domingo, 12 de julho de 2020

A CONSCIÊNCIA DE QUE EXISTIMOS


Tanto de nossa vida parece desvanecer da memória. Problemas que nos atormentam, ou prazeres que nos emocionam, planos que nos absorvem completamente, pesares inconsoláveis que pareciam fazer com que nossa vida tivesse chegado ao fim, todos são temperados pelo tempo. Existem outras experiências, frequentemente não tão emotivamente irresistíveis quando de sua ocorrência, que não se desvanecem. Recordamos essas epifanias de consciência pura de maneira mais profunda, porque se tornam parte de nós. Na maneira frequentemente modesta e quieta em que aconteceram, elas eliminaram algumas das camadas obscuras usuais e nos revelaram como realmente somos, quem somos realmente. Nesse despertar não houve nenhum trovão, nem manchetes místicas. Porém, foram novidades que não se dissiparam com a chegada dos jornais matutinos...

Recordo-me, por exemplo, que quando garoto, ao voltar da escola, frequentemente parava em frente à vitrine de uma loja em que havia selos filatélicos estrangeiros, que para mim à época eram irresistivelmente belos. Um dia, um amigo de família, mais velho, passando por ali, interrompeu meu olhar contemplativo extático para me cumprimentar. No dia seguinte, enquanto parado em frente à mesma vitrine, na minha volta para casa, a mesma pessoa passava e, brincando, perguntou-me se eu estivera ali parado desde o dia anterior. Algo indescritível mas fortemente familiar se acendeu dentro de mim, algo que está comigo até hoje: uma consciência do si-mesmo, ser tomado de surpresa mas sem medo, o conhecimento de que existimos no universo de outros assim como no nosso próprio. Qualquer que seja a maneira como venhamos a descrever esses momentos, e eles são muito comuns, pois pontuam o desenvolvimento de nossa consciência, eles são a prova que necessitamos, de que somos reais, que existimos. E, ao tempo em que essa prova tenha se aprofundado suficientemente em nós, começamos a encontrar o sentido da existência, como um desenvolvimento na santidade. [...]

São Bento dá um aviso a seus monges, no capítulo sobre “os instrumentos das boas obras”: não desejar ser chamado santo antes de realmente o ser. A ironia, é claro, é que ao tempo em que o indivíduo se torna realmente santo, ele não mais irá querer ser chamado santo. Ou qualquer coisa que o valha. Enquanto estivermos preocupados com a “honra” que as pessoas deveriam nos devotar, ou com que pensem e falem bem de nós, teremos um atestado de que ainda nos encontramos a uma boa distância...

Crescemos em santidade preocupando-nos com “a honra procedente daquele que exclusivamente é Deus”. Preocupar-se é amar, é se devotar. A honra que vem de Deus é a dignidade de nossa verdadeira natureza, nossa bondade essencial e inalienável, que nos torna a todos, afinal, merecedores do perdão...


Dom Laurence Freeman, OSB



Fonte: "Caríssimos amigos" - Leitura de 23/11/2008
WCCM International Newsletter, outubro de 2007, pp. 2-7
Tradução de Roldano Giuntoli
Via Comunidade Mundial para a Meditação Cristã - http://www.wccm.com.br/
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal

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