sexta-feira, 17 de julho de 2020

O SILÊNCIO - ANATMAN


[Um] motivo pelo qual o silêncio nos é tão perturbador [é este]: Assim que começamos a nos tornar silentes, experimentamos a relatividade de nossa mente comum cotidiana. Com essa mente medimos nossas coordenadas de espaço e de tempo, calculamos as probabilidades e contabilizamos nossos erros e acertos. Trata-se de um nível de consciência muito útil e importante. É um estado mental tão útil e familiar que facilmente acreditamos ser tudo o que somos: a totalidade de nossa mente, nosso verdadeiro eu, nossa inteira significação.

A vida, o amor e a morte frequentemente nos ensinam o contrário. Nos encontramos com o silêncio em muitas reviravoltas inesperadas da estrada da vida, em maneiras imprevisíveis, em pessoas improváveis. Sua saudação possui um efeito que é ao mesmo tempo emocionante, pleno de maravilhamento, ainda que frequentemente apavorante.

A cada momento nossos pensamentos, medos, fantasias, esperanças, raivas e atrações estão todos surgindo e desaparecendo. Nos identificamos automaticamente com esses estados, sejam eles passageiros ou compulsivamente recorrentes, sem pensar aquilo que estamos pensando. Quando o silêncio nos ensina o quão transitórios e, portanto, pouco confiáveis na verdade são esses estados, confrontamo-nos com o terrível questionamento de quem somos nós. No silêncio precisamos lutar contra a terrível possibilidade de nossa própria irrealidade.

O pensamento budista faz dessa experiência, denominada "anatman" ou, o “não ser”, um dos principais pilares de sabedoria em seu caminho de libertação do sofrimento e um de seus meios de iluminação essenciais. Incentiva-se o praticante budista a buscar essa experiência da transitoriedade interior e, em vez de fugir dela, mergulhar nela de cabeça, assim como o fizeram Meister Eckhart e os grandes místicos cristãos.

É compreensível que "anatman" seja a ideia budista que outros considerem a mais desafiadora. Quanto absurdo, quão terrível, quão sacrílego dizer que eu não existo. De fato, muito do antagonismo cristão ao "anatman" é infundado ou fundamentado em interpretação errônea. Não quer dizer que não existimos, mas que não existimos em autônoma independência, que é o tipo de existência que o ego gosta de imaginar que tem; o tipo de fantasia de ser Deus... Trata-se da arrogância que frequentemente ataca as pessoas religiosas.

Não existo independentemente, pois Deus é o fundamento de meu ser. À luz desse entendimento, lemos as palavras de Jesus no Novo Testamento, com percepção aprofundada: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e siga-me..., mas, o que perder a sua vida por causa de mim, a salvará.” (Lc 9, 23-24)

Caso, através do silêncio, possamos abraçar esta verdade do "anatman", faremos importantes descobertas acerca da natureza da consciência. Descobriremos que a consciência, a alma, é mais do que o fantástico sistema de julgamento, de cálculo e de computação do cérebro. Somos mais do que aquilo que pensamos. A meditação, [por exemplo], não é o que pensamos.


Dom Laurence Freeman, OSB



Fonte: "O Silêncio da Alma" - Leitura de 12/10/2008 (The Tablet: 10 de maio de 1997)
Tradução de Roldano Giuntoli
Comunidade Mundial de Meditação Cristã - www.wccm.com.br
Fonte da Gravura: Grev Kafi (the pseudonym of two symbolist painters, Evdokia Fidel'skaya and Grigoriy Kabachnyi, a married couple, that work in co-authorship) - http://www.grevkafi.org

Nenhum comentário:

Postar um comentário