Nosso primeiro encontro com o Buddhismo nos confronta com um paradoxo. Intelectualmente, ele parece ser o deleite do livre pensador: sóbrio, realista, não dogmático, quase científico, em sua estrutura e em seu método. Mas, se entramos em contato íntimo com o Dhamma (Dharma) vivo, descobrimos logo que ele tem um outro lado que parece ser a antítese de todos os nossos pressupostos racionalistas. Ainda aqui não encontramos credos rígidos ou especulações aleatórias, mas não deixamos de encontrar ideais religiosos de renúncia, contemplação e devoção; um corpo de doutrinas lidando com temas que transcendem a percepção sensorial e o pensamento; e - talvez o que seja mais desconcertante - um programa de treinamento no qual a fé aparece como uma virtude cardeal e a dúvida como um obstáculo, barreira e grilhão.
Quando tentamos determinar nosso próprio relacionamento com o Dhamma, nos vemos desafiados a descobrir um sentido nessas duas faces aparentemente irreconciliáveis: a face empírica, voltada para o mundo, que nos diz para investigar e verificar as coisas por nós mesmos; e a face religiosa, voltada para o além, aconselhando-nos a dissipar nossas dúvidas e depositar a confiança no Mestre e no seu Ensinamento.
Um modo de resolver esse dilema é aceitar somente uma face do Dhamma como autêntica, rejeitando a outra como espúria ou supérflua. Assim, com o pietismo tradicional buddhista, podemos abraçar o lado religioso da fé e da devoção, mas nos afastar da visão de mundo mais realista e da tarefa da inquirição crítica; ou, com a apologética buddhista moderna, podemos exaltar o empirismo do Dhamma e a semelhança com a ciência, mas nos defrontarmos embaraçosamente com o lado religioso. Ainda assim, uma reflexão sobre os requisitos de uma espiritualidade buddhista genuína, torna claro que ambas as faces do Dhamma são igualmente autênticas, e que ambas devem ser levadas em consideração. Se fracassarmos em fazê-lo, não somente nos arriscamos a adotar uma visão parcial do ensinamento, mas nosso próprio envolvimento com o Dhamma será, provavelmente, dificultado por atitudes parciais e conflitantes.
O problema, entretanto, permanece: como integrar as duas faces do Dhamma sem cair em contradição? Sugerimos que a chave para alcançar essa reconciliação e assegurar assim a consistência interna de nossa própria perspectiva e prática repousa na consideração de dois pontos fundamentais: primeiro, o propósito condutor do Dhamma; segundo, a estratégia empregada para alcançar tal propósito. O propósito é a obtenção da libertação do sofrimento. O Dhamma não tem como objetivo a aquisição de informação fatual sobre o mundo, e assim, apesar de uma compatibilidade com a ciência, seus objetivos e preocupações são necessariamente diferentes daqueles da ciência. Primária e essencialmente, o Dhamma é um caminho de emancipação espiritual, de libertação da roda de nascimento, morte e sofrimento repetidos. Oferecido a nós como o meio insubstituível de libertação, o Dhamma não busca o mero assentimento intelectual, mas demanda uma resposta que deve ser totalmente religiosa. Ele nos chama do fundo do nosso ser; e de lá, ele desperta a fé, a devoção e o compromisso apropriados quando o objetivo final de nossa existência está em jogo.
Mas, para o Buddhismo, a fé e a devoção são somente incentivos que nos impelem a entrar e perseverar ao longo do caminho; elas não podem, por si mesmas, assegurar a libertação. A causa primária da prisão e do sofrimento – ensina-nos o Buddha - é a ignorância com relação à verdadeira natureza da existência; assim, na estratégia buddhista de libertação, o instrumento primário deve ser a sabedoria, o conhecimento e visão das coisas como elas realmente são. Investigação e inquirição crítica, calmas e descompromissadas, constituem o primeiro passo em direção à sabedoria, capacitando-nos a dissipar nossas dúvidas e ganhar uma compreensão conceptual das verdades das quais depende a nossa libertação. Mas a dúvida e o questionamento não podem continuar indefinidamente. Uma vez tendo decidido que o Dhamma será nosso veículo para a libertação espiritual, devemos embarcar nesse veículo, devemos deixar nossa hesitação para trás e entrar no curso do treinamento que nos levará da fé para a visão libertadora.
Para aqueles que se aproximam do Dhamma com o objetivo de gratificação intelectual ou emocional, inevitavelmente ele revelará duas faces, e uma delas permanecerá sempre uma incógnita. Mas se estivermos preparados para nos aproximar do Dhamma segundo seus próprios termos, como um caminho de libertação do sofrimento, não haverá, de modo algum, duas faces. Ao contrário, veremos o que estava lá desde o começo: a face única do Dhamma, a qual, como qualquer outra face, apresenta dois lados complementares.
Bhikkhu Bodhi
Fonte: Capítulo do livro “Pensando o Buddhismo”, do Venerável Bhikkhu Bodhi
Tradução: Equipe Nalanda - Edições Nalanda, 2000 - http://edicoesnalanda.cjb.net/
Este artigo apareceu na Newsletter n. 2, outono de 1985. A tradução foi de Ricardo Sasaki.
Fonte da Gravura: http://www.good-will.ch/postcards_es.html
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