cidades, em que coisas somos de fato melhores, e em que aspectos somos mais bárbaros, mais violentos e atrasados que os indígenas das Américas tradicionais?

“Não há um lugar calmo nas cidades do homem branco”, afirma a carta dos duwamish: “Nenhum lugar para escutar o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreenda. O ruído parece apenas insultar os ouvidos. E o que resta da vida, se o homem não pode escutar o choro solitário de um pássaro ou o coaxar dos sapos em volta de uma lagoa à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio aroma do vento, limpo por uma chuva do meio-dia, ou perfumado pelos pinheiros.”

Recuperar a capacidade de conviver com o mundo natural é avançar em direção àquele futuro em que as cidades trarão para si o melhor do campo, e o campo terá em si o melhor das cidades. Então desaparecerão as doenças físicas e emocionais causadas pela tensão nervosa das grandes cidades. Desaparecerão fenômenos como a síndrome do pânico, a insegurança das ruas modernas ou a violência contra os agricultores sem terra. E ainda respiraremos melhor, como os indígenas faziam. Também neste aspecto, temos a aprender com eles:

“O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro. O animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. O homem branco parece não sentir o ar que respira. Como um animal que agoniza há vários dias, ele é incapaz de sentir o mau cheiro. (…) Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas crianças. Tudo o que ocorrer com a terra, ocorrerá com os filhos da terra. Se os homens desprezam o solo, estão desprezando a si mesmos. A terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra.” [1]

Um testemunho menos conhecido, mas não menos belo, foi deixado a nós pelo chefe Urso-em-pé, dos Lakota. Ele disse, lembrando de tempos anteriores:

“Os velhos Lakota amavam o solo e sentavam-se ou reclinavam-se no chão com o sentimento de estarem próximos de um poder maternal. Era bom para a pele tocar a terra, e os velhos gostavam de se descalçar e andar com os pés nus sobre a terra sagrada. As tendas eram erguidas sobre a terra, e os altares feitos de terra. O solo era tranquilizante, revigorador, purificador e medicinal. Por isso é que os velhos índios ainda se sentam diretamente na terra, fonte de suas forças vitais. Para eles, sentar-se ou deitar-se no chão permite pensar com mais profundidade e sentir com mais clareza; podem penetrar nos mistérios da vida e descobrir seu parentesco com outras formas de vida ao redor. (…) Os velhos Lakota eram sábios. Sabiam que o coração do homem distante da natureza se torna duro; sabiam que a falta de respeito pelas coisas vivas leva imediatamente à falta de respeito pelos humanos.” [2]

Urso-em-pé mencionou aqui uma causa central da violência e degeneração da vida emocional das grandes cidades. Dominadas hoje por meios eletrônicos de “comunicação” cuja influência parece crescer lado a lado com a falta de comunicação real entre seres humanos, as cidades degeneram pelo seu distanciamento da natureza e dos seus ritmos vitais básicos. Como um animal em cativeiro que perde a alegria de viver, o ser humano distante da natureza é preso por suas preocupações pessoais, e dificilmente encontra paz, dentro ou fora de si. O resultado é a violência: primeiro em pensamento e sentimento, e depois na realidade externa. 

Por outro lado, temos alguns erros em comum com as sociedades indígenas e um deles é a superstição. A maior parte da população brasileira atual, herdeira da cultura europeia, ainda é guiada por fortes crenças ilusórias. Algumas das nossas superstições são materialistas (como pensar que o dinheiro traz felicidade), e outras são religiosas (como a de pensar que, para ser religioso, basta adorar e pedir favores a um Deus em forma humana). Até mesmo nossos modernos pajés, os cientistas e intelectuais, participam em grande parte das superstições coletivas da nossa civilização.

Os indígenas também tinham uma visão relativamente estreita do mundo. Vemos com facilidade os erros do pensamento indígena tradicional, porque é sempre fácil enxergar os defeitos alheios e nossas limitações são outras. Mas apesar das cegueiras culturais, dos tabus e nacionalismos tribais, havia em todas as sociedades indígenas – como há hoje na nossa – uma tradição de sabedoria transcendental. Ela permanecia à disposição dos que estavam prontos e eram capazes de erguer os olhos para ela. Quando o aprendiz está pronto, a sabedoria aparece – em qualquer tempo e lugar.

Certo dia o indigenista brasileiro Orlando Villas Bôas ficou surpreso ao conversar com um pajé do rio Xingu, o mais versado, ali, nos conhecimentos que vão além do saber comum. Ele conta o fato em seu livro A Arte dos Pajés [3]. Um pajé de meia-idade, Arru, chegou do mato cansado de caminhar e sentou-se ao lado de Orlando.

“Lá é o céu”, diz Arru, apontando para o alto.

“Sei”, responde Orlando.

“Lá é a aldeia dos que morrem.”

“Sei”, diz Orlando, conhecedor da cultura indígena.

Depois de um momento em silêncio, olhando bem para o alto, Arru acrescenta:

“Lá no céu do céu… ela está lá.”

Orlando pensa que quem está lá no céu do céu deve ser um deus antropomórfico.

“Quem está lá? Um índio velho que sabe tudo?”

A resposta de Arru é enfática:

“Não, apenas uma sabedoria.”

O pajé do Xingu surpreendeu Orlando mostrando que acreditava na existência de uma lei ou sabedoria universal, e que estava livre da superstição de um deus em forma humana, de quem se pode obter favores pessoais fazendo-lhe homenagens como a um rei todo-poderoso.

O diálogo entre Villas Bôas e Arru tem outros aspectos interessantes. A “aldeia dos que morrem”, que existe no céu dos índios xinguanos, é um conceito equivalente, de certo modo, ao kama loka da tradição esotérica. Para o kama loka vão os níveis intermediários da consciência de um ser humano fisicamente morto. Ali, os níveis médios de consciência passam por uma purificação que dará lugar ao devachan ou bem-aventurança, um longo período de descanso antes de um novo renascimento. O devachan equivale à “terra sem males” dos tupis brasileiros,  local mítico e  não-espacial. Ali ninguém morre ou adoece, a lavoura se trabalha sozinha e a colheita ocorre sem que seja necessário fazer esforço.

Do ponto de vista esotérico, não conheço referências muito complexas ou exatas ao processo pós-morte na tradição indígena das Américas. Porém, na sua simplicidade, os povos indígenas reconhecem a existência de um mundo sutil ou astral em que são registrados os nossos atos e no qual vivem seres invisíveis, ao lado das forças arquetípicas da natureza e dos seres que se foram do mundo físico.

“Há na cultura indígena uma total dependência da criatura com o mundo sobrenatural”, escreveu Villas Bôas. Se trocarmos a palavra “sobrenatural” por “astral”, a frase fica correta do ponto de vista esotérico e se aplica não só aos indígenas, mas a todos os povos e seres do mundo em todos os tempos. O mundo físico inteiro é reflexo do mundo astral e, por isso, depende dele. Todas as relações de causa e efeito operam no mundo astral, que é perfeitamente natural, porém invisível ao olhar físico, e que, em seus níveis superiores, leva à vida especificamente imortal e espiritual em que se localiza o devachan e se alcança o nirvana.

As culturas indígenas populares tinham acesso a uma versão simplificada da sabedoria espiritual dos descendentes de Atlântida. Depois da destruição daquele continente, o conhecimento iniciático e esotérico foi inteiramente reorganizado. Então, da Índia e do Egito antigos surgiu uma nova série de civilizações que dura até hoje. Esotericamente, considera-se que os indígenas americanos são descendentes da tradição espiritual Atlântida, que corresponde à quarta raça-raiz, segundo Helena Blavatsky. A nossa quinta raça-raiz, mais racional, perdeu a antiga intuição humana. Mas já começa a recuperá-la em um nível superior, combinando o método científico experimental com a antiga capacidade de comunhão com a natureza e o respeito por todos os seres, habilidades que as sabedorias indígenas, sobreviventes da tradição atlântida, ainda mantêm intactas.

As tradições do extremo oriente são outras tantas ramificações da quarta raça-raiz e têm ensinado lições de grande valor ao nosso confuso ocidente através da medicina tradicional, da meditação zen, das artes marciais de fundo espiritual, do taoismo, e do feng-shui, para citar alguns poucos exemplos. Helena Blavatsky afirma em seu livro clássico “A Doutrina Secreta” que desde o século 19 surgem, aqui e ali, os primeiros cidadãos da sexta raça-raiz. Eles não podem ser identificados por qualquer característica física, mas sim por uma percepção intuitiva dos princípios da sabedoria e da fraternidade universal que guiarão a humanidade, de modo consciente, no futuro. Para a ciência esotérica, a fraternidade universal da humanidade é uma lei, e a diversidade racial é indispensável à evolução.

Neste momento, cabe repensar o processo civilizatório.  É preciso parar a destruição dos ambientes naturais e respeitar os povos que preservam o conhecimento de como viver em intimidade com a natureza. É prioritário proteger as crianças, símbolos do  futuro, e aprender aquela sabedoria universal que permeia a história de todos os povos, independentemente das características físicas, hábitos culturais ou níveis de desenvolvimento tecnológico dos seus cidadãos.

Devemos ter a humildade necessária para reconhecer que os povos mais desenvolvidos tecnologicamente nem sempre foram os mais sábios, e que hoje somos um notável exemplo disso. Devemos ser capazes de lembrar que, segundo o manifesto atribuído ao chefe Seattle, “os cumes rochosos, os sulcos úmidos do campo, o calor do corpo do potro e o homem, todos pertencem à mesma família”.



Carlos Cardoso Aveline



Fonte do Texto e da Gravura: FilosofiaEsotérica
https://www.filosofiaesoterica.com/a-sabedoria-ecologica-dos-indigenas/




NOTAS:

[1] “Preservação do Meio Ambiente – Manifesto do chefe Seattle ao Presidente dos EUA”, Editora Interação/Fundação SOS Mata Atlântica, SP, 1989.

[2] “Pés Nus Sobre a Terra Sagrada”, Compilador: T.C. McLuhan, Ed. L&PM, Porto Alegre, 1994, ver pp. 13-14.

[3] “A Arte dos Pajés”, de Orlando Villas Bôas, Editora Globo, 2000, ver pp. 89-90.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A IMPORTÂNCIA DE FICAR SOZINHO


Thomas Merton, no ensaio The Philosophy of Solitude, diz que todos nós somos solitários. Mas, paradoxalmente, quase todos temos medo de estar sós. Nascemos sós e morremos sós. Ninguém vai conosco na última jornada. Passamos boa parte de nossa vida tomando decisões e fazendo escolhas sozinhos, pelo que somente nós devemos aceitar a responsabilidade.

Contudo, nosso maior medo e insegurança é estarmos sós. Em retiros para jovens, frequentemente pergunto do que eles mais têm medo. Quase sempre a resposta é "tenho medo de ficar só, sem ninguém para amar", ou "tenho medo da solidão".

Uma vez que a maioria de nós tem medo de estar sozinho, ou pelo menos de se sentir sozinho, fazemos tudo que podemos para esquecer nossa solidão essencial. Usamos cada artifício ensinado nos livros para evitar estar só. Ficamos ocupados, fazemos horas extras, planejamos festas. Ficamos desolados se não tivermos algum lugar para ir no final de semana. O rádio ou a TV está sempre ligado. Passamos horas ao telefone. Temos sempre que ter alguém com quem conversar.

Blaise Pascal dá a isso o nome de divertissement - diversão ou distração sistemática, fuga da realidade, fuga da solidão. O propósito é simplesmente anestesiar o indivíduo, afundá-lo na apatia do grupo, para que não se sinta só. A sociedade moderna misericordiosamente provê ocupações que permitem ao homem evitar sua própria companhia vinte e quatro horas por dia. No mundo moderno, raramente estamos verdadeiramente quietos e sós.

Mas Merton diz: "Sem solidão de algum tipo, não há nem pode haver maturidade. A não ser que a pessoa penetre no vazio e na solidão, ela não consegue doar-se em amor, porque não possui o eu profundo que é o único dom merecedor de amor."

Os jovens sofrem particularmente desse medo. Somente quando envelhecemos e amadurecemos descobrimos que temos que estar sós de vez em quando, para conhecer a nós mesmos. O verdadeiro eu, o eu profundo, não pode ser descoberto em meio a outras pessoas. A cada oportunidade temos que ir a algum lugar quieto e pensar um pouco. Sidharta encontrou-se quando se sentou a sós e ouviu o rio.

Os Padres do Deserto compreenderam a necessidade da solidão quando foram para o meio do deserto, longe dos divertimentos do mundo. Os grandes homens do velho testamento encontraram Deus e a si mesmos na solidão: Jacó no deserto, Moisés no topo da montanha. O povo judeu encontrou sua identidade como nação somente após quarenta anos no deserto. No Novo Testamento, João convocou as pessoas para a conversão no deserto, do outro lado do rio jordão, distante da cidade. Os Evangelhos contam que Cristo disse muitas veze aos apóstolos para se afastarem por algum tempo para um local solitário.

Temos medo de ficar sós porque temos medo do silêncio. "Os reis, os ditadores e os poderosos realizam seu trabalho com grande estardalhaço, discursos, alto-falantes e rufar de tambores", diz Merton. Mas Deus trabalha em silêncio. O espírito do mundo, que é frequentemente egoísta, invejoso, orgulhoso, faz com que os homens se expressem ruidosamente, porque têm medo do seu próprio vazio. Mas o espírito de Deus dá a paz, ensina a não ter medo do silêncio, e a encontrar a si mesmo na quietude.

Elias, sobre o monte Horeb, não encontrou Deus no poderoso vento que rasgou a montanha e despedaçou as rochas. Ele não encontrou Deus no terremoto nem no incêndio. Ele encontrou Deus - e a si próprio - na brisa suave, como Sidharta às margens do rio. Não podemos encontrar Deus nem no barulho nem na multidão. Não podemos encontrar Deus nos negócios nem em atividades febris. Podemos encontrar Deus e a nós mesmos somente na solidão.

Foucauld escreveu muito a respeito da necessidade da solidão: "É na solidão que nos esvaziamos, jogamos fora tudo que não é Deus, e colocamos em ordem a pequenina casa de nossa alma para abrir espaço para Deus."


Joseph A. Galdon



Joseph A. Galdon – é autor do livro “The Mustard Seed: Reflections for Daily Living, publicado em 1991, nas Filipinas



Fonte do Texto e da Gravura: Revista Sophia – Editora Teosófica
Via Loja Dharma da Sociedade Teosófica (Porto Alegre - RS)
https://lojateosoficadharma.blogspot.com

domingo, 26 de maio de 2019

A FORÇA DO PENSAMENTO HABITUAL


O fato de que o pensamento reproduz a si mesmo sugere a existência de centros cristalizados de pensamento, mas vemos que eles são mais do que “cristalizados”, se levarmos em conta que tudo é consciente.

Cada pensamento leva alguma forma de vida à ação; o tipo de vida que é despertada e guiada corresponde à natureza do pensamento, e a duração da ação-pensamento depende da energia colocada nela. Penso que o abrandamento da energia direta deixa uma tendência latente nas vidas conscientes, que as faz responder a uma energia similar ou análoga.

Algumas destas impressões podem ser tão profundas que deixem focos correspondentes no cérebro; assim, a lembrança ocorre mais facilmente. Outras impressões, não tão profundas, são apagadas pelas impressões que ocorrem depois delas, e não deixam focos no cérebro, mas permanecem em uma ou outra camada do cérebro, e são lembradas quando há o estímulo adequado, que pode vir de um pensamento similar ou de impressões dos órgãos ou células do corpo.

A Natureza tende a repetir toda ação; o pensamento é o plano da ação – o criador, o preservador e o destruidor dos modos de ação da Natureza. O plano Manásico [1] é o plano do númeno [2]; é o plano da essência do fenômeno; é o aspecto ativo de Atma-Buddhi. [3]


Robert Crosbie



NOTAS:

[1] “plano Manásico” – o plano mental. “Manas”, em sânscrito, é “Mente”. (N.T.)

[2] Númeno: o objetivo sutil, que se conhece pela inteligência e pela intuição, ao contrário do “fenômeno”, que se conhece a um nível experimental. “Númeno” pode ser definido como “o espírito” que habita os objetos. (Webster’s Encyclopedic Unabridged Dictionary). (N.T.)

[3] “Atma-Buddhi”. Atma e Buddhi são os dos princípios mais elevados da consciência humana individual, que inclui sete princípios. Buddhi, o sexto princípio, é a alma espiritual. Atma, o sétimo, é o princípio supremo, que une o indivíduo à essência do universo. (N.T.)



Fonte: "O Teosofista", junho de 2008, pp. 12-13
https://www.filosofiaesoterica.com
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal

sábado, 25 de maio de 2019

SUPOSTA "DISTÂNCIA" ENTRE O EMANADOR E O RECEPTOR DE LUZ


Por que entramos no ciclo das perturbações? Onde se encontra a ação da Luz do Mundo Infinito? Quando e como a bênção pode chegar ao ser humano? Por que algumas pessoas recebem a bênção e outras não? Existe algum mecanismo que permite que a Luz do Mundo Infinito chegue a nós com mais eficiência?

Para os cabalistas, a verdadeira Luz do Mundo Infinito é imóvel e de natureza eterna. Não se desloca no espaço, portanto ela está neste exato momento atuando imensamente sobre nossas vidas. A Luz não se desloca no espaço e no tempo em função do fato de que não há espaço e não há tempo em que ela não se encontre. Sendo assim, a Luz do Mundo Infinito sempre é. A Luz é um elemento constante e onipresente do Todo Unificado. O nosso sentimento de falta se deve ao nosso esquecimento da natureza onipresente da Luz. Para a Cabalá, este esquecimento é a causa de todo o desequilíbrio e de toda a dor na humanidade.

O que estabelece uma suposta “distância” entre o Emanador e o Receptor desta Luz é o seu sistema de comunicação muitas vezes falho. Se fortalecermos o nosso sistema de comunicação com o Mundo Infinito, evitaremos o esquecimento da unicidade. Segundo nos ensinam os sábios da Cabalá, é esse sistema de comunicação que promove a adesão necessária para que o cabalista perceba constantemente a manifestação desta Presença Divina. Quando perdemos a nossa adesão com o mundo entramos no ciclo robótico das repetições sistemáticas de nossos erros. Esse é o preço do nosso esquecimento da onipresença da Luz – entrarmos no “ciclo das perturbações” de Olam Tohú.

Sendo assim, para o cabalista, a Luz do Mundo Infinito não “viaja” do Mundo Infinito para o mundo físico. E esse é um dos tantos paradigmas que a Cabalá abala. Outros exemplos poderiam ser descritos como: os semelhantes se atraem; o espaço e o tempo são algo ilusório; você é a causa e o efeito de si mesmo, entre outros tantos. O tempo, como nós o percebemos, só existe na perspectiva das sete sefirot inferiores. Mas não possui nenhuma utilidade nas Três Superiores, ligadas com o Mundo Infinito. É por isso que nas sete sefirot inferiores só vemos o mundo da fragmentação, o ilusório mundo do tempo, do espaço e do movimento, como sendo a totalidade da existência. Aqui reside a causa de muitas das dores deste mundo. Quando nos desligamos da Luz, passamos a nos ligar a uma existência negativa da Luz (o não-Él) e por associação nos tornamos fracos e impotentes diante do caos.

É por causa do esquecimento do passado (principalmente dos ciclos de vidas passadas) que mergulhamos no caos de nossos equívocos cotidianos. Para os cabalistas, o presente, o passado e o futuro estão todos presentes no mesmo instante-espacial. O mundo real está, na verdade, unificado. Há um aspecto de unificação em todas as manifestações do universo. Esta condição é plenamente indicada no aspecto circular de todas as coisas, dos planetas ao átomo, tudo está sujeito à regência da esfera e sua estrutura unificadora. O grande paradoxo é que o mundo verdadeiro deve permanecer oculto, pois o ato de descobri-lo é em si o desenvolvimento do mérito espiritual. Nos mantermos ignorantes diante da Luz nos faz acentuar a reatividade (cujo ponto de concentração energética é a narina) e nos lança às dimensões inferiores do desejo de receber para si mesmo.

Uma consciência fragmentada faz com que o mundo a nossa volta se torne impermanente e incapaz de gerar “frutos”. A Cabalá nos ensina que o AMEN que falamos nas orações possui um poder espiritual de adesão com o Mundo Infinito. Quando falamos “AMEN” nas orações, estando certos de seu poder de adesão, resgatamos as centelhas de nossa consciência que tenham se ligado aos mundos de baixo.

Em função de nossa perspectiva limitada e finita, o tempo parece ser um tirano implacável. Estamos tão acostumados a medir nossa percepção de acordo com o relógio e a aparente sequência de nascimento, vida e morte, que aceitamos a tirania do Satan (Energia Inteligente do Ego) e sua manipulação temporal, e nos submetemos a Olam Tohú como um resultado inevitável. A Cabalá nos direciona a reconhecer que o Infinito se encontra presente no aparente finito e que ao nos conectarmos com nosso próprio aspecto infinito, podemos abrir as portas do Ein Sof (Mundo Infinito). A Cabalá nos ensina a nos retirar do ciclo de negatividade, de luta, de fracasso, e da morte, nos ensinando que estes ciclos são empobrecedores e que devemos nos conectar com o Mundo Infinito. Lá onde o tempo, o espaço e o movimento estão entrelaçados, onde todos os seres e todas as coisas se encontram interconectados, onde o “aqui” é “aí” e onde o “futuro” é “agora”.

Assim, devemos nos manter sempre em estado de alerta e procurar sermos sempre cautelosos com a ilusão que parecem ser as chamadas “fases negativas” em nossas vidas. Trata-se de uma grande armadilha do Satan (Energia Inteligente do Ego) . Uma análise do momento nos faz esquecer o passado e também o futuro, pois apaga de nosso registro de consciência a nossa percepção da eternidade. Esquecendo, nos tornamos prisioneiros, mas, como em qualquer prisão, é possível escapar. Esta é uma prisão construída em sua mente e pode ser destruída por ela também. Para ver melhor o que está do outro lado dos muros altos desta prisão, é necessário fecharmos os olhos e abrirmos o coração...



Rav Mario Meir



Fonte: Academia de Cabala
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal

sexta-feira, 24 de maio de 2019

A AUTORRESPONSABILIDADE E SEU PROGRESSO ESPIRITUAL


Você não supera o sofrimento se não for honesto, a cura e transformação só são possíveis quando você desenvolve a vontade sincera de se comprometer com a verdade. E sem auto-responsabilidade não pode haver progresso espiritual, você culpa o outro pela sua incapacidade de ser gentil, pela sua incapacidade de amar, pela sua infelicidade, pela sua perturbação, ou seja, pela sua incapacidade de viver pacificamente. O que é que te impede de ser verdadeiro consigo mesmo e com o outro?

Tenho dito que alguns valores humanos precisam ser acordados para que você seja bem-sucedido em sua missão maior que é iluminar o amor, deixando para trás os jogos do sofrimento. Estes valores são como os ingredientes alquímicos que possibilitam que o amor desperte, ou seja, que você amplie a sua consciência, libertando-se de crenças e percepções equivocadas que te impedem de ver a realidade de forma objetiva.

São essas crenças as bases do julgamento, da separação e do desejo, responsáveis por alimentar a fogueira do pensamento compulsivo, que faz você viajar no túnel do tempo; ficar preso no tempo psicológico, nos labirintos da mente. Assim, dissolvê-las é o único caminho para a expansão da percepção que por sua vez, permite o amor fluir. Perceber a realidade de forma objetiva é sinônimo de liberdade, de espontaneidade. Você só pode realmente ter a liberdade de ser você mesmo, bem como experienciar o prazer positivamente orientado, quando puder se libertar das crenças que te habitam. Dessa forma, se faz necessário ter inclinação para ir além do sofrimento e para desenvolver alguns dos valores humanos nos quais tenho colocado minha energia.

O primeiro deles é a honestidade, porque você não supera o sofrimento se não for honesto; não poderá expandir nem uma vírgula de consciência se não for honesto, em primeiro lugar, consigo mesmo, para assim poder também ser com a vida.  Há que se ter a disposição sincera de se ver diante do espelho.

Eu tenho dito e repetido que a honestidade é a forma de amor mais urgente e necessária neste momento. Quando você pode ser honesto consigo mesmo, pode ser honesto com o outro, pode realmente estar afinado com os códigos divinos da verdade.

Eu estou sempre lhe convidando a tomar consciência daquilo que te impede de ser honesto. O que é que te impede de ser verdadeiro consigo mesmo e com o outro? Muitas vezes, você não é verdadeiro porque acredita que vai machucar o outro, e assim, você se esconde atrás dessa crença e não encara o medo que te habita – o medo que esconde sentimentos, feridas que precisam ser tratadas e curadas.

Honestidade significa um compromisso com a verdade. Só quando você desenvolve esse valor é que pode responder a grande pergunta: “Quem sou eu? Quem habita esse corpo?” A inconsciência a respeito de sua identidade pode gerar muitos acidentes. Identificado com essas crenças, você pode ficar eternamente caindo no mesmo buraco. A cura e transformação só são possíveis quando você desenvolve a vontade sincera de se comprometer com a verdade.

Outro valor que precisamos desenvolver para expandir a consciência é a autorresponsabilidade. Há que se ir além do egoísmo e dos jogos de acusações; há que se ter disposição para renunciar a vítima que te habita. Sem essa disposição, você inevitavelmente continuará circulando no mesmo lugar. A autorresponsabilidade é a pedra fundamental em que se edifica a consciência. Sem autorresponsabilidade não pode haver progresso espiritual.

Sem autorresponsabilidade não pode haver evolução da consciência. Você vai ficar eternamente andando em círculos, porque o jogo de acusações é um círculo vicioso – você culpa o outro pela sua incapacidade de ser gentil, pela sua incapacidade de amar. Acusa o outro pela sua infelicidade, pela sua perturbação, ou seja, pela sua incapacidade de viver pacificamente.

Portanto, a expansão da consciência só é possível se houver honestidade e autorresponsabilidade. Por mais evidente que seja o erro do outro em qualquer circunstância, se você ficou perturbado, deve olhar o grão de defeito que está em você. Essa é a base. Essa é a fase zero do processo. Sem essa base não adianta fazer malabarismos com a vida porque nenhuma austeridade vai surtir efeito.

Eu já procurei outro caminho porque sei que este é difícil. Poderia haver um caminho mais fácil, ter uma pílula que dissolvesse condicionamentos e crenças, mas até hoje, ninguém inventou isso. Até hoje você dissolve os condicionamentos através do caminho da autorresponsabilidade.

Assim, quando as coisas ficam difíceis em qualquer situação ou relação que você mantém, se faz necessário encontrar a autorresponsabilidade para olhar objetivamente o que fez a energia cair. Se puder fazer isso junto com a outra pessoa envolvida, melhor ainda, mas não se engane achando que sua liberdade depende da percepção do outro assumindo a parte que lhe cabe no conflito.

Vá atrás da sua parte porque te garanto que, quando você assumir sua responsabilidade no episódio, naturalmente a energia começará a subir de novo. É instantâneo. Coloque em prática que você vai compreender o que eu estou falando.



Sri Prem Baba


Fonte: www.sriprembaba.org
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

EM CONFIANÇA


Tudo o que possuímos além da nossa necessidade, na verdade, não nos pertence, mas nos é dado em confiança pelos outros.

Uma das realidades mais difíceis de encarar para aqueles com uma visão espiritual do mundo e com um conhecimento do Criador é: "Por que existem alguns que possuem muito mais do que outros?"

A realidade é que se todos os recursos do mundo fossem distribuídos igualmente entre os habitantes da Terra, muitos dos problemas que afligem nosso mundo não existiriam. Por que então não é assim? Por que o Criador não “distribui a riqueza” equitativamente?

Esta é uma questão muito complexa, com muitas possibilidades de resposta. Mas há um ensinamento que deve influenciar como tratamos aquilo que temos em excesso, além das nossas necessidades. Os cabalistas ensinam que cada um de nós merece receber aquilo de que necessita. Infelizmente, às vezes, por diferentes motivos – talvez uma ação negativa ou algo semelhante – bloqueamos o fluxo do Criador em nossa direção. Mesmo assim, o sustento vem. Ele é concedido a uma outra pessoa, que na realidade não o merece, mas supostamente o obtém em confiança. Ela deve guardá-lo e, eventualmente, devolvê-lo ao seu verdadeiro dono. Este é um ensinamento poderoso, com muitas ramificações e abordaremos uma delas.

Quando vemos ou sabemos sobre uma outra pessoa que esteja necessitada, devemos compartilhar com ela, não com a consciência de que lhe estamos dando aquilo que é nosso. Antes, devemos compreender que provavelmente estamos devolvendo este excesso a seu verdadeiro dono. À medida que continuamos a compartilhar com os outros desta forma, construímos para nós maiores canais para a abundância do Criador, que assim nos abençoa com um potencial contínuo de compartilhar infinitamente.



Rav Michael Berg




Fonte: Centro de Cabala
https://es.kabbalah.com/
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal

terça-feira, 7 de agosto de 2018

O CAMINHO INDIVIDUAL E COLETIVO RUMO A MATURAÇÃO ESPIRITUAL


“Por quanto tempo você tem andado distraído pelo labirinto do autodesenvolvimento sem saber onde realmente se encontra?”

Assim caminhamos como humanidade: alguns na animalidade, estado mais primitivo da alma, mais identificados com os desejos e instintos, outros mais humanizados (mas ainda muito identificados com o ego) e outros mais espiritualizados (já mais identificados com o espírito).

Este é um caminho individual rumo a maturação espiritual, a qual todos estamos sujeitos, onde o tempo do processo se reflete unicamente no indivíduo e não está sujeito a nenhuma imposição externa, apenas pode ser influenciada, pois é um caminho interno de desenvolvimento.

Como uma infância, onde não podemos pular esta etapa, não podemos exigir ou impor uma atuação madura de um adulto. Cabe aos mais espiritualizados, se tornarem fontes de inspiração e atuar de forma a contribuir com este processo de desenvolvimento.

Porque o mesmo acontece com o processo coletivo, que seria a soma das consciências individuais que formam a humanidade… Podemos perceber em que etapa de maturidade está a humanidade olhando para a consciência das pessoas como um todo.

Quantas pessoas ainda estão totalmente dominadas pelos aspectos mais animalescos da alma? Identificados completamente com a matéria? Com os instintos e prazeres sensoriais? Com a mente coletiva?

Quantas pessoas estão na busca por aprovação e reconhecimento social, preocupados excessivamente com sua autoimagem e na busca incansável pelo relacionamento perfeito. Que possuem uma preocupação excessiva com a estética pessoal, como a febre de selfs e busca por likes nas redes sociais – quanto mais curtidas, melhor e mais importante eu me sinto. Que suas aspirações e seu foco são exclusivamente em coisas que satisfaçam o seu ego e seus desejos pessoais, principalmente conquistas de ordem material?

Quantas pessoas estão preocupadas realmente em se tornar melhores seres humanos, que buscam o autodesenvolvimento e têm uma preocupação genuína com os outros seres humanos e com o planeta, que buscam o equilíbrio entre a autorrealização e a atuação em prol do desenvolvimento coletivo?

 Onde você se encontra nesse labirinto?



Leonardo Maia




Fonte: Biblioteca da Antroposofia
http://www.antroposofy.com.br/forum/o-caminho-individual-e-coletivo-rumo-a-maturacao-espiritual/
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

DESAPEGO


Nas nossas ações deveríamos seguir o impulso verdadeiro e espontâneo que nos vem do alto e não obedecer aos motivos de ordem contingente, egoística restrita.

Devemos amar a vida, respeitá-la gozar as suas belezas e alegrias, permanecendo, porém, sempre desapegados internamente, sabendo que tudo é transitório, ilusório; esta vida é o reflexo de outra mais verdadeira e real.

Não devemos deixar de nos dedicar às criaturas, às formas, mas devemos dedicar tendo a consciência de que são invólucros da Vida Una, da Vida Divina e não por apego e pavor da morte.

Quanto à felicidade, mesmo sabendo que as alegrias da Terra são efêmeras e transitórias, devemos saber gozá-las como dons temporâneos, sem sermos tétricos, tristes e exageradamente sérios.

Devemos saber gozar um belo dia de sol, um jardim florido, um afeto sincero, a graça de uma criança, uma obra de arte, mas, com desapego, sabendo, em nosso coração, que a verdadeira alegria é outra, que a verdadeira felicidade e qualquer coisa diferente e inexprimível e que um dia nos será possível conhecê-la e prová-la.

Devemos ser alegres e serenos, permanecendo, entretanto, livres e desapegados interiormente.

Enquanto estivermos presos pelo turbilhão dos desejos, estaremos atados a uma infinidade de apegos, estaremos preocupados, agitados, irrequietos, infelizes, sem perceber o chamado da nossa Alma e sem podermos ser sensíveis ao seu contínuo e constante apelo.



Dra. Angela Maria La Sala Batà



Fonte: do livro "Do Eu Inferior ao Eu Superior"
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal

quarta-feira, 14 de junho de 2017

MOZART E A FLAUTA MÁGICA


A Flauta Mágica, obra de Mozart, tem dois aspectos fascinantes: a história, quase infantil, que raramente chega às crianças, e a música que há 200 anos fascina os adultos.

Se a história de Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas, desafia claramente o leitor pela sua riqueza simbólica, dificilmente cifrada pelo adulto, a Flauta Mágica tem sido considerada, para os não iniciados, como uma história simplória, com versos medíocres, com uma moral primária e corriqueira.

O libreto de A Flauta Mágica parece ter sido escrito em 1731, relacionado com os Mistérios Egípcios. O próprio Mozart, como iniciado maçom, o conhecia certamente.

Eis a história: "um príncipe (Tamino) e um caçador de pássaros (Papagueno), atendendo ao apelo de uma rainha (a Rainha da Noite), tentam resgatar a princesa (Pamina), sequestrada num castelo.

Para cumprir essa missão, Tamino e Papagueno recebem da Rainha da Noite, por intermédio das suas damas, um carrilhão e uma flauta, ambos mágicos, além de três gênios que serviriam de guias. São representados, na ópera, por três crianças.

Por caminhos diferentes, Tamino e Papagueno chegam ao palácio de Sarastro. Pamina está lá, realmente prisioneira, atormentada por um escravo mouro de Sarastro (Monostatos), que já tentara violá-la na ausência do amo.

Chega Papagueno e Monostatos foge. Entretanto, Tamino discute com um sacerdote do templo de Sarastro: este lhe diz que Sarastro não é mau, mas nobre e justo, e que um dia, ele, Tamino, compreenderá tudo. Isso abala completamente os propósitos iniciais de Tamino.

Os três acabam presos quando Sarastro chega. Manda chicotear o escravo, explica a Pamina que sua mãe, a Rainha da Noite, é uma mulher perigosa e determina que Tamino e Papagueno sejam submetidos às duras provas no templo, como, por exemplo, a prova do silêncio.

Se passarem por tais provas, entrarão para a irmandade. Tamino receberá ainda a mão de Pamina e Papagueno o que ele mais deseja na vida: uma mulher para se casar. Entretanto, Pamina, adormecida, desperta a luxúria de Monostatos. Mas chega então a Rainha da Noite e mostra que Sarastro tinha razão: ela aterroriza a filha e lhe dá, cheia de ódio, um punhal, para que assassine a Sarastro. Depois desaparece.

Monostatos, que viu tudo, chantageia Pamina. Contudo, chega Sarastro, que expulsa o mouro e tranquiliza a rapariga, dizendo que naquele templo não há lugar para a vingança. Enquanto isso, Tamino vai passando nas provas, mas Papagueno não consegue sequer ficar calado. Acaba por ser expulso do templo. Pamina vai encontrar-se com o príncipe e não compreende porque ele não lhe dá resposta.

Julga que Tamino não mais a ama, fica desesperada, pensa em suicidar-se com o punhal – mas é impedida pelos três gênios. Volta ao templo e tem permissão para acompanhar Tamino nas suas últimas provas: a do fogo e a da água – o que os dois conseguem superar com sucesso, protegidos pelo som da flauta mágica.

Vagueando pelos bosques, Papagueno, inconsolado e cômico, pensa também no suicídio, mas também ele é salvo pelos três gênios. Sugerem-lhe que ele, Papagueno, toque o seu carrilhão mágico: ao som do instrumento aparece-lhe o que mais desejava: uma companheira.


Na escuridão da noite chegam a Rainha da Noite e o seu séquito, guiados agora por Monostatos, que se aliou contra Sarastro, ante a promessa da mão de Pamina. Vão destruir o templo e matar Sarastro e os sacerdotes. Mas estes irrompem com um poder descomunal e aniquilam as pérfidas criaturas. Pamina e Tamino casam-se com grande pompa e com muitas congratulações pela sua coragem, fidelidade e virtude".

O libreto fascinou tanto o rosa-cruz Goethe que ele se propôs a fazer com ele o mesmo que fizera com a sua obra-prima Fausto: escrever uma segunda parte. Em resumo, a história é essa.

Comecemos o estudo pelo simbolismo do número das personagens: são nove. Dentro da simbologia gnóstica, o número é chave para a compreensão de múltiplos mistérios, tanto no microcosmos quanto no macro.

O príncipe Tamino é verdadeiramente o herói da história. Ele representa a todos os Iniciados (homens e mulheres), que realizam em carne própria a Grande Obra, a Magnus Opus. Logo nos primeiros acordes surge Tamino numa situação incrível: a fugir de um dragão (uma serpente, no texto original).

Essa Serpente-Dragão representa as forças caóticas da natureza, as forças do Ego. A representação de uma personagem de Mozart é sempre feita de modo que qualquer pessoa a compreenda de imediato.

As primeiras palavras de Tamino, que grita por socorro, é um autêntico aviso do autor de que vamos entrar num território, inédito aos olhos do não-iniciado. Reside aqui precisamente a falta de compreensão desta obra musical. É que ela trata de segredos iniciáticos, que não são do conhecimento vulgar.

A segunda personagem é a princesa Pamina. Tamino, o príncipe, apaixona-se ao ver o seu retrato. Muito se tem escrito sobre esta dualidade, Tamino-Pamina. Quando Tamino vê o retrato, canta uma ária lindíssima. Serviu de fundo musical ao filme O Enigma de Kaspar Hauser. Pamina representa nossa Alma Divina, a Consciência, adormecida e presa pelo Ego e pela Mente.

A 3ª personagem é Papagueno. É a mais exótica, popular e sedutora. É o caçador de pássaros. É o “cão” que guia o cavaleiro, é o instinto que nos auxilia a trilhar corretamente o Caminho.

A 4ª é Monostatos, o criado mouro. (No filme, a cena entre Monostatos e Pamina foi alterada em relação ao original. Bergman substituiu as ameaças e a tentativa de Monostatos apunhalar Pamina por uma única, curta e sibilante entrada do mouro, muito no seu estilo.)

A 5ª, 6ª e 7ª personagens são as três crianças, os 3 Reis Magos, os dois Vigilantes e o Guardião da Maçonaria. Guiam Tamino, informam-no como deve escolher e as atitudes de firmeza que devem adotar, mesmo as de obediência. Quando Pamino pensa no suicídio, essas personagens fazem a ele ver que não conhece verdadeiramente a situação e a inutilidade do seu tresloucado ato.

O mesmo acontece a Papagueno, a quem explicam que nem tudo está perdido e ainda há alguma coisa por que lutar.

A 8ª e 9ª personagens são a Rainha da Noite e Sarastro.



A Explicação Esotérica

A Flauta Mágica inicia-se com três acordes majestosos, que se referem aos três passos ou graus fundamentais de todos os ensinamentos iniciáticos, e também aos 3 degraus de todos os altares místicos.

O terceiro acorde corresponde aos três toques do candidato, quando procura a porta do templo. A esses acordes segue-se, no original, uma marcha solene, preparada para instrumentos de metal, que simboliza o caminho a percorrer pelo Candidato, pelo Aprendiz.

O caminho é longo e o trabalho, cansativo. Mas o aspirante digno chega ao ponto culminante e torna-se um Iniciado. Na abertura, descrevem-se vários processos pelos quais a Pedra Bruta se transforma numa pedra trabalhada e viva. A abertura finaliza com a repetição das três pancadas ou acordes. Essa cena desenrola-se no Egito, num campo aberto, perto do Templo de Ísis. Tamino, quando entra em cena, é perseguido por um dragão, símbolo dos desejos inferiores, egóicos.

Faz uma prece e cai inconsciente. Surgem três jovens cobertas por véus. Simbolizam a purificação do corpo físico, do corpo de desejos e da mente, são os mesmos símbolos dos 3 cravos da cruz crística (os 3 graus de purificação pelo Fogo da Kundalini). A morte do dragão indica que Tamino alcançou a vitória sobre sua própria natureza inferior.

Tamino e Papagueno encontram-se. Logo depois surgem as três jovens que repreendem Tamino por reivindicar a morte do dragão, porque na verdade quem mata o Dragão não somos nós, mas uma força sagrada superior à mente. (Que Força será esta?) Dão a Tamino o retrato de Pamina, a filha da Rainha. Pamina representa a natureza espiritual do ser humano, Budhi, a Bela Adormecida ou a Consciência Espiritual, que é correntemente representada por uma figura feminina – como vemos nos textos de Salomão e de Camões.

Quando o discípulo se aperfeiçoa na busca e começa a sentir a maravilhosa beleza superior, se lhe dedica e consagra, realiza-se o que chamamos bodas místicas ou bodas de Canaã.

As três jovens informam a Tamino que foi escolhido para libertar Pamina, subjugada pela magia negra. Há um ensurdecedor barulho e surge a Rainha da Noite. Com palavras extremamente solenes relata o desaparecimento de Pamina, sua filha. Reconhece a piedade e sapiência de Tamino que considera capaz de a salvar. O cenário escurece de novo. É então que no aspirante se começa a desenvolver a clarividência.


Esta visão permite-lhe ver os mundos internos ou superiores. A pergunta que Tamino faz é a mesma de todos os aspirantes: “É verdade aquilo que vejo? Ou será apenas ilusão?”. O segundo ato começa com uma marcha solene, com música para instrumentos de sopro. Os sacerdotes, acompanhados por Sarastro, querem saber qual o objetivo da vinda de Papagueno.

Este responde-lhe que não se preocupa com a sabedoria, que apenas lhe interessa comer e beber. Tamino, por seu lado, deseja a sabedoria e, também, unir-se a Pamina. Há poucas pessoas, como Tamino, dedicadas ao serviço da Sabedoria! As três jovens experimentam Tamino, tentando-o convencer de que Sarastro lhe prepara uma traição. Tamino nega-se a ouvi-las.

É que em tempos de crise as forças unem-se para impedir o espírito de alcançar a luz e confundi-lo, separando-o da fonte de sabedoria. O segundo ato, na sua maior parte, é dedicado às provas do Aspirante. Esta cena termina com uma magnífica ária de Sarastro.

Cada instituição que se dedica ao estudo das leis divinas cria uma força dinâmica que pode ser utilizada para construir ou destruir. É da máxima importância que cada grupo aprenda a pôr em prática a seguinte regra: “viver e deixar viver”. A prudência é a melhor arma para combater qualquer tendência para a bisbilhotice, ciúmes, inveja ou ódio. Se isso for negligenciado, haverá discórdias, dissidências e, por fim, a destruição.

As jovens oferecem-lhe então uma flauta mágica, o símbolo dos poderes latentes do espírito, da divindade adormecida no homem. (Lembre-se da flauta de Krishna, com 7 orifícios, e que ele utilizava para encantar bestas, homens e deuses.) O mago negro, Monostatos, símbolo dos poderes do espírito usados incorretamente, arrasta Pamina. Atira-a para um caldeirão e ordena a três escravos que a prendam.

Os três escravos são os corpos internos inferiores (de desejos, mental e causal), chamados também de Os 3 Demônios (Judas, Pilatos e Caifás), relacionados com os prazeres inferiores, com o medo e a ignorância.


Quando o cenário muda, veem-se três templos: o da Razão, à direita; o da Natureza, à esquerda e o da Sabedoria, no meio. Os três templos representam as três forças distintas: a masculina, a feminina e a união de ambas, isto é, a força masculina, a beleza feminina e a sabedoria, que é filha das duas. Representam também as Três Montanhas, ou graus de liberação absoluta do Mestre: a Montanha da Iniciação, a da Ressurreição e a da Ascensão.

Aparece depois um sacerdote idoso e Pamino sabe que está no Templo de Sarastro, o Sacerdote do Sol, o mago branco ou o Iniciado-Condutor. Explica-lhe que vivemos cercados de estímulos aos quais se reage conforme a espiritualidade que se tem. É assim que tem de começar o trabalho de autoaperfeiçoamento.

A lei fundamental diz que a verdadeira ação esotérica só pode ter sucesso se for baseada na união com o espírito. A pedra fundamental de todas as sociedades ocultistas iniciáticas pode ser encontrada nas palavras de Sarastro: “Nestas amplas galerias não se conhece vingança”, que não são, afinal, mais do que a repetição daquelas que lemos nas obras dos grande iniciados.

A cena final começa numa quase total escuridão. A Rainha da Noite aproxima-se de Monostatos, que leva uma tocha. Ouve-se um grito de pavor e surge Sarastro e os sacerdotes, Pamina e Tamino.

Nesta ópera, Mozart descreve a senda do candidato, que procura a luz, “pobre, nu e cego” (como todos nós, míseros seres adormecidos). Demonstra os passos do Caminho, as suas Provas, nas quais se prepara o espírito para se tornar digno de entrar no Templo (Interior), naquele templo verdadeiro, que é feito sem ruído de pedra nem de martelo, em que a luz do Conhecimento (Gnose) permanece eternamente.





Fonte do Texto e das Gravuras: GNOSIS ONLINE
http://www.gnosisonline.org/misterios-da-musica/mozart-e-a-flauta-magica/

segunda-feira, 5 de junho de 2017

CORRUPÇÃO POLÍTICA E A MISSÃO DO ESPIRITISMO


O objetivo central da política é a obtenção do bem comum. O bem comum é “um conjunto de condições concretas que permite a todos os membros de uma comunidade atingir um nível de vida à altura da dignidade humana”. Esta dignidade refere-se tanto às coisas materiais quanto às espirituais. Depreende-se que todo o cidadão deve ter liberdade de exercer uma profissão e aderir a qualquer culto religioso. Diz-se, também, que almejar o bem comum é proporcionar a felicidade natural a todos os habitantes de uma comunidade.

A corrupção, ou seja, o pagamento de propina para obter vantagens, quer sejam de ordem financeira ou tráfico de influência, deteriora a obtenção do bem comum, pois algumas pessoas estão sendo lesadas para que outras obtenham vantagens. Lembremo-nos de que “todo poder corrompe e todo poder absoluto corrompe absolutamente”. Significa dizer que sempre teremos que conviver com algum tipo de corrupção. Eticamente falando, o problema maior está no grau, no tamanho da corrupção e não a corrupção em si mesma.

No Brasil, estamos assistindo a uma enxurrada de denúncias, que vão desde o chamado caixa 2 de campanha política, até a compra de votos para aprovar projetos importantes na área governamental. O vídeo que mostra um funcionário dos Correios recebendo propina foi o estopim da crise. De lá para cá as denúncias não param. O deputado Roberto Jefferson, um dos acusados de comandar a propina nos Correios, saiu distribuindo acusações para todos os lados, no sentido de se defender do ocorrido.

Diante deste fato, pergunta-se: que tipo de subsídio o Espiritismo nos fornece para a compreensão dessa situação? Em O Evangelho Segundo o Espiritismo há alusão aos escândalos. Primeiramente, Jesus nos fala dos escândalos e que estes deverão vir, mas “Ai do mundo por causa dos escândalos; pois é necessário que venham escândalos; mas, ai do homem por quem o escândalo venha”. O escândalo significa mau exemplo, princípios falsos e abuso do poder. Ele deve ser sempre considerado do lado positivo, ou seja, como um estímulo para que o ser humano combata em si mesmo o orgulho, o egoísmo e a vaidade.

Lembremo-nos também da frase: “Ninguém há que, depois de ter acendido uma candeia, a cubra com um vaso, ou a ponha debaixo da cama; põe-na sobre o candeeiro, a fim de que os que entrem vejam a luz; - pois nada há secreto que não haja de ser descoberto, nem nada oculto que não haja de ser conhecido e de aparecer publicamente”. (S. Lucas, cap. VIII, vv. 16 e 17). A verdade, assim, não pode ficar oculta para sempre. Deduz-se que aquele que não soube fazer esforços para se pautar corretamente no bem, sofrerá as consequências de suas ações.

O Espiritismo auxiliará eficazmente as resoluções de ordem política, porque propõe substituirmos os impulsos antigos do egoísmo pelos da fraternidade universal. Allan Kardec propõe, em Obras Póstumas, o regime político que deverá vigorar no futuro, ou seja, a aristocracia intelecto-moral. Aristocracia - do grego aristos (melhor) e cracia (poder) significa poder dos melhores. Poder dos melhores pressupõe que os governantes tenham dado uma direção moral às suas inteligências.

Somente quando o poder da inteligência for banhado pelo poder moral e ético é que conseguiremos atingir um mundo mais justo e mais de acordo com o bem comum, pois os que governam propiciarão sob todos os meios possíveis a felicidade da maioria.




+Sociedade dos Espíritos 





Fonte do Texto e da Gravura: http://www.sociedadedosespiritos.com