“Atravessa em silêncio, sério, o povo que vibra em êxtase. Percebe nesta recepção a sua superficialidade. Visa camadas mais profundas. Quer algo muito diferente.”
No primeiro dia da Semana Santa, o Cristo entra na Cidade Santa. Apresenta-se-nos uma imagem irrelevante. Vemo-lo atravessar as portas da cidade montado em um burro, seguido por seus fiéis. Mas, como se fora o próprio Deus da primavera*, sua entrada provoca repentinamente um êxtase na alma da multidão. É como se algo do antigo êxtase solar das festas pagãs, da primavera se apoderasse dos homens: acende-se uma faísca. Ao cortar ramos de palmeira, o povo renova um hábito muito antigo, volta-se, às festividades em honra ao sol no início da primavera, comuns entre os povos pré-cristãos.
Pois a palmeira sempre foi considerada a árvore e o símbolo do sol, do sol natural que no céu primaveril desenvolve uma força tão nova. O povo enfeita o caminho com símbolos solares. Será ele talvez realmente o alto amigo e senhor do sol, anunciado aos homens como o grande rei da luz? Deverá ser quebrado o encanto do significado espiritual original da cidade de Jerusalém, que abrigava, na montanha de Sion, um dos mais antigos templos do Sol, antes que o templo de Salomão, na montanha da Lua, superasse tudo em importância? Ressurgirá a época de Melquisedeque, o grande iniciado do rito solar? Parece mesmo que o Cristo encontrará agora o acesso à Humanidade. O alto espírito solar já habita há três anos um corpo humano, já atravessou destinos humanos, terrenos. Manteve-se afastado, em silêncio. Se aparecia uma vez ou outra, encontrava incompreensão e inimizade por parte dos homens. Será diferente, agora? Será que o destino levara agora diretamente a uma grande salvação, em meio a jubiloso êxtase?
Não, estamos no inicio da mais séria semana da História da Humanidade. Os mesmos homens que espalham ramos de palmeira e irrompem extasiados em gritos de hosana, gritarão fanaticamente, alguns dias mais tarde, cheios de ódio: “Crucificai-o!”. Ao símbolo da vida, ramo de palmeira, virá se juntar o símbolo da morte, a cruz do Gólgota.
O próprio Cristo contribuiu para essa reviravolta. Atravessa em silêncio, sério, o povo que vibra em êxtase. Percebe nesta recepção a sua superficialidade. Visa camadas mais profundas. Quer algo muito diferente.
Em termos humanos poder-se-ia perguntar, por que Jesus não ficou na Galileia, sua terra, naquela época do ano em que justamente ao redor do Lago Genezaré eclodem os milagres de cores primaveris? Tivesse ficado na Galileia não teria morrido. Mas podemos igualmente perguntar por que o Cristo, sendo Deus**, não ficou nos mundos espirituais, nas esferas celestes? Não ficou nas bem-aventuradas alturas divinas. Deixou o céu e se fez homem. Realizou todo o sentido do seu ser através deste sacrifício, desta renúncia. Ao entrar em Jerusalém, sabendo exatamente que estava atirando a luva àqueles que tinham poder sobre ele, completava-se sua entrada no mundo terreno. No início da grave semana repete-se, ainda uma vez, em outro nível, aquilo que três anos antes significou o começo de sua vida terrena. Do mesmo modo que abandonara o céu, abandona agora a natureza paradisíaca da Galileia.
Quando ele desceu do céu a terra, os homens nada perceberam. João Batista, que prestou o auxílio sacerdotal àquela encarnação na existência terrena, apenas supunha o que estava acontecendo quando Jesus de Nazaré tornou-se portador e continente do Cristo. Mas, através do Homem, o fato foi percebido. Ressoou a palavra: “Este é meu filho amado”. Agora, no domingo de Ramos, nessa hora misteriosa, festivamente excitada, os homens o perceberam. À palavra que naquela ocasião ressoara apenas das alturas espirituais corresponde agora o “hosana” dos homens extasiados. Subitamente, os homens percebem, como em uma renovação instantânea da antiga clarividência, que não é apenas homem aquele que vem montado no burrinho. É como se a alma do povo se precipitasse para perceber o brilho irradiante, a aura solar que emana de Jesus de Nazaré. O ser divino do Cristo teve que se reter durante três anos, pois, se não fizesse, teria violentado os homens com sua força divina. Agora, no entanto, o fruto desta reserva é que o divino que se sacrificara, que se rebaixara entrando no humano, transforma-se em poderosa decisão volitiva. Primeiro, o divino ofuscava, escondia o humano na figura do Cristo. Agora, o humano arde em fogo divino. E é deste fogo de volição que parte a faísca que acende o entusiasmo da massa popular. A embriaguez de uma premonição primaveril se apodera do povo, mas este só sabe interpretar o fato politicamente.
O Cristo sabe melhor. Sabe que está trazendo algo à Cidade Santa, quintessência de toda a evolução pré-cristã da Humanidade: está introduzindo algo de totalmente diferente de tudo, até das maiores maravilhas que a Natureza terrena pode produzir. E uma semente de fogo que virá transformar o mundo pela base. A superfície bem pode estar agora concordando, excitada. Mas isto nada significa. Poucos dias depois veremos que a superfície pode imprecar tão bem quanto abençoar. Trata-se apenas de ondulações superficiais. A Natureza da terra em que penetrou o Cristo pelo batismo no Jordão só pode lhe dar, enfim, a morte. A cidade que grita “hosana” só pode finalmente crucificá-lo.
Salta a faísca, acende-se o fogo, mas o Cristo atravessa as ondas de entusiasmo sem alterar-se. Quer penetrar na camada mais profunda. Quantas maravilhas não nos doa o sol natural quando nasce de manhã e pare o dia! Mas o sol exterior, o sol antigo, relacionado apenas ao homem – ser natural, se põe todas as tardes. Após o solstício de verão, ele se afasta da terra, vem o outono e o inverno. O sol natural vem, mas vai, como a vida natural que sempre nasce e sempre morre. Às alegrias da infância segue-se sempre a dor da morte. Cada qual terá que morrer algum dia, por mais cheio de vida que tenha sido quando criança e quando jovem. O domingo de Ramos é o dia do velho sol. O domingo da Páscoa será o dia do novo sol. Este não é o sol natural, é o sol espiritual. Não se põe. É permanente. Pode até mesmo ser mais facilmente encontrado nas trevas de um destino grave, na miséria, na doença e na morte, do que no arrebatamento da alegria, da infantilidade despreocupada. O Cristo entra na velha Jerusalém. É domingo de Ramos. Mas ele traz para o mundo em ocaso, moribundo, a nova Jerusalém. Não acompanha a trilha primaveril do sol exterior. Por quê? Para acender, no mais íntimo da terra e da humanidade, o novo sol, o sol perene, fiel e onipotente. É este o caminho que vai do domingo de Ramos ao domingo da Páscoa, do velho ao novo sol.
Na história da entrada em Jerusalém reconhecemos o caráter falacioso de todos os estados extáticos. Todo entusiasmo apenas extático surge quando o homem obedece apenas à Natureza. É bom, sem dúvida, que sejamos capazes de vivenciar alegria e entusiasmo diante das imagens da primavera, no convívio com crianças, no encontro dos milagres da juventude e do amor. Certamente não gostaríamos de dispensar esse entusiasmo natural. Mas devemos saber e reconhecer que é perigoso confundi-lo com a própria vida. O entusiasmo apenas natural se origina, em realidade, do homem apenas corpóreo. Só em momentos ocasionais se ergue à altura do espírito. O verdadeiro entusiasmo, que persiste no “hosana” e não se transforma em “crucificai-o”, não se forma de baixo para cima, mas de cima para baixo, nasce quando o espiritual se enraíza no ser humano, quando a faísca divina se realiza e se encarna na terra.
Emil Bock
Fonte da Gravura e do Texto: Biblioteca Virtual da Antroposofia
http://www.antroposofy.com.br
Notas deste blog:
* Primavera no Hemisfério Norte.
** A essência crística é divina. Aqui não se refere a Jesus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário