Anotações de Martha Pires Ferreira* para palestra ao Grupo da Meditação Cristã
Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 2006.
Thomas Merton nasceu em Prades, em 31 de janeiro de 1915, sob o signo de Aquarius, no sul da França e viveu nos EUA. Morreu em Bancoc em 1968 para onde foi em viagem pregar retiro e fazer conferências. Para este monge beneditino, trapista, a meditação é uma profunda integração pessoal em Deus, numa escuta vigilante e cuidadosa “do coração”. É uma entrega total, sem palavras, do coração e em silêncio.
Thomas Merton em sua obra Poesia e Contemplação (1972) deixou-nos muitas páginas dedicadas às questões tão preciosas que são as reflexões sobre a meditação.
Toda a sua obra, em geral, desde a Montanha dos Sete Patamares, nos fala, essencialmente, da vida contemplativa, da vida silenciosa, da vida meditativa intelectualmente e em radical experiência interior. Thomas Merton foi um contemplativo por excelência.
A vida contemplativa é vida de meditação com ou sem palavras. Em comunhão com a vida ativa, a vida de oração passiva, é vida de extrema entrega silenciosa às grandes experiências do amor de Deus.
No final de sua vida, Thomas Merton viveu junto à natureza como eremita numa ermida, no meio do bosque do Mosteiro de Nossa Senhora de Gethsemani.
Merton faz pontuações muito sensíveis; para ele é inseparável a unidade do silêncio e da oração. Merton cita em Poesia e Contemplação como foi bem descrita pelo monge Isaac de Nínive esta visão da unidade: “Muitos procuram avidamente (esta unidade), porém só encontram os que permanecem em contínuo silêncio… Todo homem que se regozija com uma multidão de palavras, mesmo que diga coisas admiráveis, é vazio interiormente. Se amais a verdade, sede amante do silêncio. O silêncio como a luz do sol, vos iluminará em Deus e vos libertará dos fantasmas da ignorância. O silencio vos unirá ao próprio Deus…
“Acima de tudo, amai o silêncio; ele vos traz frutos que a palavra não pode descrever. No início, temos de esforçar-nos a ser silenciosos. Porém, nasce então algo que nos atrai ao silêncio. Possa o Senhor dar-nos uma experiência deste ‘algo’ que brota do silêncio. Se somente praticardes isso, uma luz indizível brilhará sobre vós como consequência (…) depois de algum tempo, certa doçura nasce no coração, deste exercício e o corpo é atraído, quase que à força, a permanecer em silêncio”.
Para Merton sem virtude (fortaleza), não pode haver verdadeira contemplação. Sem o trabalho da disciplina, não pode haver tranquilidade no amor.
E cita Pedro de Celles, beneditino do séc XII:
“Deus opera em nós enquanto repousamos n’Ele. Essa obra do Criador ultrapassa todo entendimento; repouso que é, em si, criativo. Pois, trabalho como esse excede, em sua tranquilidade, todo repouso. Este repouso, em seu efeito, brilha e irradia, sendo mais produtivo do que qualquer trabalho. Assim, deixemos esta ação, ou este repouso de nossa contemplação, ser modelada de maneira a reproduzir, ainda que em linhas apenas esboçadas e apegadas, um modelo (de trabalho e repouso em Deus)… Essas coisas não se realizam na sombra e na noite, mas durante o dia e na luz, do sol da justiça. Pois quem ronca na noite do vício não pode conhecer a luz da contemplação”.
Thomas Merton nos remete, também, a São Gregório Magno sobre a vida contemplativa:
“A vida contemplativa consiste em permanecer com toda a força da mente entregue ao amor de Deus e do próximo; repousando, porém, de todo movimento exterior e unindo-se unicamente ao desejo do Criador”.
Noutra passagem ele se refere ao contemplativo do séc. XIII, XIV, Ruysbroeck:
“O homem interior entra em si de maneira simples, acima de toda atividade e de todos os valores, a fim de aplicar-se a um simples olhar no amor de fruição. Ali, encontra Deus sem intermediário. E, da unidade de Deus, penetra nele o brilho de uma luz simples. Essa luz simples demonstra ser treva, nudez e ‘nada’. Nessa escuridão, o homem é envolvido e mergulha num estado sem categorias, no qual se perde. Assim desnudado, toda consideração e distração em relação às coisas lhe escapam e ele se vê penetrado por uma luz simples. Nesse nada, ele vê todas as obras como inúteis, pois se encontra submerso pela atividade do imenso amor de Deus e, pela sua frutífera inclinação de seu Espírito, torna-se um só espírito com Deus”.
Poesia e Contemplação é um convite à compreensão da meditação; a oração intelectual e a oração existencial. Nesta mesma obra Merton escreveu:
“A oração contemplativa é, de certo modo, simplesmente, a preferência pelo deserto, pelo vazio, pela pobreza. Alguém começa a conhecer o sentido da contemplação quando, intuitiva e espontaneamente, procura o caminho obscuro e desconhecido da aridez, de preferência a qualquer outro. O contemplativo é alguém que escolhe antes o não saber do que o saber. Antes não fruir do que fruir. Antes não ter provas de que Deus o ama. Aceita o amor de Deus na fé, num desafio a toda evidência aparente. Essa é a condição necessária – e uma condição muito paradoxal – para a experiência mística da realidade de Deus e de seu amor por nós. Somente quando somos capazes de ‘largar’ tudo o que há dentro de nós, todo desejo de ver, de saber, de provar e de experimentar a presença de Deus, é que nos tornamos realmente capazes de ter a experiência dessa presença com a convicção e realidade avassaladoras que revolucionam nossa existência inteira”.
“A contemplação cristã não é algo de esotérico e perigoso. É simplesmente a experiência de Deus dada a alguém já purificado pela humildade e a fé. É o ‘conhecimento’ de Deus na obscuridade do amor infuso” (…) “A contemplação infusa é um conhecimento quase experimental da bondade de Deus ‘saboreada’ e ‘possuída’ por meio de um contato vital nas profundezas de nosso ser. Por meio do amor infuso, nos é dado apreender, de maneira imediata, a própria substância de Deus”. Repousamos, então, na percepção obscura e profunda de sua presença e de sua ação transcendentes dentro do mais íntimo do nosso interior. Assim, nos entregamos inteiramente à obra de seu Espírito transcendente”.
Podemos seguir seu pensamento em Direções Espirituais e Meditação, publicado aqui no Brasil em 1962:
“A meditação é para os que não se satisfazem com um conhecimento meramente objetivo e conceitual em relação à vida, em relação a Deus – em relação a realidades de primeira importância. Querem entrar em contato íntimo com a própria verdade, com Deus. Querem experimentar as mais profundas realidades da vida, vivendo-a. (…) Não nos esqueçamos jamais de que o fecundo silêncio em que as palavras perdem seu poder de expansão, e os conceitos nos escapam, é, talvez, a mais perfeita meditação. (…) devemos regozijar-nos e repousar na noite luminosa da fé. Esse é um degrau mais alto de oração. A finalidade última da meditação deve ser uma comunhão mais íntima com Deus, não só no futuro, mas também aqui e agora.
E termina este livro fazendo eco: “Santa Teresa de Ávila acreditava ser impossível a alguém que se mantivesse fiel à prática da meditação vir a perder a sua alma”.
Em 1938, aos 23 anos, Thomas Merton conheceu, através de seu amigo Seymour, o monge Doutor Bramachari, originário da Índia, é o que relata em Montanha dos Sete Patamares (1947), onde faz referências a este monge:
“Eu buscava (…) e procurava um gênero de vida que tivesse Deus como centro, conforme a dele”. “Afinal, não deixava de ser um tanto irônico que eu me houvesse voltado, espontaneamente, para o oriente em minhas leituras e conhecesse um oriental. Ele nunca tentou explicar a crença religiosa da Índia”.
O interesse de Merton pelo misticismo da cultura oriental se deu a partir das leituras de Aldous Huxley, em especial, Meios e Fins. Antes de conhecer o monge Bramachari, Merton tinha particular sede de vida espiritual. Sua tese de conclusão na Universidade teve como título: A Natureza e a Arte em William Blake, um artista essencialmente místico. Para Merton a experiência artística, a mais alta, era de fato análoga à experiência mística.
Thomas Merton não se restringiu aos textos da Philokalia e às fórmulas hesicastas dos padres do Deserto, assim como a “Oração de Jesus”; procurou conhecer muitas técnicas de meditação das grandes tradições das culturas do Oriente. Em sua obra Reflexiones sobre Oriente – La filosofia oriental a la luz del misticismo occidental (textos de 1965 a 1968), nos relata sobre o taoísmo, o zen, o hinduísmo, o sufismo e as variantes do budismo.
Em 4 de novembro de 1968, em sua viagem à Índia, teve uma audiência com o monge do Budismo Tibetano, Sua Santidade Dalai Lama, e escreveu; “Toda a conversa versou sobre religião, filosofia e, especialmente, sobre os caminhos da meditação”. Dias depois, menos de um mês de sua morte, foi ao eremitério do Rimpoche Chatral:
“O maior Rimpoche que já conheci até hoje”. “Gostaria de estar mais com Chatral” (O Diário de Ásia, 1973). Depois de sua morte, em 10 de dezembro, Bancoc, as questões da meditação aparecem com presença constante em suas obras publicadas.
No ocidente a meditação, como experiência pelos cristãos, reiniciou-se, no mundo contemporâneo, provavelmente, através dos monges beneditinos, na França (outros?), com as aplicações práticas das disciplinas da Raja-Yoga à oração e à meditação. Isto se verifica nos textos da obra; O caminho do silêncio ou Yoga para cristãos, de J. M. Déchanet (3ª edição/1957) onde encontramos no capítulo “As fases da meditação silenciosa” a invocação “Veni, Domine. Vem, Senhor”. Obra que provavelmente Merton conheceu, e, o mesmo interesse se dando com as aberturas do Concílio Vaticano II. Verifica-se que somente no início dos anos 60 é que ele começa a escrever a série de trabalhos referentes ao Oriente. Nos anos 50 muitas obras sobre meditação oriental foram publicadas na França. Em 1953, L’hésychasme, Yoga chrétien, em Yoga, science de l’homme integral – Cahiers du Sud, Paris.
Nos anos 60, Merton fez contatos pessoais e profundos com o filósofo e sábio, do Japão, Daisetz Suzuki, mestre do Zen Budismo, e escreveu; Zen e as aves de rapina (1968). Antes, em 1961, escreveu Místicos e Mestres Zen, e, em 1965 A via de Chuang Tzu (o grande filósofo e poeta chinês), e Gandhi, a não violência. Vê-se o grande interesse pela sabedoria oriental.
Para Merton a contemplação passiva não exclui as atenções para com a vida ativa, muito pelo contrário, maior é o amor responsável e profundo para com o seu próximo, onde devem estar presentes as preocupações para com o mundo e suas complexidades. Thomas Merton lutou de forma veemente contra as guerras, a violência, os preconceitos raciais, religiosos e quaisquer outros (desde os finais dos anos 50 passou a ter bons entendimentos com protestantes, anglicanos, judeus e mesmo ateus), e, se indignava diante das injustiças sociais e da vergonhosa exploração e violência para com as classes oprimidas. Sua obra Sementes de Destruição, 1964, é um grito de desespero e de advertência profética diante da alienação e das perversidades do mundo moderno. Em Questões Abertas, 1960, sua expressão de amor ao próximo revela grande sensibilidade: “Onde não existe a possibilidade de um nível de vida decente, quando não há liberdade, justiça, educação na sociedade humana, como pode o Reino do amor ser nela edificado? (…). O Reino de Deus, não se compõe unicamente de grandes homens santos, é um organismo vivo, místico, constituído de homens comuns, com suas fraquezas, suas limitações, sua boa vontade, seus talentos, suas deficiências – tudo isso elevado e divinizado pelo Espírito Santo, de maneira a que o Cristo viva e se manifeste em cada um e em todos”.
Para Thomas Merton, por natureza, o contemplativo colabora efetiva e essencialmente com a humanização e a santificação do mundo, em silenciosa doação afetiva, em comunhão com o Mistério de Deus. Intenso era o seu contato com as manifestações da Natureza, em plena observação amorosa. A experiência da meditação contemplativa, para ele, é um dom de Deus de se estar sendo no mundo. É uma entrega radical em silêncio. Os contemplativos “participam da crise e da tragédia que assola o mundo, mas que eles veem e entendem de maneira inteiramente diferente do resto do mundo”. (…) “suas verdadeiras perspectivas são aquelas do Reino escatológico de Deus”. Merton sentia-se feliz por ser membro da raça humana, de ter no outro a humanidade de Jesus Cristo.
Thomas Merton foi meu mestre maior na compreensão do mistério da encarnação de Jesus Cristo. Merton nasceu na França, 31 de janeiro de 1915, já dito, e morreu, de maneira inusitada, em Bancoc, Índia, em 10 de dezembro de 1968. Descendente de pais anglo americanos escreveu mais de 70 livros sobre espiritualidade, poesia, justiça social, ensaios, religiões comparadas – Zen, Tao, Sufi. Foi ativista social ferrenho. Foi o primeiro monge no ocidente a travar diálogo com asiáticos como DT Suzuki, Dalai Lama e Thich Nhat Hanh.
Martha Pires Ferreira
* Martha é mais Maria, mística de pés descalços, artista plástica de alma irrequieta, contemplativa próxima do povo. Vive sua vocação eremítica nas ladeiras e ateliês do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Foi uma das precursoras na direção de grupos de leitura de Thomas Merton no Brasil.
Fonte: https://merton.org.br/
Fonte da Gravura: CNS/Thomas Merton Center na Universidade de Bellarmine
Nenhum comentário:
Postar um comentário