Envolta em mistérios de acesso antigamente restrito apenas aos homens, o termo Cabala já teve má reputação na língua portuguesa, vinculado a conceitos de maquinação secreta e até à magia negra. Mas ela nada mais é do que uma corrente mística da religião judaica que busca levar o homem para mais perto de Deus.
A Cabala é uma das correntes místicas do judaísmo. O termo significa literalmente recepção e, por consequência, tradição. O primeiro cabalista seria o patriarca Abraham, que viu as maravilhas da existência humana, perguntou questões ao Criador e os mundos mais elevados foram revelados a ele. O conhecimento que ele adquiriu e o método que ele usou para aprende-lo foram passados para seus descendentes e a Cabala foi sendo transmitida oralmente durante séculos.
O primeiro trabalho sobre a Cabala, o Sefer Yetzirah, o Livro da Criação, é atribuído a Abraham. Este texto básico da Cabala explica os 32 caminhos da sabedoria que foram utilizados no processo da Criação. Estes caminhos estão incluídos nas dez Sefirot, as luzes divinas, que agem como canais criativos e conscientes da criação, e nas 22 letras do alfabeto hebraico. As letras são os alicerces, os vasos, e incluem todas as combinações e permutações através das quais Deus criou o mundo com palavras. A Cabala ensina que as palavras, combinações e permutações de letras são vasos através dos quais o processo criativo se realiza.
A Cabala procura essencialmente descobrir a origem de tudo o que existe: o mundo, o ser humano, a vida, a morte, e elevar o ser humano espiritualmente para ele poder entrar em contato com Deus", explica o rabino Yehuda Busquila, da Congregação Israelita Paulista.
Sete gerações depois de Abraham, no Monte Sinai, a Torá - nome pelos qual a Bíblia é chamada pelos judeus - foi entregue em duas dimensões a Moisés: a parte pública, que nós conhecemos, com o corpo de leis que expressam as vontades de Deus e que compõem o Pentateuco, e uma parte secreta, com a compreensão dos segredos da criação.
Desenvolvimento
Ao longo dos séculos a busca pela Cabala seguiu um movimento pendular, partindo de períodos de grande interesse e produção cabalística para períodos em que ela ficou totalmente restrita a pequenos círculos de estudo.
De acordo com a tradição, o primeiro grande período de sistematização deste conhecimento ocorreu durante o século III, quando o livro Zohar ("Livro do Esplendor") teria sido escrito pelo rabi Shimon Bar Yochai (150 D.C -230 D.C), o Rashbi, pupilo do rabi Akiva ( 40 D.C - 160 C.E). Bar Yochai e quatro outros foram os únicos a sobreviverem ao massacre de 24 mil discípulos de Rabi Akiva, sendo autorizado por ele e pelo rabi Yehuda Bem Baba a ensinar a Cabala às gerações futuras. Após a prisão de rabi Akiva, o Rashbi escapou com seu filho, Eliezer. Ambos ficaram escondidos em uma caverna por 13 anos, de onde saíram com o Zohar, livro escrito em forma de parábolas e em aramaico, língua que era falada nos tempos bíblicos e que seria o lado oculto do hebraico.
O Zohar explica que o desenvolvimento humano é dividido em 6000 anos, durante o qual as almas seguem um contínuo processo de desenvolvimento a cada geração. No fim do processo, todas as almas alcançam a posição chamada "o fim da correção", o mais alto nível de espiritualidade e completude.
Shimon Bar Yohai foi um dos grandes de sua geração. Ele escreveu e interpretou muitos temas cabalistas e é conhecidos até hoje. Entretanto, de acordo com a lenda, o Zohar desapareceu depois dele, sendo mantido escondido em uma caverna nas vizinhanças de Safed em Israel. Achado depois pelos árabes que residiam na área, o Zohar foi reconhecido por um cabalista de Safed, que havia comprado um peixe embrulhado naquele papel de incalculável valor no mercado. Depois de comprar o resto daquela páginas preciosas, ele as reuniu em um volume. Somente no século XIII é que estes escritos vieram à luz, publicados pelo Rabino Moisés de Leon, de Castela, durante o florescimento da Cabala na Penísula Ibérica. Até então o estudo do Zohar vinha sendo conduzido secretamente por pequenos grupos. Hoje em dia, estudos mais acadêmicos, como o de Gershom Sholem, apontam que o autor de fato do Zohar teria sido o próprio De Leon.
Outro grande momento da Cabala foi o período de Ari, o rabi Yitzhak Luria. Nascido em Jerusalém, mas criado no Egito, ele trabalhava com comércio, mas devotou grande parte de seu tempo ao estudo da Cabala. Uma lenda conta que ele passou sete anos isolado na ilha da Roda no Nilo, onde além do Zohar estudou livros dos primeiros cabalistas e escritos de outro grande sábio de sua geração, o Rabi Moshe Cordovero, o Ramak.
Em 1570 ele foi para Safed, em Israel. Bastaram somente dois anos, já que ele morreu em 1572, aos 38, para que Luria tivesse sua grandiosidade reconhecida a ponto de todos os estudiosos de Safed terem ido estudar com ele. Exemplos de seus escritos famosos são "A Árvore da Vida", "O Portal das Intenções", "O Portal da Reencarnação". Em seus estudos, Ari desenvolveu o primeiro mito cabalista conhecido, que compreende o primeiro auto-desenvolvimento de Deus, a criação do universo e da humanidade, as origens do mal e, o mais importante, um método para reparar o mal (tikkun) e restaurar a unidade original de Deus e da criação. No fim, ele instituiu um sistema elaborado de meditação e práticas rituais para conectar a humanidade com o divino. Alguns dos hinos e práticas da escola de Luria são usados até hoje. Através da larga publicação do trabalho de seus discípulos, a Cabala de Ari se espalhou por todo o mundo judaico, tornando-se não somente a forma mais aceita da Cabala, mas de todo o Judaísmo, na medida em que isso é possível.
"A religião judaica incorporou muito da parte mística", explica o rabino Adrian Godfrid, da Comunidade Shalom, de São Paulo. Segundo ele, o serviço de sexta-feira à noite, realizado em todas as sinagogas do mundo, o chamado Kabbalah Shabat, foi instituído pelos místicos de Safed. Até mesmo um dos hinos mais conhecidos deste ritual, o Leha Dodi, foi concebido por Shlomo Alevi, um destes místicos, durante um transe.
No século XIII, foi a vez do movimento Hassídico inspirar nova vida no misticismo judaico, tornando-o acessível para uma larga audiência. O Hassidismo vem da palavra hebraica hasid, que quer dizer pio, e é baseado nos ensinamentos do curandeiro judeu polonês Israel Bem Eliezer (1700-1760), conhecido como Baal Shem Tov. Ele ganhou o respeito dos judeus pobres e oprimidos socialmente por insistir que a melhor maneira de alcançar Deus não era através do estudo avançado do Talmud ou das complicadas fórmulas de meditação de Luria, mas pela prática simples e sincera da devoção na reza, associada a alegres canções, danças e histórias. Embora ele não fosse rabino, Shem Tov conseguiu atrair muitos rabinos para seu círculo. Após duas gerações, centenas de rabinos elaboraram os ensinamentos de Shem Tov, atraindo mais discípulos e fundando "dinastias" de sucessão, assim promovendo o nascimento do movimento hassídico. Na época do auge deste movimento, quase todo grande rabino era um cabalista. Com o passar dos anos, o hassidismo foi se tornado exatamente o contrário, esquecendo-se de sua fonte original e tornando-se praticamente indistinguível do judaísmo tradicional. Junto a esta descaracterização da essência do hassidismo, a crescente secularização do judaísmo contribuiu novamente para isolar o misticismo judaico, cujo interesse veio a renascer novamente no final do século XX.
Quem pode estudar
Antigamente, havia o conceito de que as pessoas não poderiam estudar a Cabala, de que era um segredo perigoso, e de que ela só poderia ser estudada a partir dos 40 anos.
"A mística tem a ver com aspectos muito profundos da personalidade e esta tradição de estudar a partir dos 40 anos existe porque teoricamente a pessoa estará mais estruturada psicologicamente para poder entender outras coisas, um pouco mais ocultas", explica o rabino Adrian Godfrid. O fundamental, entretanto, para os estudiosos judeus, é que o interessado na Cabala tenha passado por todos os outros níveis de leitura da Torá e todos os outros clássicos do judaísmo como o Talmud. "Se subentende que a pessoa nesta idade já passou muitos anos estudando os outros níveis, pois se você não passou por isso, você não entende nada".
Para o rabino Yehuda Busquila, a Cabala deve ser estudada por todos aqueles que tiverem condições de estudá-la. "Seus ensinamentos deveriam ser abertos a todo mundo, porque eles encerram coisas que a gente não sabe e nos trazem respostas que a gente não encontra no mundo lógico, no mundo da razão, pois a Cabala é especulativa, não é normativa". Para ele, até se chegar à Cabala o interessado também deve passar por algumas etapas. "É como dar alimento para uma criança. Primeiro você dá a mama, depois mamadeira, sopinha, um purezinho. Até ele mastigar um bife vai levar algum tempo. É a mesma coisa com o estudo da Cabala".
Palavras e Números
Um interpretador cristão da Cabala, o português D. Francisco Manoel de Mello, escreveu em seu "Tratado da Ciência da Cabala" que a língua hebraica é de origem celeste, pois nela falou Deus aos Patriarcas e ela serviu de instrumento aos divinos oráculos da antiguidade. Daí se infere que as palavras, letras e números representativos dessa linguagem contêm virtudes intrínsecas, próprias exclusivamente dela.
Na Cabala hebraica realmente promove-se a linguagem, de simples meio de comunicação entre os homens, em instrumento essencial da cosmogonia: "Disse Deus: haja luz - e houve luz", escreve o Gênesis. A criação, pois, efetivou-se através do poder místico da palavra.
De acordo com o rabino Yehuda Busquila, para os cabalistas todos nós somos números, já que todas as letras judaicas têm um correspondente numérico
"As letras do alfabeto hebraico têm um valor numérico e todos nós temos um nome que é composto com estas letras. Somos números e o nome que nos é atribuído, quando nascemos, tem alguma coisa da essência divina, já que todas as letras fazem parte do nome de Deus", diz Busquila. A numerologia da Cabala é baseada na interpretação do significados dos nomes e como todas as criaturas têm nome, e portanto são números, ela pode tratar de todos os fenômenos que existem no universo.
Cada uma das 22 letras do alfabeto hebraico possui um valor numérico que varia de 1 a 400. O cálculo da equivalência numérica das letras, palavras e frases propicia a descoberta de inter-relações de diferentes conceitos e exploração de inter-relacionamento entre palavras e idéias. Para a Cabala, as equivalências numéricas não são coincidências. Desde que o mundo foi criado através da "palavra" divina, cada letra representa uma diferente força criativa. Portanto, a equivalência numérica de duas palavras revela uma conexão interna entre o potencial criativo de cada uma.
Para o rabino Adrian Godfrid, a numerologia é um tipo de interpretação, "uma ferramenta hermenêutica". Para ele, ela não é o centro e não pode ser vista isolada do contexto judaico. "Faz sentido entender que o valor numérico das letras fala alguma coisa no contexto judaico, mas quando você faz isso para ver que número vai dar na Sena, aí você está fazendo um negócio que não tem nada a ver com isso. O contexto foi violentado".
Sefirot - atributos, virtudes, qualidades divinas
A Cabala trata dos nomes de Deus e da força inserida nas letras que o compõem. Seu objetivo é elevar o ser humano espiritualmente para ele poder entrar em conexão com Deus, e para isso ele deve ultrapassar algumas etapas, as Sefirot, um diagrama que representa os atributos, as virtudes e qualidades divinas e que pode ser entendido como um canal para o divino. De acordo com Gershom Sholem, no "Livro da Criação", do qual foi originalmente tomado, Sefirot simplesmente significava números, mas com o gradual desenvolvimento da terminologia mística passou a ser traduzido aproximadamente por "esferas" ou "regiões", mudando sua acepção até que passou a significar a emergência de poderes, virtudes e emanações divinas.
Na Cabala, Deus é chamado de Ayin, que significa "Nada", em hebraico. Por estar além da existência, Deus é o infinito, pois incorpora tudo que existe e que existirá. Tudo que importa vem de Ayin Sof e volta no fim para ele que é o nada absoluto. Apesar de Ayin Sof em si mesmo ser além de qualquer compreensão, ele se faz conhecer através das dez Sefirot.
O ato divino é visualizado simbolicamente com a idéia de que do Ayin Sof, ou da Luz Infinita que envolve o vazio, emana um feixe de luz que penetra da periferia em direção ao centro. Este feixe de vontade divina se manifesta em dez etapas de emanação. Desde a Idade Média, estes dez estágios são chamados de Sefirot e expressam os atributos divinos.
A estrutura do diagrama da Sefirot, que algumas interpretações chamam de Árvore da Vida, contém todas as leis que governam a existência, porque revela o processo universal de equilíbrio entre o alto e o baixo, os princípios ativos (direita) e os passivos (esquerda). O influxo divino pode ser traçado em detalhes ao longo dos caminhos entre as Sefirot (designados pelas 22 letras do alfabeto judaico) e através das tríades que os ligam uns aos outros. As cores aqui distinguem entre as tríades funcionais ou laterais (vermelho ativo e azul passivo) e as tríades centrais, que denotam níveis de consciência e vontade (verde, violeta, e amarelo).
Os quatro grandes círculos representam os níveis dentro de uma única Árvore, que corresponde às quatro dimensões da realidade ou simbolicamente à raiz, tronco, galhos e frutos ou às quatro letras do mais especial nome de Deus, YHVH. Estes círculos também foram vistos como níveis ou degraus. O primeiro, associado com o fogo, está perto da Coroa (Keter) e é visto como pura Vontade (chamado de Deus). O segundo, associado com o ar, simboliza o Intelecto (a criação Divina). O terceiro nível, associado com a água, é visto como uma expressão da Emoção (a formação Divina). O quarto e último, associado com a Terra, fala da ação, das implementações práticas de tudo que houve antes (ação Divina). Apesar de ser altamente complexa, a Árvore da Vida é uma imagem da Unidade Divina.
Para a Cabala, o fluxo divino através das Sefirot para os quatro mundos da humanidade não é o único caminho. Ou seja, não são somente as ações divinas que têm impacto sobre nós; nossas ações individuais também repercutem cosmicamente e ajudam na reparação do Universo, pois Deus precisa do universo e da humanidade para ser verdadeiramente Deus, para alcançar todo seu potencial divino. Se Deus não tivesse necessidade do universo, porque ele o teria criado? - perguntam os cabalistas.
DÉBORA LERRER
Fonte: http://www.espiritualismo.hostmach.com.br/cabala.htm
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal
Nenhum comentário:
Postar um comentário