Todas as atividades humanas podem ser vistas como uma interação entre dois fatores contrários, mas igualmente essenciais: a visão e a rotina repetitiva. A visão é o elemento criativo na atividade, cuja presença assegura que as condições estabelecidas, as quais nos pressionam desde o passado, dêem ainda margem a uma abertura para o futuro, uma liberdade para discernir os fins significativos e descobrir caminhos mais eficientes para atingir estes fins. A rotina repetitiva, ao contrário, provê o elemento conservador na atividade. É o princípio que assegura a persistência do passado no presente, e que possibilita às conquistas bem sucedidas no presente serem preservadas intactas e serem transmitidas fielmente para o futuro.
Apesar de atraírem para direções opostas - uma em direção à mudança, e a outra em direção à estabilidade - visão e rotina se mesclam em variadas formas, e dentro de todo curso de ação ambas participam em alguma medida. Para que qualquer ação em particular seja ao mesmo tempo significativa e efetiva, a conquista de um equilíbrio saudável entre as duas é necessária. Quando um fator prevalece às custas do outro, as consequências são invariavelmente indesejáveis. Se ficarmos presos em um ciclo repetitivo de trabalho que nos priva de nossa liberdade de inquirir e entender, logo nos tornaremos atolados, totalmente envoltos pelas correntes da rotina. Se, por outro lado, nos envolvemos em ideais elevados, mas carecemos da disciplina para implementá-los, eventualmente nos encontramos voando em sonhos, ou exaurindo nossas energias em objetivos frívolos. Somente quando as rotinas habituais recebem um influxo de visão que venha de dentro é que elas se tornam um trampolim para a descoberta, ao invés de rotinas destruidoras. E somente quando a visão inspirada dá nascimento a um curso de ações que podem ser repetidas é que nós podemos trazer nossos ideais da esfera etérea de nossa imaginação para o sombrio reino dos fatos. Foi necessário somente um flash de gênio para Michelangelo conceber a figura de Davi, invisível no bloco de pedra sem forma, mas foram precisos anos de treinamento anterior e incontáveis batidas do martelo e do cinzel para construir o milagre que nos legou esta obra de arte.
Estas reflexões sobre o relacionamento entre a visão e a rotina aplicam-se com igual validade na prática do caminho buddhista. Como todas as outras atividades humanas, seguir o caminho da cessação do sofrimento requer que a compreensão inteligente das novas facetas da realidade seja fundida com a disciplina paciente e estabilizadora da repetição. O fator da visão entra no caminho sob o título de “compreensão correta”, como o entendimento das verdades não-distorcidas relacionadas à nossa existência, e como a penetração continuada destas mesmas verdades, através do aprofundamento da contemplação e da reflexão. O fator da repetição entra no caminho como a árdua tarefa imposta pela própria prática: a necessidade de seguir modos específicos de treinamento, e cultivá-los diligentemente na sequência prescrita até que eles tenham o seu fruto. O curso do crescimento espiritual ao longo do caminho buddhista pode ser de fato concebido como uma sucessão alternada de duas fases: numa, o elemento da visão é predominante; na outra, o elemento da rotina. É um flash de visão que abre o nosso olho interior para o significado essencial do Dhamma; o treinamento gradual que torna a nossa compreensão mais segura e que estimula a ter ainda mais visão, a qual impulsiona a prática em direção à sua culminação no conhecimento final. Mesmo que a ênfase se alterne, estando ora numa ora noutra fase, o sucesso derradeiro no desenvolvimento do caminho sempre termina com uma visão equilibrada entre a visão e a rotina, de tal modo que cada uma dá sua contribuição máxima.
Entretanto, pelo fato de nossas mentes estarem condicionadas a se fixar sobre o novo e o diferente, nossa prática pode adquirir uma ênfase de um só lado, sobre a visão, às custas da rotina repetitiva. Ficamos, assim, excitados pelas expectativas concernentes aos estágios do caminho muito além de nosso alcance, enquanto que, ao mesmo tempo, tendemos a negligenciar os estágios mais baixos - os quais se encontram exatamente sob nossos pés. Adotar tal atitude, entretanto, é esquecer o fato crucial de que a visão sempre opera sobre a rotina estabelecida previamente, e deve por sua vez dar surgimento a novos padrões de rotina adequados à conquista de seu objetivo desejado. De modo que, se pretendermos acabar com a separação que existe entre o ideal e o fato - entre o objetivo de nosso esforço e a experiência vivida de nosso dia-a-dia - é necessário prestarmos uma maior atenção à tarefa da repetição. Cada pensamento sadio, cada intenção pura, cada esforço em treinar a mente representa um potencial para o crescimento ao longo do Nobre Caminho Óctuplo. Mas, para que se transformem de mero potencial em um poder ativo que leve ao fim do sofrimento, as passageiras formações mentais positivas devem ser repetidas, incentivadas e cultivadas até se tornarem qualidades duradouras de nosso ser. Apesar de tênues na sua individualidade, quando estas forças são consolidadas pela sua repetição, elas adquirem uma força que é invencível.
A chave para o desenvolvimento ao longo do caminho buddhista é a rotina repetitiva guiada pela visão inspirada. É o insight que leva à liberdade final - a paz e a pureza de uma mente liberta - que nos levanta e nos impele a superar nossos limites. É pela repetição - o cultivo metódico de práticas sadias - que conseguimos acabar com a distância que nos separa do nosso objetivo e nos aproximamos cada vez mais da libertação.
Venerável Bhikkhu Bodhi
Fonte: capítulo do livro “Pensando o Buddhismo”
Edições Nalanda, 2000
"Visão e Rotina" também foi publicado na Newsletter nº 3, Inverno de 1985
Tradução: Equipe Nalanda por Ricardo Sasaki
Fonte da Gravura: Tumblr.com
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