sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

SEPARAÇÃO - A RELAÇÃO SUJEITO-OBJETO

Nosso problema básico como humanos é a relação sujeito-objeto. Quando ouvi pela primeira vez isso há muitos anos, parecia abstrato e irrelevante em minha vida. No entanto, toda nossa desarmonia e dificuldades vêm de não sabermos como lidar com a separação sujeito-objeto.

Em termos cotidianos, o mundo é dividido em sujeitos e objetos: eu vejo você, eu vou ao trabalho, eu sento na cadeira. Em cada um desses casos, considero a mim mesma como um sujeito se relacionando com um objeto: você, meu trabalho, a cadeira. Mas, intuitivamente, sabemos que não estamos separados do mundo e que a divisão sujeito-objeto é uma ilusão. Ganhar esse conhecimento intuitivo é o motivo de praticarmos.

Não entendendo a dualidade sujeito-objeto, vemos os objetos em nosso mundo como a fonte de nossos problemas: você é meu problema, meu trabalho é meu problema, minha cadeira é o problema (quando vejo a mim mesma como o problema, transformei-me eu mesma em um objeto).

Então nos afastamos dos objetos que percebemos como problemas e buscamos objetos que vemos como não-problemas. A partir desse ponto de vista, o mundo consiste em: eu e as coisas que me agradam ou desagradam.

Historicamente, a prática Zen e a maioria das outras disciplinas meditativas têm buscado resolver a dualidade sujeito-objeto esvaziando o objeto de todo conteúdo. Por exemplo, lidar com “Mu” ou os principais koans esvazia o objeto do condicionamento que anexamos a ele. Enquanto o objeto vai ficando cada vez mais transparente, somos um sujeito contemplando um objeto virtualmente vazio. Tal estado às vezes é chamado de samadhi. Envolve êxtase porque o objeto vazio não mais é um problema para nós. Quando chegamos a esse estado, a tendência é nos congratularmos com tal progresso realizado.

Mas esse estado de samadhi ainda é dualista. Quando chegamos aí, uma voz interior diz: “Deve ser isso!” ou “Agora realmente estou praticando bem!”. Um sujeito oculto permanece, observando um objeto virtualmente em branco, em algo que no final ainda é uma separação sujeito-objeto. Quando notamos essa separação, tentamos lidar com esse sujeito também, esvaziando seu conteúdo. Ao fazer isso, transformamos o sujeito em mais um objeto, com um sujeito agora mais sutil observando-o. Criamos um regressão infinita de sujeitos.

Tais estados de samadhi não são realmente precursores da iluminação, porque um sujeito sutilmente encoberto está separado do objeto virtualmente vazio. Quando voltamos para a vida cotidiana, o sentimento de êxtase dissipa e estamos de novo em um mundo de sujeitos e objetos. A prática e a vida não chegam juntas.

Uma prática mais clara não tenta se livrar do objeto, em vez disso, vê o objeto pelo que ele é. Vagarosamente aprendemos sobre ser ou vivenciar a ausência de qualquer sujeito ou objeto. Não eliminamos nada, mas sim unimos as coisas. Eu ainda existo, assim como você, mas quando sou apenas minha experiência de você, não me sinto separada de você. Sou una com você.

Esse tipo de prática é bem mais lenta, porque ao invés de concentrar em um objeto, trabalhamos com tudo em nossa vida. Tudo que perturba ou irrita (e, se formos honestos, isso inclui quase tudo) se torna material para prática. Trabalhar com tudo leva a uma prática que vive em cada segundo de nossa vida.

Quando a raiva surge, por exemplo, muita da tradicional prática Zen nos faria tentar apagar a raiva e concentrar em algo, como a respiração. Embora tenhamos colocado a raiva de lado, ela vai voltar sempre que formos criticados ou ameaçados de algum modo.

Diferentemente, nossa prática é nos tornarmos a própria raiva, vivenciá-la integralmente, sem separação ou rejeição. Quando trabalhamos desse modo, nossas vidas assentam. Devagar, aprendemos a nos relacionar com objetos problemáticos de modo diferente.

Nossas reações emocionais gradualmente vão se desgastando e sumindo; por exemplo, objetos que temíamos gradualmente perdem seu poder sobre nós, e podemos abordá-los mais prontamente. É fascinante ver essa mudança acontecendo; vejo isso nos outros e em mim mesma também. O processo nunca termina: no entanto ficamos cada vez mais despertos e livres.




Charlotte Joko Beck




Fonte: “Nothing Special”, loc. 1200
http://darma.info/
Fonte da Gravura: www.imageafter.com

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