segunda-feira, 6 de outubro de 2014

DESENVOLVIMENTO INTERIOR E CONFLITOS (INDIVIDUALIDADE E PERSONALIDADE)

(...) pode dar a impressão de que é o Eu que evolui. Por isso, faz-se mister esclarecer que, sendo uma centelha do Absoluto, o Eu já é perfeito e completo em si mesmo e não tem necessidade de evoluir, de progredir. Na realidade, o que evolui, o que cresce é o Seu aspecto consciência.

(...) a parte do Eu que encarna, que se encerra nos veículos da personalidade, evolui ao longo de um processo de crescimento e despertar lento e progressivo, até chegar ao auto-reconhecer.

A energia divina do Eu autolimita-se ao imergir na matéria, mas não se dispersa, não se anula. A muito custo, inconscientemente, ela tende a retornar à origem de onde veio e, remontando através da matéria dos diversos planos, "transforma-a em consciência".

É exatamente isso que o querem dizer as palavras de Sri Aurobindo: "A evolução é uma lenta transformação da energia em consciência."

A personalidade, que é o conjunto de três veículos (físico-etérico, emotivo e mental), constitui simbolicamente a matriz, a Mãe, onde a semente do Eu cresce e progride, dela recebendo seu alimento.

Todavia, a evolução da consciência é muito lenta e gradativa, e não pode acontecer de maneira rápida e regular enquanto a personalidade também não estiver formada, organizada e integrada. Na verdade, os veículos da personalidade também passam por um amadurecimento e uma evolução que ocorrem paralelamente, e às vezes independentemente, a partir do desenvolvimento da consciência do Eu.

Esse desenvolvimento é muito moroso e inconsciente nas primeiras encarnações e, de início, revela-se apenas como consciência do eu, como autoconsciência, porém no seu aspecto mais negativo de separatividade, egoísmo, fechamento... Além disso, há uma completa identificação dessa consciência do eu com os veículos pessoais e não raro com o corpo físico.

Portanto, a evolução do homem em suas primeiras vidas é sobretudo uma formação, uma organização e qualificação de corpos pessoais que de um estado inicial bruto, amorfo, não-organizado, confuso, passam a adquirir qualidades, faculdades, sensibilidades e se delineiam e organizam em decorrência das várias experiências e eventos da vida e dos contatos com o mundo exterior.

Essa evolução dos corpos pessoais, entretanto, por acontecer enquanto o Eu, o verdadeiro Eu, ainda está latente e inconsciente, pode levar ao desenvolvimento de características e tendências negativas, ou seja, permeadas de egoísmo, orgulho, ambição, desejo. A personalidade, ou seja, o conjunto dos três corpos, pode chegar a um grau relativamente avançado de formação e integração, só que sob a orientação, não do eu verdadeiro, do Eu, mas de um "eu" falso e construído que é essencialmente uma força, quase uma entidade independente. É como se houvesse uma idade da personalidade e uma idade da Alma, entendendo-se por Alma a consciência do Eu imanente.

Na verdade, existem pessoas dotadas de uma personalidade forte, eficiente e organizada, que têm êxito na vida mas são imaturas do ponto de vista interior e espiritual. Isso acontece sobretudo com as pessoas extrovertidas, cuja energia vital está toda voltada para fora, para o mundo objetivo, em busca de experiências, de ação, de conhecimento da realidade exterior.

Às vezes pode acontecer o oposto. Pode ocorrer um grande desenvolvimento interior, uma sensibilidade ao mundo subjetivo e abertura de consciência decorrentes de uma ou de mais vidas dedicadas ao misticismo, à interioridade, à introversão, ao recolhimento, e ao mesmo tempo uma personalidade carente, deficitária, não-desenvolvida e bruta. É o caso dos introvertidos.

A meta é o desenvolvimento global do homem, tanto do ponto de vista da consciência do Eu quanto do ponto de vista dos veículos pessoais, uma vez que o Eu precisa de uma personalidade bem-formada e desenvolvida para poder utilizá-la plenamente.

Tal meta, contudo, não é alcançada por um caminho direto e fácil, mas por uma trilha tortuosa, difícil, indireta, semeada de lutas, crises, perigos, ilusões e condicionamentos a serem superados. Por essa razão, é preciso saber quais são as eventuais fases desse desenvolvimento interior e distinguir entre as diversas manifestações da nossa complexa natureza humana para compreender quais delas provêm do Eu, ou seja, da nossa individualidade, e quais, ao contrário, se originam na personalidade.

Desenvolvemo-nos com base em duas diretrizes paralelas, que muitas vezes se alternam: uma objetiva, exterior, outra subjetiva, interior; devemos tomar consciência de que vivemos no dualismo entre o nosso verdadeiro ser, o eu real, e o eu pessoal, que, embora construído e ilusório, é forte e organizado.

Nas primeiras vidas esse dualismo é inconsciente, porque o eu real, o Eu, é de todo latente e entorpecido; aos poucos, entretanto, ele se torna cada vez mais manifesto e consciente, e tem início um período de alternâncias durante o qual prevalece ora a personalidade, ora a individualidade, até que essas duas forças se confrontam e principia, então, o conflito decisivo.

Muito embora esse dualismo tenha sido criado ilusoriamente pela nossa identificação com os instrumentos pessoais, é puramente teórico afirmar que somos "unos" porque na prática agimos como se fôssemos "dois" e todo o nosso caminho evolutivo, até o momento da completa identificação com o Eu, é marcado pelo dualismo, pelo conflito e atrito entre duas forças opostas: a da personalidade e a da individualidade.

Ainda assim esse dilacerante dualismo é inevitável e, aliás, necessário, uma vez que "antes de poder unir é preciso dividir", como diz Alan Watts, ou seja, é preciso passar pela experiência da divisão, do conflito, da separação, para então poder reencontrar conscientemente a unidade.

Para se alcançar mais facilmente essa meta, é útil conhecer a constituição interior do homem, começar a entender a natureza das energias que agem e circulam nele e aprender a distinguir entre os impulsos que procedem do Eu, e aquilo que, ao contrário, é uma manifestação alterada, distorcida, falseada de um dos veículos da personalidade.

O conhecimento das características, qualidades e funções específicas de cada um dos corpos pessoais, embora de início seja apenas teórico, nos ajudará a desenvolver gradativamente uma das qualidades mais importantes para o nosso crescimento interior: o discernimento. Essa qualidade capacita o homem a não cair nas ilusões, nas falsas identificações, a saber distinguir entre o que é pessoal, factício, falso (ou seja, proveniente do eu pessoal), e o que é real (ou seja, proveniente do Eu). Permite-lhe desenvolver a sensibilidade e a intuição para entender a diferença entre a verdadeira e a falsa consciência. 

O desenvolvimento da capacidade de discernir e sua utilização constituem a primeira fase do lento processo de reunificação interior, da superação do dualismo aparente entre o Eu e os seus veículos, e corresponde à necessidade de "dividir" antes de reunir. Na realidade, o discernimento não divide em dois a "essência fundamental", que é a mesma tanto na individualidade quanto na personalidade. Ele distingue o verdadeiro do falso, o autêntico do ilusório, e ajuda a reencontrar a "essência" em meio às infra-estruturas, às falsas construções, aos hábitos e automatismos, que não têm uma realidade e consistência efetivas.

Os veículos pessoais não são "falsos" em si mesmos, não são "impuros" em sua essência — são falsos e impuros na medida em que são condicionados e usados erroneamente.

"A impureza é um erro funcional", diz Sri Aurobindo. Devemos, pois, descobrir a verdadeira função de cada um dos veículos, para utilizar as suas energias na direção correta e fazer com que se tornem o que realmente são: instrumentos de expressão do Eu.

Cada um dos corpos da personalidade é um reflexo de um dos aspectos do Eu.

Segundo as doutrinas esotéricas, o Eu tem três aspectos:

Vontade (Atma);
Amor (Buddhi);
Inteligência Criativa (Manas).

Estes, por sua vez, correspondem e são o reflexo no microcosmo dos três aspectos da Divindade, presentes em todas as religiões, a saber:

Pai... Vontade... Atma;
Filho... Amor... Buddhi;
Espírito Santo... Inteligência Criativa... Manas.

Essa triplicidade divina do Uno reflete-se, portanto, no homem, conferindo ao Eu individual três aspectos, três qualidades que, por sua vez, se refletem na personalidade, dando vida a três corpos, ou veículos de expressão, como segue:

Corpo mental ... Vontade (1º aspecto)... Pai;
Corpo astral (ou emotivo) ... Amor (2º aspecto)... Filho;
Corpo físico-etérico... Inteligência Criativa (3º aspecto)... Espírito Santo.

Através da evolução gradativa da consciência, o homem deve descobrir essas ligações e reconduzir os seus veículos à sua função correta. Deve compreender que construiu inconscientemente na personalidade automatismos, hábitos e "erros funcionais" por não ter consciência de sua verdadeira natureza e identificou-se com um "eu" ilusório, criando em si um dualismo e uma separação entre a individualidade ainda latente e a personalidade de superfície.

O trabalho é longo, difícil e cheio de obstáculos, porque a personalidade, embora feita de hábitos, automatismos e condicionamentos, se estabilizou e quase se consolidou sobre esses erros, tornando-se uma entidade separada, conquanto ilusória, que resiste continuamente às tentativas de mudar de direção.

Urge trabalhar com constância e persistência e ir a fundo para erradicar esses hábitos, desmascarar os condicionamentos, dispersar as névoas das ilusões e reconduzir gradativamente as energias dos veículos à sua verdadeira função.

Assim, como primeiro passo para tomar-nos senhores das energias dos corpos pessoais, para entender as leis que delas resultam, suas peculiaridades, e começar a desmantelar a construção falsa e cristalizada que nos limita, que nos impede de ser nós mesmos e de realizar a verdadeira tarefa dos instrumentos de expressão do Eu, é necessário conhecer minuciosamente a estrutura oculta do homem.




Dra. Angela Maria la Sala Bàta





Fonte: do livro "O Eu e seus Veículos de Expressão", cap. 2, Ed. Pensamento, 1991
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal

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