domingo, 31 de maio de 2020

AMBIÇÃO - PREENCHIMENTO - EGO


[...] Ambição não é preenchimento. A ambição é inflação do eu. Na ambição há a ideia de proveito pessoal, sempre em oposição ao lucro de outrem; há nela o culto do êxito a competição cruel e a exploração de outrem.

No despertar da ambição há descontentamento constante, destruição e vacuidade; pois, no próprio momento do êxito, há um fenecimento e, portanto, um renovado impulso para outras consecuções.

Quando discernirdes profundamente que a ambição tem dentro de si esta constante luta e angústia, então compreendereis o que é o preenchimento. O preenchimento é a expressão fundamental daquilo que é verdadeiro.

Com frequência, porém, toma-se equivocadamente uma reação superficial pelo preenchimento. O preenchimento não é apenas para uns poucos, mas exige profunda inteligência. Na ambição há o objetivo e o incitamento no sentido da sua consecução; porém o preenchimento requer um ajuste contínuo e a reeducação de todo nosso ser social.

Onde há ambição, há também a busca de recompensa da parte dos governos, das igrejas ou da sociedade, ou então há o desejo das recompensas das virtudes com suas consolações. No preenchimento desaparece integralmente a ideia de recompensa e de punição, pois todo o medo cessa por completo.

Fazei experiências em relação ao que vos estou dizendo, e discerni por vós mesmos. Vossa vida atual está eivada de ambição, não de preenchimento.

Esforçai-vos por vos tornardes alguma coisa, em lugar de vos perderdes nas limitações que impedem o verdadeiro preenchimento.


J. Krishnamurti



Fonte: do livro "O Medo", 2a. ed., 1948
Instituição Cultural Krishnamurti, RJ
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/photos/adora%C3%A7%C3%A3o-espirituais-arati-f%C3%A9-3895833/

O EXATO ORIGINAL DE QUEM NÓS SOMOS


[...] Na revelação cristã do significado do amor, a meditação é o poder da prece que prende nossa atenção no imóvel ponto da conversão... Ao criarmos raízes neste local de transformação, que não é geográfico, mas espiritual, nosso próprio e mais profundo centro, nos modificamos: deixamos de ser uma aproximação, uma mera imitação de nós mesmos para nos tornarmos o exato original de quem nós somos.

“Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual. E não vos conformeis com este mundo, mas, transformai-vos, renovando a vossa mente” (Romanos 12:1-2).

A vida do espírito na natureza humana é uma contínua repadronização. O salto de fé, a cujo aperfeiçoamento dedicamos nossas vidas, é simplesmente o único salto pelo qual deixamos que nossas mentes sejam transformadas e que todo nosso ser seja transfigurado. Em vez de lermos “este mundo”, leiamos “ego”: a parcela que pensa que é o todo. Ele veio a bloquear involuntariamente e a distorcer inconscientemente o mistério da vida em razão dos padrões que ele criou através da dor e da rejeição: a percepção de um mundo sem amor. [...]

Mesmo se a meditação nada mais fosse do que uma breve imersão diária no reino interior, mereceria nossa completa atenção. Porém, ela é mais do que uma fuga temporária da prisão de nossos padrões de medo e de desejo. Por mais complexos que sejam esses padrões que nos fazem temer a morte e o verdadeiro amor que são necessários ao nosso crescimento e sobrevivência, a meditação os simplifica a todos.

Dia após dia, meditação após meditação, esse processo de simplificação prossegue. Gradualmente nos tornamos mais destemidos, até saborearmos a total liberdade do medo, na felicidade de nos sentirmos libertos das imagens e recordações do desejo. E, então, e até mesmo antes disso, nos tornamos úteis aos outros, aptos a amar sem medo ou desejo... livres para servir o Ser, que é o Cristo interior.


Dom Laurence Freeman, OSB




Fonte: "Carta Três" - Leitura de 02/03/2008
WEB OF SILENCE (London: Darton, Longman, Todd, 1996), pp. 28-29, 31.
Tradução de Roldano Giuntoli - http://www.wccm.com.br/site_antigo/leitura_02_03_08.htm
Comunidade Mundial de Meditação Cristã - www.wccm.com.br
Fonte da Gravura: http://www.good-will.ch/postcards_es.html

AS ONDAS MENTAIS (ZEN - ZAZEN)


"Uma vez que desfrutamos todos os aspectos da vida como um desdobramento da mente grande, não precisamos ir em busca de uma alegria excessiva. Assim, nossa serenidade é imperturbável."

Quando estiver praticando zazen*, não tente deter seu pensamento. Deixe que ele pare por si mesmo. Se alguma coisa lhe vier à mente, deixe que entre e deixe que saia. Ela não permanecerá por muito tempo. Tentar parar o pensamento significa que você está sendo incomodado por ele. Não se deixe incomodar por coisa alguma. Pode parecer que essa coisa vem de fora mas, na verdade, são apenas as ondas de sua mente e se você não se deixar incomodar por elas, gradualmente se tornarão mais e mais calmas. Em cinco ou dez minutos, no máximo, sua mente estará calma, serena. Sua respiração então se tornará mais lenta e a pulsação, um pouco mais acelerada.

Leva um certo tempo até que a mente se acalme durante sua prática. Surgem muitas sensações, muitos pensamentos ou imagens, mas são apenas ondas da própria mente. Nada vem de fora dela. Em geral, pensamos que nossa mente recebe impressões e experiências do exterior, mas isso não é uma compreensão correta da nossa mente. A verdade é que a mente inclui tudo; quando pensamos que algo surge de fora, isso quer dizer somente que algo surge na nossa própria mente. Nada exterior a si mesmo pode perturbá-lo. E você mesmo que cria as ondas da mente. Se deixar a mente como ela é, ela se tornará calma. Esta é a chamada mente grande.

Quando a mente está vinculada a algo fora dela própria, trata-se da pequena mente, uma mente limitada. Se sua mente não estiver vinculada a nada, então não haverá mais compreensão dualista na atividade de sua mente. Compreenderá que a atividade não é mais do que ondas da sua mente. A mente grande experimenta tudo dentro de si própria. Percebe a diferença entre ambas? A mente que tudo inclui e a mente ligada a alguma coisa em particular? Na verdade, elas são a mesma coisa, a compreensão é que é diferente, e sua atitude perante a vida será diferente de acordo com a compreensão que você tiver.

Que tudo esteja incluído na mente é a essência da mente; e a experiência disto é a posse do sentimento religioso. Embora as ondas surjam, a essência da sua mente é pura, como água clara com poucas ondas. Na verdade, a água tem sempre ondas. Elas são a prática da água. Falar de ondas separadas da água, ou da água separada das ondas, é uma ilusão. Água e ondas são uma só coisa. A grande e a pequena mente são uma só. Quando você entender sua mente desta maneira, terá alguma segurança em seus sentimentos. Como sua mente nada espera de fora, ela está sempre completa. Uma mente com ondas não é uma mente perturbada e sim ampliada. Qualquer coisa que você experimente é uma expressão da mente grande.

A atividade da mente grande é ampliar a si mesma através das diversas experiências. Em certo sentido nossas experiências, ocorrendo uma a uma, são sempre frescas e novas, mas em outro sentido não passam de um contínuo e repetitivo desdobramento da mente grande. Por exemplo, se há algo bom para o desjejum, você dirá "isto é bom". O "bom" provém de alguma coisa experimentada há tempos, ainda que você não lembre quando. Com a mente grande, nós aceitamos cada experiência do mesmo modo que reconhecemos a face que vemos no espelho como a nossa própria face. Para nós, praticantes, não existe o medo de perder essa mente. Não há qualquer lugar, nem para onde ir, nem de onde voltar; não existe medo da morte, do sofrimento da velhice ou da doença. Uma vez que desfrutamos todos os aspectos da vida como um desdobramento da mente grande, não precisamos ir em busca de uma alegria excessiva. Assim, nossa serenidade é imperturbável, e é com essa imperturbável serenidade da mente grande que praticamos zazen.


Shunryu Suzuki


*Zazen: prática de meditação


Fonte: do livro "Mente Zen, Mente de Principiante", Ed. Palas Athena
Editado por Trudy Dixon - Tradução de Odete Lara
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/vectors/medita%C3%A7%C3%A3o-zazen-meditar-budismo-3998095/

sábado, 30 de maio de 2020

UM CAMINHO PARA A ESTABILIDADE


Para aprender a meditar, precisamos aprender a ser humildes... O que significa ser humilde? Significa começarmos a compreender que há uma realidade fora de nós mesmos, que é maior que nós mesmos e que nos contém. Humildade simplesmente é aprendermos a encontrar nosso lugar dentro dessa realidade maior e... aprendermos a viver em nosso lugar. A primeira coisa a aprender é que você é seu próprio lugar. Para fazermos as pazes com toda a realidade precisamos primeiro fazer as pazes com nossa própria realidade. É na imobilidade da meditação, a imobilidade de corpo e de espírito que revela a unidade de corpo e de espírito, que adentramos à experiência de realmente sabermos que somos. Passamos a saber disso com clareza absoluta e certeza absoluta.  Só então estamos prontos para seguir para o próximo passo, que é o de irmos além de nós mesmos, de nos elevarmos além de nós mesmos. A tragédia da pessoa egoísta é que ele ou ela não conhece seu lugar. O egoísta pensa estar no centro de tudo e vê tudo... apenas em relação a si mesmo.

A meditação e o constante retorno a ela, todos os dias de nossa vida, é como abrirmos caminho em direção à realidade. Uma vez que conheçamos nosso lugar começamos a ver tudo sob uma nova luz, por termo-nos tornado quem realmente somos. E, ao nos tornarmos quem somos, podemos agora ver tudo como realmente é, e assim começar a ver todas as pessoas como realmente são. A mais verdadeira maravilha da meditação é que começamos até mesmo a ver Deus como Deus é. A meditação é, portanto, um caminho para a estabilidade. Através da prática e a partir da experimentação, aprendemos como lançar raízes em nosso ser essencial. Aprendemos que enraizarmos-nos em nosso ser essencial é nos enraizarmos em Deus, o autor e princípio de toda realidade. E, não é coisa pouca, adentrarmos a realidade nos tornarmos verdadeiros, nos tornarmos quem somos, pois, nessa experiência, somos libertados de todas as imagens que tão constantemente nos afligem. Não precisamos ser nenhuma imagem que outros fazem de nós mesmos, mas simplesmente a verdadeira pessoa que somos.

A meditação se pratica solitariamente, mas é o grande caminho para aprendermos a nos relacionar.  A razão deste paradoxo é que ao entrarmos em contato com nossa própria realidade temos a confiança existencial para alcançar outras pessoas, para encontrá-las em seu verdadeiro nível. Por isso, o elemento solitário da meditação, misteriosamente, é o verdadeiro antídoto para a solidão. Ao entrarmos em contato com nossa realidade não mais somos ameaçados pela diversidade de outrem. Não estamos sempre buscando nos afirmar; estamos fazendo a busca do amor, buscando a realidade do outro...

A meditação é exigente. Devemos aprender a meditar, quer estejamos dispostos, ou não, quer esteja chovendo, ou faça frio, ou o sol esteja brilhando, ou o que quer que esteja passando na televisão, ou qualquer que tenha sido o tipo de dia que tivemos. Na visão cristã da meditação... encontramos a realidade do grande paradoxo ensinado por Jesus: caso queiramos encontrar nossas vidas, devemos estar preparados para perdê-las. Ao meditarmos é exatamente isso o que fazemos. Nos encontramos por estarmos preparados para nos abandonarmos, para nos lançarmos às profundezas... que logo se mostram como sendo as profundezas de Deus.


Dom John Main, OSB



Fonte: "Desviando-se do Mantra" - Leitura de 20/01/2008
THE HEART OF CREATION (NY: Continuum, 1998), pp. 9-10.
Tradução de Roldano Giuntoli
Comunidade Mundial de Meditação Cristã
www.wccm.com.br
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/illustrations/medita%C3%A7%C3%A3o-espirituais-ioga-1384758/

O GRANDE DESAFIO


O planeta Terra é repleto de variedades culturais, de forma que a vida de quem nasce e cresce no Brasil é bastante diversa daquela de quem nasceu e cresceu, por exemplo, no Afeganistão. Mesmo dentro do território brasileiro, há regiões cujos costumes são bastante distintos uns dos outros. E, para não precisarmos ir mais além, podemos deduzir que nas grandes metrópoles pode haver gritantes diferenças entre o cotidiano de um bairro para outro.

Com efeito, sabendo que grande parte de nós é composta pelo que absorvermos do nosso meio, somos forçados a convir que o que somos depende de onde fomos colocados e que bem diferente seriamos caso tivéssemos nascido e crescido dentro de outras culturas.

A pergunta é: o quanto de nós realmente nos pertence e o quanto somos em função das tradições que nos cercam?

O Brasil é um país multicultural, onde há enorme liberdade social, cultural e religiosa. Aqui, tradições e culturas se convivem e se mesclam com bastante facilidade. O brasileiro é então multifacial, a ponto de ninguém ficar escandalizado quando qualquer individuo comum migra de tradição - por exemplo, quando alguém troca de religião.

(...) Baseado nesse raciocínio, vemos o quanto as tradições implicam na personalidade, na crença e no comportamento das pessoas.

Em virtude de gozarmos da liberdade que ora desfrutamos, podemos estudar, pesquisar, refletir e tomar rumos conforme nossa vontade. Temos livre-arbítrio e dispomos de uma gama de subsídios (livros, vídeos, internet etc.) para nosso enriquecimento pessoal, sem maiores choques. Porém, houve um tempo em que desafiar as tradições - especialmente as tradições religiosas - era praticamente impossível ou absolutamente perigoso. Mais triste ainda é sabermos que ainda há em nosso orbe regiões onde imperam tais características.

Seguir as tradições - quer dizer, participar do senso comum - parece cômodo e algumas vezes até mais seguro, todavia, chega o tempo em que somos cobrados pela própria consciência em razão de as explicações tradicionais não mais satisfazerem à lógica, que nos surge naturalmente, da mesma forma que, inexoravelmente, um dia, a conjuntura atual nos perturbará. Aliás, o natural mesmo é que uma estranha inquietação consciencial nos persiga constantemente, fazendo-nos nos mover em atenção ao devir, ou seja, para o que estar por vir, para as constantes transformações - pois, observando o processo de mutação do mundo e das próprias pessoas, somos forçados a crer que também assim será o curso das coisas pelos tempos sem fim.

Para uns, sair desse ciclo cômodo e vicioso das tradições é uma dor de parto, dentre outras razões, pela necessidade de abjurarmos antigas crenças e conceitos que outrora defendíamos com fervor. Um exemplo clássico: mesmo com inquestionáveis evidências de que a Terra orbita em torno do Sol, a Igreja Católica demorou meio milênio para reconhecer essa verdade natural, pois os seus teólogos defendiam religiosamente o modelo aristotélico de que a Terra era o centro do Universo.

Aí está precisamente a primeira luta e provavelmente o maior desafio para o autodescobrimento: permitir-se estudar e questionar as tradições, desconstruir-se para então se reconstruir, saindo do senso comum para o bom senso, partir do raciocínio lógico e em acordo com a própria consciência.

E por que é desafiador questionar as tradições?

As coisas, como estão estabelecidas no nosso mundo, foram construídas em cima de certos interesses e, por isso, historicamente foram impostas pela força da espada. Consolidadas pelo tempo, elas se transformaram em tradições e ficaram enraizadas na cultura popular. Quebrar essas raízes implica em desafiar os interesses, ou, para ser mais prático, desafiar quem se beneficia da organização tal ela como está posta.


Louis Neilmoris



Fonte: do livro "O Grande Encontro Filosófico - Autodescobrimento Aplicado"
Ed. Luz Espírita, abril de 2014, digital
www.luzespirita.org.br
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/illustrations/chefe-poder-mobbing-sucesso-2179948/

PREPARANDO-SE PARA O NASCIMENTO


Um dos temores que encontro mais frequentemente nas pessoas que começam a meditar, como meio de diária peregrinação, é o de que a jornada para seu próprio coração, para esse espaço infinito, possa levá-las ao isolamento, longe do conforto e da familiaridade do conhecido, para o desconhecido. Este é um temor inicial compreensível. Ao dizermos "deixar para trás o familiar", isso frequentemente significa "deixar para trás a superficialidade" e, isso pode criar uma sensação de vazio, à medida que nos expomos a uma maior profundidade e a uma realidade mais substancial. Levamos algum tempo, para nos adaptar a essa nova sensação de pertencer, de um novo parentesco, que parece colocar todos os nossos relacionamentos em uma nova ordem. O nosso "voltar ao lar", pode nos dar a sensação de um "sem lar".

Com o tempo, compreendemos que nessa nova experiência da inocência, de deleite no dom da vida, estamos deixando para trás a infantilidade e adentrando na maturidade completa que Jesus desfruta no Pai, a totalidade de seu amor que entra e se expande em nossos corações, no Espírito. Não será apenas agora, no início de nossa peregrinação, que precisaremos do amor humano e da inspiração de outros. Mas é agora, ao encontrarmos um largo horizonte que nos é pouco familiar, que sentimos uma carência especial da energia da comunidade com outros. Abrirmo-nos a eles expande, por sua vez, nossa sensibilidade a suas carências. E assim que o mantra nos conduza para mais longe de nosso auto-centramento, nos voltaremos mais generosamente para os outros, recebendo, em troca, seu apoio. Na verdade, nosso amor pelos outros é a única maneira verdadeiramente cristã de medirmos nosso progresso na peregrinação da prece.

O compromisso que, a princípio, essa jornada nos exige é pouco familiar. Demanda fé, talvez uma certa negligência para começar. Porém, uma vez que tenhamos começado, será a natureza de Deus, a natureza do amor, que nos fará voar, ensinando-nos, por experiência própria, que nosso compromisso é com a realidade, que nossa disciplina é a prancha que nos impulsiona à liberdade. Só podemos provar que é infundado o temor de que a jornada seja mais de "partida" do que de "chegada" por experiência própria. Esta é uma jornada em que, afinal, só a experiência conta. As palavras ou textos de outras pessoas só podem adicionar alguma luz à realidade completamente verdadeira, completamente presente e completamente pessoal que vive em seu coração e em meu coração. Milagrosamente, podemos adentrar essa experiência juntos e descobrirmos a comunhão exatamente onde a comunicação parecia falhar.

E a jornada para nosso próprio coração é uma jornada para todos os corações. E sob o primeiro raio de luz do verdadeiro, compreendemos que essa é a comunhão, que é o reino que Jesus nasceu para estabelecer e no qual ele novamente nasce em todo coração humano para que compreenda.


Dom John Main, OSB



Fonte: "Preparando-se para o Nascimento" - Leitura de 13/01/2008
THE PRESENT CHRIST (NY: Crossroad, 1991), pp. 39-40.
Tradução de Roldano Giuntoli
http://www.wccm.com.br/site_antigo/leitura_13_01_08.htm
Comunidade Mundial de Meditação Cristã
www.wccm.com.br
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/photos/praia-p%C3%B4r-do-sol-ioga-meditar-1835213/

A BELEZA UNIVERSAL


O adágio “Se você quer ser belo, detenha-se por um minuto diante do seu espelho, cinco diante da sua alma e quinze diante do seu Deus” resume bem um dos objetivos a que todo ser humano deveria buscar. Pagar tributo à Beleza divina deveria ser nosso objetivo prioritário, e ele não pode ser alcançado a menos que nós mesmos nos tornemos belos. Quando falo em Beleza, naturalmente não me refiro à estética corporal a qual alguns atribuem demasiada importância e que, infelizmente, tornou-se, em nossa época, um culto ridículo e mesmo perigoso. Penso sobretudo na beleza de nosso santuário interior, a qual, independentemente do aspecto exterior do templo no qual se encontre, pode irradiar-se a todo momento sob a forma de um magnetismo que nada nem ninguém pode alterar ou diminuir.

Neste sentido, a feiura não deve ser considerada como uma ausência de beleza física, mas como a expressão de uma grande falta de espiritualidade. O que confere beleza à garrafa, à parte a pureza de sua forma e a qualidade de seu vidro, é antes de tudo o grau de luminosidade que ela é capaz de refletir. O mesmo se aplica ao ser humano. Pelo tempo em que ele esconder sua luz interior, permanecerá prisioneiro de seu corpo e, no melhor dos casos, não poderá manifestar senão a aparência daquilo que lhe parece belo.

Somente o misticismo pode nos dar o poder de desvelar nossa espiritualidade e de libertar plenamente as virtudes escondidas de nossa alma. Tomemos, por exemplo, a verdade. Não há erro mais grave do que a recusa em ver e ouvir a verdade. A verdade é una porque Deus é Uno, mas os erros são múltiplos porque a ignorância desconhece o número de seus adeptos. Ora, o que torna belo o individuo é o conhecimento de si mesmo - esse conhecimento que pode elevá-lo até as estrelas mais longínquas para lhe presentear com a Consciência divina.

Observemos também que não é por acaso que o estado de consciência crística é simbolizado na Árvore cabalística pela sefira Tiphereth, ela própria símbolo da beleza adâmica na Terra. Não é dito que o próprio Mestre Jesus veio para manifestar a Beleza Divina?

Esforcemo-nos para imitar a beleza de intenção e de ação que animou o Mestre Jesus ao longo de seu ministério. Isto naturalmente não quer dizer que devemos nos tomar por ele e buscar inflar nosso próprio ego por uma pomposa imitação daquilo que julgamos conhecer acerca dele. Isto significa simplesmente que devemos nos aplicar plenamente para sensibilizar as pessoas de nosso convívio aquilo que é belo, a fim de levar seu senso estético a evoluir na direção dos arquétipos superiores.

Creio que é difícil atingir este objetivo por intermédio da arte, pois ela, nesse ponto da evolução humana, ainda é uma expressão muito imperfeita da Perfeição divina. É verdade que muitos são os mestres que, por intermédio da música, da pintura, da escultura ou de outros ramos da arte, encarnaram formas-pensamento de grande pureza e perfeição. Mas para a maioria das pessoas, tais obras estão além do que elas são capazes de sentir e de compreender em matéria de beleza. E sem dúvida por esta razão que uma pintura inspirada será para alguns o cúmulo do horror ou que, inversamente, uma música decadente será para outros o 'summum' da inspiração.

Tudo isto naturalmente não quer dizer que não haja beleza universal. Isto simplesmente nos mostra que o homem encarnado, antes de ser capaz de discernir a existência de tal beleza, permanece por muito tempo prisioneiro de uma má concepção daquilo que é belo. Neste livro, um outro capítulo também está consagrado à beleza, mas mais particularmente à beleza através da arte.

Não é senão evoluindo na direção dos planos de consciência cada vez mais elevados que cada um pode retirar o véu e se aproximar da magnificência da verdadeira beleza. Enquanto o homem não atinge um certo degrau de evolução, ele não faz mais do que projetar em seu meio o sentido que sua mente dá à beleza. Dito de outra maneira, ele busca aquilo que é belo por meio dos olhos do corpo, e não através dos olhos de sua alma. Segundo esse ponto de vista, podemos dizer que existem tantos critérios de beleza quanto indivíduos, e isto procede se compararmos todas as civilizações e formas de sociedade, mesmo as atuais. Podemos, no entanto, constatar que há coisas sobre as quais existe um consenso no tocante à sua beleza. Sobre elas, é dito que refletem a harmonia, inspiram e apaziguam.

Para darmos alguns exemplos, nunca aconteceu de você ouvir dizer que uma aurora ou um crepúsculo, ou ainda um céu estrelado, são feios. As coisas acontecem diferentemente quando perguntamos as pessoas o que elas pensam da beleza deste ou daquele objeto. Aparece então uma divergência entre as diversas concepções de beleza, cada qual sendo resultante da educação, da personalidade e da evolução interior de cada um. Portanto, é fácil compreender que o problema do homem não é que ele seja insensível à beleza universal, mas sobretudo que, na maioria dos casos, ele não toma consciência dela, não sabe onde situá-la ou é incapaz de exprimi-la naquilo que ele pensa, diz e faz.

Como venho de salientar, todo individuo é sensível à beleza que se manifesta pelo viés da natureza. Devemos então levar nosso meio, e mesmo um público mais amplo, se pudermos, a refletir sobre o porquê e o como desta sensibilidade à beleza. Agindo assim, conduziremos progressivamente essas pessoas a não mais se contentarem com aquilo que constitui a beleza da natureza e do universo, mas a participarem conscientemente nela enquanto atores e espectadores. Que possamos dar a eles o desejo de abrir o “Livro do homem” e o “Livro da natureza” e o desejo de conhecer e compreender as leis que se operam neles e ao redor deles.

É a isso que me dediquei através destas reflexões, e espero que você possa encontrar em si e a seu redor a sublime beleza universal.


Christian Bernard, FRC



Fonte: do livro "Reflexões Rosacruzes", 1a. ed., 2011
Biblioteca Rosacruz - Ordem Rosacruz (AMORC), Curitiba - PR
Fonte da Gravura: http://www.good-will.ch/postcards_es.html

quinta-feira, 28 de maio de 2020

KARMA E DHARMA


A teoria completa da reencarnação também deve abrigar o conteúdo da memória reencarnatória, bem como determinados envolvimentos de causa e efeito que possam ocorrer entre duas encarnações díspares.

A memória reencarnatória é fácil de compreender, pois presumimos que existe uma janela não local que está sempre aberta entre reencarnações. Normalmente, não temos consciência dela mas, no momento da morte, quando o apego ao ego fica extremamente reduzido, podemos ficar particularmente cientes dessa janela não local e ter uma visão panorâmica de nós mesmos ao longo de diversas existências.

Do mesmo modo, no momento do nascimento, como o apego ao ego ainda não se formou, a abertura da janela não local pode permitir que uma experiência panorâmica das encarnações fique armazenada na memória do recém-nascido. Existem muitas informações para apoiar esta teoria.

Em experiências de quase-morte, muitas pessoas descrevem, de modo explícito, uma visão panorâmica desta vida e, às vezes, até de vidas passadas. Do mesmo modo, embora ninguém se lembre imediatamente do momento do nascimento, com o uso de técnicas especiais estas memórias foram evocadas e são consistentes com a visão panorâmica de vidas passadas. Grof usa a técnica de respiração holotrópica para regressão ao nascimento ou mesmo antes do nascimento. Muitos de seus pacientes se lembram de dados reencarnatórios. Já mencionei os terapeutas de regressão a vidas passadas. Eles também acham correto regressar seus pacientes ao início da infância para extrair memórias de vidas passadas.

Como ocorre um envolvimento de causa e efeito entre duas pessoas que continuam unidas entre esta encarnação e a seguinte? Se duas pessoas estão correlacionadas por meio da não localidade quântica e uma delas causa o colapso de um evento e o experimenta, um evento correlacionado de colapso torna-se uma certeza para o parceiro envolvido, exceto que o momento exato do colapso desse evento não precisa ser especificado. Pode ocorrer em qualquer momento no futuro, mesmo que o futuro seja na próxima encarnação. Essa é a natureza da não localidade quântica. Deste modo, uma causa nesta vida pode se propagar não localmente para a próxima vida, precipitando um efeito não local. Os teosofistas usam a palavra sânscrita karma para denotar essas conexões não locais de causa e efeito entre encarnações.

No entanto, há essas propensões mentais e vitais que também são efeitos que levamos de uma vida para outra. Chamei essas propensões de karma em um trabalho anterior, embora a palavra sânscrita samskaras também seja usada para essa transmigração em particular.

Há uma terceira conotação que pode ser dada à palavra karma. Há o repertório de contextos supramentais que aprendemos para viver; são levados conosco de um nascimento para outro. São o que os teosofistas chamam mente superior e também é algo que se propaga de uma vida para outra; portanto, pode ser chamado karma.

Definido desse modo, o karma abrange tudo que transmigra de uma vida para as seguintes. Dessa forma, podemos falar de karma acumulado ao longo de muitas vidas até a presente. É claro que podemos falar de karma futuro, que se refere ao karma que formamos na vida presente.

Entretanto, a literatura oriental sobre reencarnação inclui mais um conceito relacionado ao karma – o karma ambiente (prarabdha, em sânscrito), o karma que frutifica nesta vida. Prarabdha é a porção do karma passado responsável por nosso corpo atual. A ideia é que não levamos todas as propensões de nosso karma acumulado para a vida que estamos vivendo agora, e sim um número selecionado de karmas. A surpresa das surpresas é que esta ideia foi confirmada por dados empíricos graças à pesquisa de um terapeuta de vidas passadas, chamado David Cliness. Ele estudou inúmeros pacientes que se recordam de diversas vidas passadas. Curiosamente, descobriu que as pessoas não trazem para a vida atual todos os contextos e propensões adquiridos previamente nestas vidas anteriores. Ele usou a linguagem do jogo de pôquer para descrever a situação; é como se a pessoa jogasse este jogo com as propensões e contextos adquiridos e escolhesse cinco cartas do baralho, onde 52 estão disponíveis.

Podemos teorizar. Por que traríamos uma seleção específica de karma ambiente? Porque queremos nos concentrar em uma agenda específica de aprendizado para esta vida. Essa agenda de aprendizado tem o nome de outra palavra sânscrita, dharma (grafada com “d” minúsculo para diferenciá-la da palavra Dharma com “d” maiúsculo, que denota o Todo, o Tao).

Essa ideia da vida como a realização de uma agenda de aprendizado pode fazer lembrar o maravilhoso filme O feitiço do tempo [Groundhog day], no qual o herói reencarna (por assim dizer) entre uma vida e outra com uma agenda de aprendizado simples, mas muito importante – o amor.

Mais uma coisa que posso dizer sobre o dharma: quando cumprimos a agenda de aprendizado que trouxemos para esta vida, a vida se torna cheia de êxtase. Se, pelo contrário, encontramos êxtase na vida, podemos concluir que estamos cumprindo nosso dharma. O mitologista Joseph Campbell costumava dizer: “Siga sua felicidade”. Ele sabia.


Amit Goswami



Fonte: do livro "DEUS NÃO ESTÁ MORTO"
Tradução de Marcello Borges
Ed. Goya, SP
www.editoragoya.com.br
Fonte da Gravura: https://www.shutterstock.com/image-vector/karma

A BUSCA DO SILÊNCIO CONTEMPLATIVO NOS HESICASTAS E NOS MÍSTICOS CRISTÃOS


A busca do silêncio contemplativo nos hesicastas

O hesicasmo é a tradição mística do Oriente. (1) Nessa tradição, se enfatiza a necessidade da oração descer ao coração. O monge que ensinou a oração ao peregrino lhe leu uma passagem da Filocalia onde “São Simeão, o Novo Teólogo”, diz:

"Permanece sentado no silêncio e na solidão, inclina a cabeça, fecha os olhos; respira mais devagar, olha, pela imaginação, para o interior de teu coração, concentra tua inteligência, isto é, teu pensamento, da tua cabeça para teu coração. Dize, ao respirar: 'Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim', em voz baixa, ou simplesmente em espírito. Esforça-te para afastar todos os pensamentos, sê paciente e repete muitas vezes esse exercício. (2)

(...) Ao cabo de certo tempo, senti que a oração por si só passava para meu coração, isto é, que meu coração, ao bater regularmente, ia recitando as santas palavras no ritmo das batidas, por exemplo: 1 – Senhor, 2 – Jesus, 3 – Cristo, e assim por diante." (3)

Segundo os monges do deserto, esse é o caminho mais seguro para Deus. Nouwen cita Arsênio: “Muitas vezes me arrependi de ter falado”, disse Arsênio, “mas nunca de ter permanecido em silêncio”. (4) O silêncio é precioso. A partir do silêncio, as palavras adquirem um significado mais profundo. Como diz Leloup: “Pela palavra, gastamos muita energia, e pelo silêncio, recolhemos esta energia, que nos tornará capazes de dizer ‘palavras dignas do silêncio’, tão fortes como ele”. (5) Somente quem sabe silenciar, também sabe escutar. (6) “O silêncio dos lábios para os antigos devia levar ao silêncio do coração que, por sua vez, podia levar ao silêncio do Espírito”. (7) Contudo, não podemos esquecer que esse silêncio é dom de Deus. Thomas Merton o descreve:

"Assim como Moisés, na solidão do Monte Horeb, conduziu seus rebanhos até as regiões mais recônditas do deserto e, ali, contemplou a sarça ardente e ouviu a voz que lhe falou, aprendendo dessa voz o Nome Santo e indizível de Deus, assim também, penetra o monge no ermo, pelo silêncio e a perfeita solidão. Ali, descobre a ‘sarça ardente’, isto é, o seu próprio espírito, que arde como o fogo de Deus sem se consumir. Para contemplar esse tremendo mistério deve imitar Moisés e retirar as ‘sandálias’ de seus pés – ou elevar-se acima de todos os conceitos que possa ter sobre Deus, pois o Deus de quem ele se aproxima não é um mero ‘objeto’ capaz de ser contido dentro dos limites de um conceito. É o Deus Vivo, ardendo como chama intangível, na própria substância de nosso espírito, que dele recebe toda a sua vida. Só a alma que arde nessa chama divina pode percebê-lo. A chama de Deus é a chama de pura vida, do Ser Infinito, da Realidade Absoluta. Só o podem conhecer aqueles que abandonaram toda falsidade e ilusão, toda mentira e fingimento. Mais que isso, abandonaram-se a si próprios, elevaram-se acima de si mesmos, passando além de si. Transcendendo-se desse modo, realizaram-se com a máxima perfeição, não mais vivendo em si mesmos, mas nele." (8)

A busca do silêncio contemplativo nos místicos cristãos

Segundo o Frei Patrício, “os místicos são atraídos pelo mistério; eles não querem compreender, querem permanecer a contemplar silenciosamente o mistério.” (9) Para contemplar silenciosamente o mistério, se faz necessária a solidão. A solidão propicia o silêncio, que auxilia na contemplação do mistério. A solidão “tem por finalidade colocar a alma em estado de silêncio e receptividade, para que se abram as profundezas espirituais à ação do Espírito Santo, que faz conhecer os mistérios do reino de Deus e nos ensina as insondáveis riquezas do amor e da sabedoria de Cristo”. (10) O monge beneditino Anselm Grün nos fala da mística cristã:

"De uma maneira substancialmente mais otimista fala-se da experiência silenciosa de Deus na mística alemã da Idade Média. Para Mestre Eckhart, Johannes Tauler e Heinrich Seuse, o degrau mais elevado da oração é a união silenciosa com o mais profundo da alma, onde o próprio Deus repousa sem qualquer imagem. Quando nos desvinculamos de todas as nossas imagens, e mergulhamos no fundamento mais íntimo de nós mesmos livre de toda e qualquer imagem, então nós somos um com Deus. Mestre Eckhart acha que as imagens que fazemos de Deus podem impedir que o próprio Deus entre em nós: ‘A própria imagem criada que se fixe em ti é tão grande como Deus: ela impede a presença de Deus inteiramente. Na medida em que esta imagem penetra em ti, Deus tem que ceder lugar, e na medida em que ela sai Deus entra’". (11)

É como se houvesse um desnudar do ser humano de todas as imagens e ideias, desbloqueando o caminho para Deus. “Quando tivermos renunciado a todos os pensamentos próprios, quando tivermos mandado embora o Deus que nós criamos, estaremos dando a Deus a possibilidade de nascer em nós.” (12) Anselm Grün diz mais:

"Em cada um de nós existe um lugarzinho onde o silêncio é completo, um lugar livre de ruído dos pensamentos, livre das preocupações e desejos. É um lugar em que nós mesmos nos encontramos inteiramente em nós. Este lugar, que não é perturbado por nenhum pensamento, é para Eckhart o que existe de mais precioso no homem, o ponto onde o verdadeiro encontro entre Deus e o homem pode ocorrer. A este lugar do silêncio nós precisamos avançar. Não temos necessidade de criá-lo, ele já existe, apenas está obstruído por nossos pensamentos e preocupações. Quando desobstruímos em nós este lugar do silêncio, poderemos encontrar Deus assim como ele é. Então não nos fixamos em nós e em nossos pensamentos, mas nos desvinculamos inteiramente de tudo, deixamo-nos cair no mistério de Deus que nos sustenta. Então não prescrevemos a Deus como ele tem que vir ao nosso encontro, mas nos abrimos para a sua vinda assim como ele a imaginou. Mesmo depois de havermos desobstruído em nós este lugar do silêncio, não podemos forçar uma experiência de Deus. Também aqui não podemos sentir senão o vazio e a escuridão. Mas então estaremos abertos à sua chegada, sem que estejamos curiosos e impacientes na expectativa de uma experiência de Deus."


Rolf Roeder - Teólogo



Notas:

1Cf.  __________. O peregrino russo – três relatos inéditos, p. 10.
2 __________. Relatos de um peregrino russo, p. 23
3 Ibid., p. 34.
4 Henri J. M. NOUWEN. A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo, p. 39.
5 Jean-Yves LELOUP,. Escritos sobre o Hesicasmo, p. 38-39.
6 Sugiro a leitura do livro de “Anselm GRÜN. As exigências do silêncio.
7 Anselm GRÜN. As exigências do silêncio, p. 44.
8 Thomas MERTON. A Vida Silenciosa, p. 156-157.
9 Frei PATRÍCIO, ocd. O barulho adoece e o silêncio cura, p. 38.
10 Thomas MERTON. A Vida Silenciosa, p. 130.
11 Anselm GRÜN, As Exigências do Silêncio, p. 81-82.
12 Anselm GRÜN, As Exigências do Silêncio, p. 82.
13 Ibid., p. 81-83.



Fonte: https://www.academia.edu/8211016/A_busca_do_sil%C3%AAncio_contemplativo_nos_hesicastas_e_nos_m%C3%ADsticos_crist%C3%A3os
Fonte da Gravura: Fotografías de Rosa Sorrosal
http://www.good-will.ch/postcards_es.html

A DESCOBERTA DO NOSSO VERDADEIRO SER


A compreensão Zen - a descoberta do nosso verdadeiro ser - surge apenas a partir da prática repetitiva e disciplinada.

A compreensão dos princípios subjacentes a uma arte Zen não se baseia num entendimento cognitivo ou intelectual. Mais exatamente, fundamenta-se na percepção intuitiva dos princípios subjacentes ao Universo tal como eles se aplicam àquela arte em particular. Trata-se de uma forma de intuição Zen aplicada a uma atividade em especial. Por essa razão, Leggett (1) descreve os Caminhos como "representações parciais do Zen em determinadas áreas". Uma vez que são desprovidos de forma, os princípios subjacentes a uma arte não podem ser descritos por completo nem diretamente aprendidos. A filosofia do ensino das artes Zen consiste no aprendizado dos princípios fundamentais através da prática repetitiva das técnicas. Elas representam formalizações da compreensão que os mestres têm dos princípios; podem ser consideradas aproximações dos princípios subjacentes. Assim, o hassetsu (2) é um conjunto de técnicas que, na melhor das hipóteses, são aproximações da maneira naturalmente correta de disparar uma flecha. Essas técnicas podem levar o estudante apenas até certo ponto. No fim das contas, cada estudante tem de enxergar os princípios subjacentes por si mesmo, e isto só pode ser alcançado através de intermináveis repetições dos oito estágios do kyudô (3). O que nos leva a uma explicação mais aprofundada do adágio "milhares de repetições, e a perfeição emerge a partir de nosso verdadeiro ser". No kyudô, assim como nos outros Caminhos, a compreensão Zen - a descoberta do nosso verdadeiro ser - surge apenas a partir da prática repetitiva e disciplinada.


Kenneth Kushner



Notas:

1 T. Leggett,_Zen and the Ways, Boulder, Shambhala, 1978, p. 125
2 Hassetsu: Os oito estágios do kyudô; sequência de disparo formalizada.
3 Kyudô: O Caminho do arco.



Fonte: do livro "O Arqueiro Zen e a Arte de Viver", Kenneth Kushner, pp. 25-6
Ed. Pensamento, SP
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/photos/tori-japon%C3%AAs-santu%C3%A1rio-torii-1976609/

quarta-feira, 27 de maio de 2020

A UNIDADE ALÉM DA DUALIDADE


Nossa meditação nos expõe a profundas feridas em nossa natureza e, nos força a encarar o sofrimento da humanidade, desde o início dos tempos. Ela cultiva a compaixão e, isso por sua vez precisa se expressar como compaixão em nossas vidas.

Precisamos superar a dualidade da mente consciente que nos separa de Deus e uns dos outros, e compreender que, em Cristo, essa dualidade foi superada. Vocês sabem, o pecado original é uma queda em direção à dualidade. O ser humano original foi criado para ser unificado em corpo, alma e espírito e assim estar aberto a Deus. A queda da humanidade é a queda do espírito à psique, o que vale dizer, ao ego, ao eu separado. Em lugar de nos abrirmos constantemente a Deus no espírito, caímos em nosso ego, e nos fechamos no medo e na luta, para nos auto-preservarmos. Cristo veio para nos libertar dessa dualidade. Uma vez que você cai em direção à psique, tudo se torna dual, o bem e o mal, certo e errado, branco e preto, consciente e inconsciente, mente e matéria, sujeito e objeto, verdade e erro. A mente racional dualiza tudo. Ela enxerga tudo em termos de pares de opostos.

Porém, sempre além do dualismo da mente está o espírito unificador. A meditação nos leva além das dualidades, em direção ao espírito unificado. Jesus é aquele que rompeu a divisão em nossa natureza. São Paulo nos diz que ele “destruiu a muralha divisória”. No Templo, em Jerusalém, havia uma muralha que nenhum gentio podia cruzar. Caso o fizesse, ele seria executado. Era para os judeus, o povo escolhido. Essas pessoas ficavam de fora. Jesus destruiu essa muralha divisória, franqueando o Templo a toda a humanidade. Todavia, nós construímos todas essas muralhas novamente, dividindo o mundo e, é claro, que este tem sido o nosso problema.

Jesus destruiu a muralha divisória, como diz São Paulo, e isto é a hostilidade dentre nós, e reconciliou-nos em um corpo na cruz. Necessitamos, hoje em dia, levar a sério essa visão de que a humanidade é um corpo, um todo orgânico. Os Padres possuíam esse forte sentimento do Adão que está em toda a humanidade. São Tomás de Aquino, numa bela frase, nos disse: 'Omnes homines, unus homo', todos os homens são um homem, um todo orgânico. Somos todos membros deste único Homem que caiu e se dividiu em conflitos e confusão. E Jesus restaurou a humanidade, não apenas judeus ou cristãos, ou qualquer grupo em particular, mas a humanidade a essa unicidade, o novo Adão, a raça humana consciente de sua unidade fundamental e de sua unidade com o cosmos. Isso é o que hoje estamos recuperando. Estamos começando a redescobrir a humanidade que nos é comum. A televisão que traz os eventos de todas as partes do mundo para tão perto das pessoas está nos ajudando a compreender que as coisas que acontecem no Iraque e em outros lugares, são parte de nossos próprios problemas. Enxergamos a humanidade como parte de um todo cósmico. Somos todos parte deste planeta, moldados por ele e estamos crescendo e vivendo a partir dele. Somos todos partes uns dos outros, estamos crescendo através de contatos uns com os outros, assim como um todo orgânico. Estamos recuperando essa unidade, além da dualidade, por direito de nascimento.

Em nossa tradição hebraica, a dualidade é muito forte. Penso que a humanidade teve que passar pelo dualismo para aprender a diferença entre o certo e o errado, o bem e o mal, a verdade e o erro. Você precisa passar por esse estágio de separação e divisão, porém você precisa transcendê-lo. O Velho Testamento geralmente reflete essa dualidade: eram sempre os israelitas que eram o povo sagrado e de fora ficavam os gentios que deveriam ser rejeitados. Os bons deveriam ser separados e os maus condenados. Esse dualismo permeia toda a tradição judaica.

Jesus é originário dessa tradição judaica e frequentemente se utilizava de sua linguagem de rejeição e condenação. Ainda assim, ele ia sempre além dela e nos levava ao ponto onde transcendemos todas as dualidades. Há uma maravilhosa expressão disso no evangelho de São João: “afim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós.” Jesus é completamente um com o Pai mas, mesmo assim, ele não é o Pai. É uma relação não dual. Não é um, e não é dois. É um mistério de amor. O amor não é um, e não é dois. Quando duas pessoas se unem no amor elas se tornam uma e ainda mantém sua distinção. Jesus e o Pai possuíam essa completa comunhão em amor e ele nos pede para nos tornarmos um assim como ele é um com o Pai, unicidade completa, no ser não-dual do Pai. É o chamado cristão, para a recuperação dessa unidade.

Na Índia, essa ideia da não-dualidade, advaita, é fundamental. A tradição indiana possui esse sentido de ir além das dualidades. Os cristãos de nossos dias podem aprender muitas coisas da tradição indiana e particularmente esse entendimento do advaita, a não-dualidade. O cristianismo desenvolveu, a partir de Israel, uma tradição de dualismo. Atravessou a cultura greco-romana, que também era dualista, ainda que de um modo diferente, mas mesmo assim continuou. Porém, hoje, estamos nos encontrando com as religiões da Ásia e estamos começando a descobrir o princípio da não-dualidade. É o chamado fundamental da humanidade. A não-dualidade não é um, e nem é dois, e não é racional. A mente racional requer que tudo seja um ou dois, enquanto que a não-dualidade, que está além do racional, afirma uma relação que não é um e também não é dois. Somente através da meditação passamos além dessa dualidade. Estamos sendo chamados a recuperar a unidade, além da dualidade, que é nosso direito por nascimento e que, só ela, pode atender a mais profunda carência da humanidade hoje.

Tenho planos para um livro sobre as Escrituras do mundo, para ser lido por cristãos e outros, no qual eu tente mostrar que todas religiões, hinduísmo, budismo, taoismo, islamismo, judaísmo e cristianismo, todas elas, possuem um elemento dualístico, a partir do qual começam e, em seguida, se dirigem a esse não-dualismo. Judaísmo e islamismo são especialmente dualistas em suas escrituras; tendem a sempre ser dualistas e podem ser repletas de terríveis acusações a não-crentes e descrições de sua condenação e punição. Este é um estágio da religião que não devemos rejeitar e que as pessoas tem de atravessar. Os sufis dos séculos oito e nove, no Islam, foram além, direto para o não-dualismo; o não-dualismo sufi é exatamente similar ao não-dualismo indiano, assim como o não-dualismo de Mestre Eckhart, de nossa tradição cristã. Toda religião, através de sua tradição mística, vai além do dualismo, para o não-dual. Este é o nosso chamado, ir além do dualismo.

A meditação é o único caminho para se ir além do dualismo. Quando a mente cessa, você descobre o princípio unificador por trás de tudo. Esta é nossa verdadeira esperança e nosso chamado. Isto é importante, e penso que no movimento da meditação Deus está nos conduzindo, e a humanidade através de nós pela meditação. É um chamado que percorre todo o mundo. Por toda parte pessoas estão se encontrando, descobrindo esta carência e atendendo-a nos diferentes caminhos da meditação.

Estamos todos sendo chamados a abrir nossos corações ao mistério não-dual da Santíssima Trindade. É a comunhão de amor. É a Realidade não-dual. É o nosso chamado hoje.

Om  (Om)
Saha Nāvavatu, Saha Nau Bhunaktu (Possa Ele proteger-nos juntos - revelando conhecimento)
Saha Viryam Karavāvahai (Possamos obter vigor, juntos)
Tejasvināvadhitamastu (Que nosso estudo seja revigorante)
Mā Vidvishāvahai (Possamos nunca hostilizar um ao outro)
Om Śāntih Śāntih Śāntih (Om Paz Paz Paz)
Mantra do Katha e Śvetāshvatara Upanishads


Pe. Bede Griffiths, OSB*



Fonte: Comunidade Mundial para a Meditação Cristã
http://www.wccm.com.br/series-de-palestras/61-meditacao-e-a-nova-criacao-em-cristo/388-a-unidade-alem-da-dualidade
Fonte da Gravura: Tumblr



*Bede Griffiths foi um monge Beneditino, nascido na Inglaterra em 1906 e, educado em Oxford. Depois de 20 anos como monge na Inglaterra, ele foi para a Índia para encontrar “a outra metade de sua alma”. Esta palestra foi extraída do conjunto de palestras que ele proferiu no John Main Seminar de 1991. Essas palestras exploram a tradição da meditação cristã e relacionam-na com as grandes tradições orientais. Pe. Bede mostra como a jornada interior pode contribuir para a unidade espiritual. Ele faleceu na Índia em 1993. (http://www.bedegriffiths.com/biography.html).

RUMI - A PAIXÃO PELA UNIDADE


(Excertos)
Na rica tradição mística do islã, Rûmî tem despontado como uma de suas figuras mais luminosas. Como místico, revelou com grande intensidade poética os temas do amor e da unidade do ser humano com o mistério sempre maior de Deus. O objetivo deste artigo é situá-lo na tradição do sufismo e apresentar, de forma sintética, alguns traços de sua reflexão mística: a paixão pela unidade, o trajeto para a unidade, a evidência de Deus e a religião do amor.

O grande interesse suscitado pelo diálogo inter-religioso nos tempos atuais tem favorecido o processo de aproximação teórico e existencial de tradições religiosas distintas e de suas experiências místicas. Impõe-se com cada vez maior clareza a necessidade deste contato mais estreito, desta abertura à alteridade, como requisitos essenciais para uma justa avaliação das outras tradições religiosas. 

Na visão de uma autora que consagrou sua vida a estudar e a traduzir a extensa obra de Rûmî para o francês, Eva de Vitray-Meyerovitch, a mensagem desse místico traduz um radical universalismo: “uma mensagem de amor que retoma os valores mais essenciais do Cristianismo e do Islã, sem deles nada negar, acrescentando-lhes uma dimensão integralmente fraterna e ecumênica.”[1]

O Sufismo é o nome mais recorrente para designar a experiência mística do Islã, traduzindo uma “dimensão interior” muitas vezes desconhecida ou desapercebida da tradição islâmica. O termo Sufismo, tradução de tasawwuf, deriva-se da raiz suf, que em árabe significa lã. De fato, na experiência primordial do sufismo, os primeiros ascetas revestiam-se com o hábito de lã, de modo semelhante aos eremitas cristãos, em sinal de penitência e destacamento do mundo. A ideia que predomina é a da “pureza”(safa), sendo o sufi aquele “puro de coração” em razão da presença envolvente do Bem Amado. Na busca de uma definição mais sintética, G.C. Anawati indicou que a mística sufi constitui um “método sistemático de união íntima, experimental, com Deus.”[2] Não há, porém, uma definição que esgote a complexidade do fenômeno.

Rûmî ilustrou de forma admirável tal complexidade através da parábola do elefante, descrita no terceiro livro do Masnavi: “Alguns hindus estavam exibindo um elefante num quarto escuro, e muita gente se reuniu para vê-lo. Mas como o quarto estava escuro demais para que eles pudessem ver o elefante, todos procuravam senti-lo com as mãos, para ter uma ideia de como ele era. Um apalpou sua tromba e declarou que o animal parecia um cano d´água; outro apalpou sua orelha, e disse que devia ser um leque enorme; outro sua perna, e pensou que fosse uma coluna; outro apalpou seu dorso e declarou que o animal devia ser como um grande trono. De acordo com a parte que apalpava, cada um deu uma descrição diferente do animal. Um, por assim dizer, chamou-o de Dal e outro de Alif.”

Como indicou Rûmî, a compreensão do Sufismo exige uma capacidade particular de apreensão da realidade que escapa ao olhar sensorial comum. Assim como a palma da mão, na parábola descrita, não consegue captar a totalidade do elefante, da mesma forma o olho da “percepção sensorial” é incapaz de alcançar a complexidade do Real.

O Sufismo remonta às origens do Islã e durante todo o seu desenvolvimento esteve radicalmente ligado à tradição islâmica. Em nenhum momento afirmou-se como ruptura com a fé corânica, evoluindo sempre na linha de sua interiorização e aprofundamento. Isto não significa a ausência de outras influências judaico-cristãs que marcavam o meio onde o Islamismo veio se firmar, ou de outras tradições religiosas que o Islã, em seu processo de expansão, encontrou pelo caminho. Os autores falam, sobretudo, do influxo cristão, neoplatônico, gnóstico e budista. Apesar de sua profunda ligação corânica, os místicos sufis encontraram em sua trajetória uma viva oposição da ortodoxia islâmica, que resistiu ao singular sentido alegórico atribuído pelos sufis aos ritos e cerimônias tradicionais, bem como à sua peculiar interpretação do Corão. A tensão entre esoterismo e exoterismo não é exclusiva da tradição sufi, mas comum às diversas tradições religiosas. Há, sempre, a presença de dificuldades, tensões e mesmo conflitos abertos entre os guardiães da religião oficial, que se pretendem portadores da exclusiva gramática das normas, dogmas e práticas consideradas legítimas, e aqueles que buscam a dinâmica de uma religião interior, que não se detém diante das diferenças, na busca do mistério sempre maior de Deus.

Não há místico sufi tão conhecido no Ocidente como Djalâl-od-Din Rûmî. Na visão de Erich Fromm, Rûmî foi “um dos maiores humanistas e místicos muçulmanos”, antecipando em duzentos anos traços essenciais do humanismo renascentista, como as ideias da tolerância religiosa e da força criativa fundamental do amor.[3]

O decisivo acontecimento espiritual em sua vida foi, porém, o encontro com o velho nativo Shams ud-Din de Tabriz, no ano de 1244. O encontro de Rûmî com o dervixe errante, que tinha cerca de 60 anos, provocou a grande transformação em sua vida. Há inúmeras versões sobre o encontro destes “dois oceanos espirituais”, e todas elas indicam a experiência de estupefação mútua que fez brotar uma das mais espetaculares e ricas histórias de união mística. Segundo José Jorge de Carvalho, esta profunda união entre dois indivíduos é singular e única, “algo extremamente raro, em que duas pessoas conseguiram penetrar as esferas recônditas da realidade extra-sensorial e extra-racional, e ver juntos a mesma dimensão, o mesmo espaço, a mesma fração da verdade absoluta.” Da inspiração desse encontro nasceu uma das obras mais vastas e impressionantes de poesia mística, as famosas odes místicas de Rûmî, o Divan de Shams de Tabriz, inteiramente consagrado à experiência do amor, que, para além de sua manifestação terrestre, expressa a hipóstase do amor divino.

Na linha da tradição mística sufi, há em Rûmî uma visceral paixão pela unidade. Esta “consciência do Uno” foi saudada por Hegel em sua enciclopédia filosófica. Ele destacou no místico a presença “da unidade da alma com o Uno”, enquanto “elevação sobre o finito e o vulgar, uma transfiguração da naturalidade e da espiritualidade, na qual o que há de extrínseco e transitório na natureza imediata, como no espírito empírico e terreno é absorvido.” Na base da compreensão metafísica de Rûmî está a convicção na unidade da existência (wahdat-e-wudjud). Uma unidade provisoriamente rompida na dinâmica existencial da individualidade pelo golpe da separação do espírito humano de sua origem fundamental. Há uma nostalgia permanente do ser humano, que anseia retornar à fonte e à união com o Amado. A nostalgia manifesta-se como amor, que não é senão uma expressão da “sede metafísica” pela unidade. Há em Rûmî um desejo imenso de Deus, uma paixão pela unidade que “passa além das fronteiras. Da razão e da loucura. Do inferno e do paraíso. Das confissões. Tamanha a sua paixão pela unidade que muitos confundiram-no - erro formidável - com um panteísta. Deus em sua Unidade é o tesouro escondido, mais perto do humano do que sua própria veia jugular. Mais próximo do humano que o vínculo que o une à sua própria alma. Para Rûmî, a única e exclusiva realidade é a unidade. A multiplicidade não passa de aparência e ilusão. Não pode haver senão unidade da existência. O véu que, para ele, separa o ser humano de sua origem é o “sentimento de ser um existente independente e abandonado no seio de uma multiplicidade que não é senão ilusória.” O “Ser Absoluto” (al wujûd al-mutlaq) é, para ele, a essência de tudo o que existe. O ser de Deus é único em seu princípio e múltiplo em sua forma de manifestação. A Realidade é simultaneamente una e fonte de toda existência limitada, que é sempre existência derivada. Para Ibn´Arabi, Deus é sempre a Unidade que está por trás da multiplicidade e das aparências. Na perspectiva de Rûmî, o horizonte do ser humano está para além do “eu” e do “nós”. Não existe “eu” e nem “nós” no mundo da Unidade.

Seguindo uma lógica presente na tradição islâmica, Rûmî assinala que é necessário “morrer antes de morrer” (M IV, 2271,2272 e 1372). Trata-se de condição fundamental para o renascimento do ser espiritual (M V, 551). Não há como se achegar ao Bem Amado, senão renunciando à própria vida. “Diante de Deus, não pode haver dois “Eu”. Tu dizes “Eu” e Ele diz “Eu”; ou bem tu morres diante d´Ele ou então Ele que morre diante de ti, para que toda a dualidade desapareça. Mas Ele não pode morrer nem objetivamente, nem subjetivamente. Pois, Ele é o ser vivo que não morre jamais.” O morrer antes de morrer corresponde para Rûmî à morte mística, que deve anteceder à morte física. Trata-se da morte do “pequeno eu.” Este estado de aniquilação do eu e sua absorção no Amado é o ideal místico de fanâ (MI, 3054). Esta absorção no Amado faz com que a condição efêmera do ser humano transforme-se em realidade eterna, que não morre jamais. Rûmî serve-se do exemplo da fragilidade da gota d´água, sempre ameaçada pela impetuosidade do vento e da terra. Ela só se protege do risco de sua dispersão quando é lançada no mar, que é a sua fonte. No mar, ela está protegida do calor do sol, do vento e da terra. No mar, sua forma exterior desaparece, mas sua essência permanece inalterada (M IV, 2615-2618). Para que se dê o acesso ao coração purificado, que possibilita esta experiência de despojamento radical, é necessário, segundo Rûmî, captar o sentido espiritual, uma razão iluminada pela luz divina. Não há outro caminho possível para se alcançar a iluminação, a inspiração divina e a visão mística.

Segundo a compreensão de Rûmî, o acesso ao sentido espiritual ocorre quando supera-se o limite da percepção sensorial. O olho do sentido exterior é como a palma da mão que não consegue captar a totalidade, como sinalizado na história do elefante no quarto escuro. Trata-se de uma percepção limitada, pois ainda muito agarrada à “concha terrena”; ela só consegue vislumbrar a espuma que escamoteia a realidade do mar (M V, 1030-1031). O sentido espiritual escapa à percepção superficial que só enxerga as formas. As formas são tímidas e frágeis diante da realidade. Esta tensão entre as formas e a realidade percorrerá toda a reflexão de Rûmî no Masnavi, e servirá igualmente para o seu firme questionamento da escolástica muçulmana (kalam). Em sua visão não é possível um conhecimento fundado na negação da divina providência. Tal conhecimento não gera senão perplexidade. O verdadeiro conhecimento deve estar permanentemente sob o influxo de Deus (M IV, 3728-3729). Da mesma forma, a ciência dos exotéricos é vivamente questionada por Rûmî. São aqueles que estão limitados às formas exteriores e que se encontram desprovidos de espírito para penetrar na dinâmica da realidade (MI, 1016-1021). Só aqueles que aprenderam a discernir as coisas do espírito, que se encontram habitados pelo conhecimento intuitivo de Deus (ma´rifa), conseguem ver para além das formas e da espuma (M VI, 1460-1461).

De acordo com a visão de Rûmî, o conhecimento de Deus não é obtido pelo intelecto ou pelo conhecimento discursivo (ilm), mas unicamente pela iluminação divina. E o órgão essencial que faculta esta acolhida é o coração (qalb). Não o órgão de carne e sangue, mas o órgão espiritual e sutil da percepção mística. Na tradição sufi, o coração é o “receptáculo cristalino e proteico capaz de refletir todas as epifanias ou atributos de Deus: a inesgotável, infinita manifestação da Divindade na morada da união.”

A contemplação do mistério de Deus possibilitada pela dinâmica do coração exige, antes, a purificação e dilatação deste órgão. Não há como contemplar a morada do totalmente outro quando o coração está obstruído. Só depois de purificado de toda imperfeição é que este órgão passa a refletir o conteúdo profundo do mistério divino (M I, 1394-1396). Trata-se de um processo longo e complexo, que não se realiza sem a presença de um guia (pir). Um passo importante para esta purificação é a busca da humildade e do desapego, o constante trabalho de retirada da ferrugem que impede ao coração refletir de forma viva o mistério que nele habita.

Segundo Rûmî, a estação mais importante no caminho místico e no trajeto para a Unidade é a pobreza (faqr). Não necessariamente a pobreza de um mendicante ordinário, mas sobretudo o estado no qual o sujeito vive a experiência radical de estar absolutamente pobre diante do Criador ou, como diz o Corão, “pobre de Deus” (35,15).

Em toda a obra de Rûmî perpassa a imagem do Deus misericordioso e omnicompassivo (Al-Rahman), de absoluta proximidade (tashbih). Deus, para os muçulmanos, se manifesta sob dois aspectos: da majestade (jalâl) e da beleza (jamâl). Há em Rûmî um acento nesta última dimensão, que pontua o dado da proximidade, do Deus como Amado. Não é possível escapar de sua misericórdia. Deus sempre acompanha o ser humano. Na visão de Rûmî, Deus está presente no íntimo do coração: é o sempre-já-aí.

Nada mais importante para Rûmî do que a gratuidade do amor a Deus, um amor que é auto-finalizado; um amor que existe não em função de um temor ou de uma esperança, mas que encontra em Deus mesmo sua razão de ser (MIII, 1910-1913; 4595-4599). O amor é um dos temas mais importantes na obra de Rûmî, objeto de seus poemas mais ricos e singelos. Para ele, o amor é “o astrolábio dos mistérios de Deus.” Para Rûmî, o amor é expressão da nostalgia da separação original. Trata-se de uma sede metafísica que anseia pela unidade. O amor humano é etapa e ponte que traduz uma caminhada mais complexa em direção ao Amado. O amor é, para Rûmî, um “estado de alma” que conduz ao horizonte do amor divino e aponta o caminho. Daí sua convicção da importância da religião do amor como a mais sublime forma de todas as religiões. O amor é “o único lugar, o único ponto capaz de religar o eu do ser humano e o mundo da unidade, que é o mundo da divindade.” Rûmî foi sempre considerado um dos místicos mais abertos para a dinâmica inter-religiosa. Trata-se de um verdadeiro apóstolo da abertura ao outro.

Na compreensão de Rûmî, a verdadeira religião distingue-se muitas vezes da religião meramente formal. Como habita no coração do crente verdadeiro, ela traduz um determinado estado da mente, marcado pela humildade e pela dinâmica compassiva. A experiência religiosa autêntica é aquela que bebeu na fonte de um mundo que está para além das palavras, que conformou um novo sentimento, traduzido numa paisagem distinta. Para Rûmî, “as palavras santas não permanecem nos corações cegos e obstinados, mas retornam à luz de onde procederam” (MII, 316). 

Não constitui tarefa simples traduzir a reflexão mística de Rûmî. Toda a sua obra vem desenvolvida com linguagem resguardada pela presença de um simbolismo complexo, de contos esotéricos e significação escondida. A linguagem esotérica, como lembra Pablo Beneíto, é uma linguagem técnica pontuada pela inspiração mística. Trata-se de uma linguagem alusiva, distinta do comentário exotérico do significado explícito. Ela “desempenha uma função fundamental e constitui um procedimento insubstituível no processo de transmissão de experiência imediata ou compreensão interna”. Foram inúmeros anos dedicados por Rûmî à redação de sua extensa obra poética, que culmina no grandioso Masnavi. Muitos de seus poemas foram compostos em estado de grande inspiração mística, e foram ditados, cantados e recitados para os seus discípulos que os guardavam na memória para depois serem escritos.

Quando se toma como referência sua obra fundamental, o Masnavi, que foi talvez o ponto de apoio mais importante na redação deste artigo, percebe-se que ele apresenta uma síntese pessoal reelaborada de quase todas as teorias místicas conhecidas no séc. XIII. Mas de uma tal complexidade que dificulta, quando não impossibilita, a edificação teórica de um sistema místico propriamente dito a partir de suas narrações e parábolas. As noções esotéricas estão pontuadas nos dois níveis, simbólico e explicativo, presentes no Masnavi. A recorrente linguagem simbólica e alusiva serve também como instrumento para resguardar os mistérios da Realidade suprema.

Um dos traços que mais impressionam na leitura de sua obra é a forma peculiar e única com a qual ele expressa a presença do fiel diante do mistério inesgotável de Deus, do fiel que, mesmo desconhecendo a chave de acesso à sua presença, coloca-se à sua sombra: “Um dia, um homem chegou diante de uma árvore. Viu folhas, ramos, frutos estranhos. A cada um perguntou o que eram essas árvores e esses frutos. Nenhum jardineiro o compreendeu, nem sabia o nome da árvore, nem lhe pôde indicar o que ela poderia ser. O homem disse a si mesmo: Se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram frescos e verdes. Vou então me colocar a sua sombra.”

A presença deste mistério na vida de Rûmî é tão impressionante que só o silêncio é capaz de dar conta da lâmina de seu conteúdo. Muitos de seus poemas terminam conclamando o silêncio: Silêncio!

Toda a sua obra é um convite para captar este mundo impermeável às palavras, um convite para lavar as mãos e o rosto “nas águas deste lugar.” É no aprendizado deste lugar que se firma a alma dos nobres, dos que buscam a pureza, dos que conseguem captar e tornar esplêndidos cada som dissonante. Ao contrário dos exotéricos, “comedores de argila”, os sufis verdadeiros buscam ardentemente a essência. Para Rûmî, é a alma nobre que perdura. As palavras são acidentes efêmeros, que passam. “As preces rituais, a guerra santa, os jejuns não perdurarão, mas sim o espírito (que habita a pessoa iluminada).” (MV, 249)


Prof. Faustino Teixeira [*]


Notas:

[*] Professor da pós-graduação em Ciência da Religião (UFJF).
[1] Eva de VITRAY-MEYEROVITCH. Islã, l´autre visage. Paris: Albin Michel, 1995, pp. 69-70. A autora sublinha a presença de inúmeros pontos comuns entre Rûmî e São Francisco de Assis, que morreu quando Rûmî tinha 19 anos. Ver também: Id. Rûmî e o sufismo. São Paulo: ECE, 1990, pp. 23 e 54-57; José Jorge de CARVALHO. O encontro de novas e velhas religiões. In: Alberto MOREIRA & Renée ZICMAN (Orgs.). Misticismo e novas religiões. Petrópolis: Vozes/USF/IFAN, 1994, p. 92.
[2] G.C. ANAWATI & Louis GARDET. Mystique musulmane: aspects et tendances - expériences et techniques. 4 ed. Paris: J.Vrin, 1986, p. 13.
[3] Eric FROMM. Prefácio. In: A. Reza ARASTEH. Rumi, el persa, el sufi. Barcelona: Paidos Orientalia, 1977, pp. 12-13.




Fonte: Revista de Estudos da Religião Nº 4 / 2003 / pp. 20-41
http://www.pucsp.br/rever/rv4_2003/p_teixeira.pdf (ver texto completo)
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