“Temos à volta da Terra uma espécie de reflexo da luz do Cristo. O que é aqui refletido como Luz do Cristo, é o que o Cristo denomina, Espírito Santo. Tão verdadeiramente como a Terra inicia a sua evolução para o Sol através do evento do Gólgota também é verdade que a partir deste acontecimento a Terra começa a criar à sua volta um anel espiritual que mais tarde se tornará uma espécie de planeta ao seu redor. Estamos diante do ponto de partida de um Novo Sol em formação.” (Rudolf Steiner)
Estamos diante do sepulcro de José de Arimateia, no qual foi deitado o corpo do Crucificado. A atmosfera está pesada como chumbo, saturnina. Realiza-se o sentido do dia de Saturno. Sempre já fora a essência do dia de Saturno, que os fiéis da Velha Liga, obedecendo à rígida lei, se entregavam ao silêncio dos túmulos: hoje é o sábado dos sábados. Mas nos ocupa uma pergunta ansiosa. É como se um lutador tivesse penetrado em uma gruta escura a fim de subjugar no interior um monstro, um dragão. Voltará ele vitorioso?
No dia anterior, nas trevas do meio-dia, quando o Cristo inclinou a cabeça e morreu, rasgou-se a cortina no templo. Isto foi mais do que um efeito natural do terremoto. Abre-se a visão do aspecto interior do mundo. Apenas a noite ainda nos impede de ver. Mas, da escuridão saturnina desprendem-se imagens. Tênues luzes iluminam os arredores do sepulcro e clareiam o terreno em parábolas do supra terreno.
Reúnem-se imagens que já foram vistas nas últimas estações da via do mistério. Mesa e Cruz resumem como arqui-imagens aquilo que aconteceu nos dois últimos dias. Adiciona-se como terceira arqui-imagem a do sepulcro. É como se a atmosfera templária do Santíssimo, ante o qual rasgou a cortina, se ampliasse, se estendesse ao nosso mundo.
Desde os primeiros tempos, os sepulcros foram, ao mesmo tempo, os altares dos homens. Todo culto divino originou-se no culto aos mortos. Os homens da Terra iam aos túmulos quando queriam comunicar-se com os deuses. As almas dos mortos eram mediadoras entre os homens e os deuses. Como as almas dos mortos podiam ser encontradas perto dos túmulos, ali também encontravam-se os outros habitantes do mundo espiritual. Assim era em passado muito remoto, quando a morte ainda era irmã do sono e ainda não detinha o poder de aterrorizar de tal modo os homens como atualmente. Os homens, durante sua vida terrena, ainda não estavam tão desesperadamente presos à matéria do corpo terreno e, por isso, também não se separavam tão definitivamente do plano terreno após a morte. Havia ainda entre o mundo terreno e o espiritual um intercâmbio semelhante à inspiração e expiração. As almas dos mortos podiam reunir-se à beira dos túmulos com os que deixaram na Terra. A imortalidade, a presença das almas que viveram na Terra, ainda era perfeitamente sentida e não era posta em dúvida. Era o ar que os homens respiravam e do qual se asseguravam especialmente ao visitarem os túmulos e ao construírem sobre estes os seus templos.
No decorrer dos séculos, os homens se encarnaram cada vez mais profundamente. Quanto mais se ligavam a matéria terrena, tanto mais perdiam, para a vida post-mortem, a possibilidade de permanecerem ligados à Terra. Durante a vida na Terra ficavam presos à matéria, após a morte ficavam presos a uma esfera de sombras, de onde lhes era difícil aproximar-se dos homens na Terra. A fenda entre a Terra e o além se alargava cada vez mais, era cada vez mais intransponível. A esfera da vida após a morte transformou-se em prisão, como dizem as epístolas de Pedro no Novo Testamento. A humanidade corria o risco de perder a verdadeira imortalidade, a consciência que sobrevive à morte. Um encanto entorpecente se apoderou do reino dos mortos.
Quando os egípcios mumificavam seus mortos e oravam nas proximidades dos corpos embalsamados, apenas tentavam forçar a conservação do estado antigo, tentavam prender as almas aos restos cadavéricos, apesar da intransponibilidade cada vez maior daquele abismo. Mas não era possível evitar a fatalidade. Cada vez mais se instalou, nos séculos pré-cristãos, o terror diante do mundo dos mortos. O estremecer diante da esfera dos mortos preenchia o mundo grego. No Velho Testamento desaparece totalmente a ideia da imortalidade. Formou-se uma corrente religiosa isenta da certeza da imortalidade. A crença de que a vida se prolonga somente nos descendentes substitui a ideia da imortalidade.
Não obstante, nos séculos pré-cristãos as almas ainda não estavam tão presas ao corpo como atualmente. Em consequência, os homens que viviam na Terra sentiam claramente a trágica fatalidade da morte. Um peso oprimia a humanidade. Ainda se visitavam os túmulos, mas as almas dos mortos não vinham mais e os deuses permaneciam ausentes dos altares. O sentimento asfixiante da época pré-cristã era devido muito menos à miséria material do que à miséria interior. A Terra transformou-se em deserto que há muito tempo não recebia chuva. A morte, outrora irmã do sono, transformou-se em terror da humanidade. É este o fundo emocional da esperança cada vez mais ardente pela vinda do Messias, esperança que atravessa todos os povos da era pré-cristã.
Estamos agora entre a sexta-feira santa e a Páscoa. O corpo foi tirado da cruz e depositado no sepulcro. A humanidade não o percebeu, mas, misteriosamente, arqui-imagens, pensamentos divinos se entretecem aos acontecimentos. A Providência fez com que cruz e sepulcro se situassem em um local que há milênios já fora vivenciado como um ponto central da Terra. Entre Gólgota, a colina rochosa que se prolonga na massa rochosa lunar da montanha do templo, e o sepulcro, cujos arredores formam o início da paisagem cultivada do Monte Sion, havia outrora uma fenda primária na superfície terrestre. A antiga humanidade via nesse terrível abismo o túmulo de Adão. Foi aí que, pela primeira vez, a morte desceu sobre a humanidade. E, deste modo, desde os tempos mais remotos esta fenda, que corta em duas a face da cidade de Jerusalém, esteve ligada à ideia de ser a porta do Inferno. Neste local foi erguida ontem a cruz e está hoje o sepulcro.
Ao tentarmos assim penetrar no aspecto interior dos acontecimentos, parece-nos que mais uma vez é rasgada uma cortina, diante de outra esfera: o reino noturno dos mortos abre-se diante de nós, a esfera mais sagrada (o Santíssimo) na qual vivem as almas dos mortos que, no entanto, estão magicamente presas pelas forças da morte. Encontramos, então, uma luz inesperada na escuridão saturnina da esfera dos mortos. Agora existe ali alguém que não está dominado pela força mágica da morte e é livre de todo torpor. Ele atravessa a morte carregando a plena luz solar do seu gênio. E, desta maneira, enquanto na Terra reina o escuro sábado sepulcral, nasce o sol no reino dos mortos. É este o sentido da descida do Cristo ao inferno. No reino dos mortos nasce um reluzir de esperança. Afrouxa-se a força mágica da morte, porque a visão se abre sobre uma futura vitória da alma humana sobre o espectro terrível do reino dos mortos. Quando na Terra ainda era sábado, no reino dos mortos já era Páscoa. Antes que os homens da Terra percebessem algo da Páscoa, já a perceberam os mortos.
Como haverá de prosseguir o drama? Ainda não está decidida a questão se haverá Páscoa também no mundo da corporeidade terrena. Ocorrerá também no campo material a vitória sobre a morte? Vitória que já brilha no reino das almas?
A Terra moribunda, arriscada a perder totalmente a conexão com o céu, recebeu um remédio. Recebeu corpo e sangue do Cristo. Foram estas as primeiras partes da matéria terrestre totalmente impregnadas pelo espírito. São elas o germe de uma nova matéria transiluminada pelo espírito. O ser espiritual-anímico do Cristo acompanhou o corpo depositado no sepulcro de José de Arimateia como acompanhara o sangue cujas gotas molharam o Monte do Gólgota. Pela primeira vez ficou sem efeito o exílio para o além, pela morte.
Encontramo-nos em um ponto crucial da Providência. Todo o universo participa diretamente daquilo que acontece na cruz e no sepulcro. A comunhão através da qual a própria Terra absorve o remédio cósmico cresce incomensuravelmente. Já na sexta-feira santa, no momento da morte do Cristo, iniciam-se os terremotos, o último dos quais ainda faz estremecer a manhã da Páscoa. Durante o sábado não cessaram totalmente, embora as forças na natureza talvez se adaptassem ao silêncio sepulcral adequado ao dia. Embora possa ofender o cômodo raciocínio terreno, faz parte dos pontos culminantes cósmicos do drama do mistério do Gólgota aquilo que Rudolf Steiner transmitiu, como resultado da pesquisa espiritual, mas que pode ser comprovado também a partir do conhecimento dos segredos que repousam no solo de Jerusalém: reabriu a fenda original do Gólgota, que fora aterrada por Salomão. E, assim, a Terra inteira se transformou em sepulcro do Cristo. A Terra aceitou a hóstia que lhe foi oferecida, até mesmo fisicamente a aceitou em toda a profundeza. Ao pronunciarmos, com as palavras da nossa religião, os acontecimentos do sábado de Aleluia: “Ele foi enterrado no sepulcro da Terra”, tocamos de leve o aspecto cósmico do mistério do Gólgota. Novalis sabia disto e expressou poeticamente que, quem ofereceu à Terra o medicamento cósmico, não foi outro senão o próprio Cristo. O corpo do Cristo foi aparentemente sepultado por mãos humanas. Em verdade, ele se entregou livremente após a morte para a cura de toda a Terra:
“…Como Ele, movido somente pelo amor
Se nos entregou totalmente.
E se deitou no seio da Terra
Como pedra fundamental de uma Cidade de Deus”.
A comunhão cósmica do nosso planeta terreno ocorre na sexta-feira santa e no sábado de Aleluia, antes mesmo da vitória pascal completa. Eis porque o corpo fisicamente real e o sangue fisicamente real do homem Jesus de Nazaré foi o medicamento que a Terra recebeu. O fluxo sacramental que daí se derrama pela humanidade parte da Páscoa. Foi o erro do culto de relíquia medieval, nada mais do que uma relíquia de hábitos e crenças pré-cristãs, que induziu os homens a pensarem que sua vida cultural-sacramental dependia de restos físicos do corpo de Cristo. Os portadores do culto da Cristandade, tanto o catolicismo ocidental quanto o oriental, mantiveram com razão o velho princípio de construir os altares sempre em forma de túmulo. Mas foi um erro ater-se à prescrição de que no altar deveria haver sempre uma relíquia, fosse da própria vida terrena do Cristo, fosse de um santo a ele ligado. Esta ordem foi um retorno a tempos pré-cristãos em que só se podia cultivar a relação como mundo espiritual à beira dos túmulos, onde repousavam os restos terrenos dos mortos. A refutação de todo culto de relíquias é o Sepulcro Vazio. O sepulcro de José de Arimateia não continha resto algum do corpo de Cristo quando na manhã da Páscoa Pedro e João desceram na fenda escura.
O sepulcro vazio significa: Não olheis para o homem Jesus! Não estais diante do sepulcro de um grande e santo homem. Olhai para o Cristo! Ele é uma entidade cósmico-divina. Seu túmulo não é o sepulcro de José de Arimateia, mas toda a Terra. As verdadeiras relíquias não são quaisquer restos dos acontecimentos físicos, pois estes só poderiam captar o estado pré-pascal dos fatos do Gólgota. O significado da vitória pascal é que, doravante, o corpo espiritual do Cristo, tecido de luz, poderá reluzir em tudo o que é terreno. Pão e vinho, sendo o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue do Cristo, são o medicamento da nova vida conquistada através da vitória pascal. Neles, a homeopatia espiritual atravessa o mundo, tendo como portadores os homens ligados ao Cristo. A sabedoria do Cristianismo original em torno deste mistério, expresso, por exemplo, por Inácio de Antioquia, pode ser reconquistada em nossa época através do pensamento claro treinado pelas Ciências Naturais: pão e vinho são os medicamentos da imortalidade.
Os altares do sacramento renovado também têm a forma de um túmulo. E, quando as paróquias se reúnem em torno dos altares, sempre está presente o princípio do sábado da Aleluia. Somos os que esperam diante do santo túmulo. Sabemos que nosso altar não precisa abrigar relíquias. O medicamento está presente quando o Cristo está presente, no pão e no vinho. As arqui-imagens da mesa e do túmulo se interpenetram. E à mesa do Senhor podem novamente estar presentes os nossos mortos. Aqueles que atravessam a morte após terem se ligado intimamente em vida ao novo sacramento indubitavelmente saberão achar este Santo Sepulcro, mais facilmente até do que achar seus próprios túmulos. As almas não mantêm mais relação intensiva com os corpos de que se despojaram. Mas, quando nos reunimos em torno do altar, eles podem estar conosco e assim reforçar nosso relacionamento com o mundo espiritual. Os novos altares circundam-se com a mesma trama de arqui-imagens que envolvia o sepulcro nas redondezas das plantações do Monte Sion. Está sanado, aqui, o abismo entre este e aquele mundo e, invisivelmente, floresce o jardim pascal onde nossa alma, como Maria Madalena, pôde ver o Ressurreto como jardineiro de um novo mundo. De dentro para fora a escuridão saturnina é iluminada pelo sol pascal.
Emil Bock
Fonte do Texto e da Gravura:
Biblioteca Virtual da Antroposofia
http://www.antroposofy.com.br
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