A filosofia do futuro será, com toda a certeza, uma filosofia científica, baseada sobre conhecimentos positivos e guiada, em suas deduções e em suas hipóteses, pelo espírito científico. É nesse ponto que encontramos uma verdade sem dúvida banal, mas cuja proclamação em altas vozes se nos impõe, como decorrência dos ataques audaciosos de uma certa escola.
Com muita propriedade, o Sr. Berthelot exprimiu o que devia ser essa filosofia, que ele chama de ciência ideal [i]:
“Aquém, como além da cadeia científica, o espírito humano incessantemente concebe novas ligações; no terreno do que é por ele ignorado, vê-se conduzido a construir e a imaginar, graças a uma força invencível, até que haja remontado às causas primeiras...
“Essas realidades ocultas, essas causas primeiras são vinculadas aos fatos científicos, de modo fatal, e o espírito humano – que assim procede – reunindo o todo, forma um conjunto, um sistema que abraça a universalidade das coisas materiais e morais...
“A fim de construir a ciência ideal, existe apenas um meio: o da aplicação de todas as ordens de fatos que possamos alcançar à solução dos problemas que essa ciência nos proponha... Nesse comenos, cada ciência contribuirá com os mais generalizados resultados...
“Devemos confessar que a verdade não poderia ser atingida pela ciência ideal com a mesma facilidade e certeza com que o seria pela ciência positiva...
“Com efeito, aquela não se acha inteiramente formada, como a ciência positiva, por uma trama contínua de fatos encadeados com o auxílio de relações certas e demonstráveis. As noções gerais às quais chega cada ciência em particular são disjuntas e separadas umas das outras, não só dentro de uma mesma ciência como de uma para outra. Para reuni-las e com elas formar um tecido contínuo, será mister recorrer aos “tenteios” e à imaginação, bem como preencher os vazios e prolongar as linhas...
“Desse modo, enquanto a ciência positiva é para sempre e definitivamente constituída, a ciência ideal varia e variará sempre, incessantemente.”
A filosofia, portanto, não se há de separar do método científico, ainda quando vá além dos fatos. Avançará sempre, com muita prudência, do conhecido ao desconhecido, não admitindo senão as deduções perfeitamente lógicas e racionais; no terreno das hipóteses, não criará senão as que sejam rigorosamente necessárias e apenas lhes conferirá caráter provisório. Não hesitará em sacrificar as hipóteses tornadas insuficientes ou reconhecidas em contradição com um só fato que esteja bem estabelecido.
Sendo a ciência indefinidamente progressiva, a filosofia científica assimilar-lhe-á esse característico, sendo, por conseguinte, variável.
Igualmente, verificamos que, decorrido menos de meio século, o caráter geral da filosofia científica sofreu transformações radicais; e isso é facilmente observável pelo prodigioso vôo de emancipação das ciências modernas.
O monismo naturalista surgiu a partir do momento em que o materialismo puro ingressou em estágio de maior avanço.
O próprio monismo encontra-se na iminência de sofrer uma evolução capital, graças ao recente desenvolvimento da psicologia, devendo, então, desaguar numa interpretação racional do universo e da vida; satisfação plena, tanto do ponto de vista idealista quanto do moral.
O materialismo puro aparecia como se houvesse encontrado sólida base científica, cujas raízes estariam enterradas nas grandes descobertas das ciências naturais e na teoria transformista. Tudo parecia ter explicação natural na evolução progressiva da matéria, conjugando, por uma transição insensível, as formas inferiores da vida e da inteligência às formas superiores.
Uma vez que já se achava exaustivamente provado que existia uma estreita correlação entre a extensão da consciência e o desenvolvimento dos centros nervosos, do mesmo modo que essa consciência parecia subordinada ao bom estado e ao bom funcionamento do sistema nervoso, nada mais havia a esperar da sobrevida da inteligência depois da destruição do organismo.
Mas, a doutrina materialista não se devia manter por longo tempo na sua integralidade.
Inicialmente, a concepção de evolução, tal como a admitia a ciência natural, chocava-se com grandes dificuldades filosóficas.
Com efeito, o conhecimento das condições evolutivas essenciais (influência do meio, seleção natural etc.) não pode excluir a ideia de causa primeira ou de causa final. Volumes e volumes foram escritos com vistas a essa demonstração. Eis o mais comprobatório e cientificamente deduzido argumento em torno do assunto: em nenhum caso, o “mais” pode proceder do “menos” se o “menos” não contiver potencialmente todas as possibilidades do “mais”. Admitir o contrário é, de fato, ilógico e anticientífico.
O carvalho está contido na glande (*), uma vez que a glande contém em gérmen o carvalho futuro; mas, o carvalho não poderá ser derivado de uma semente vegetal inferior, ainda que essa derivação seja extremamente lenta, a menos que nela ele já esteja contido em essência. As condições de evolução verificadas não são, portanto, a causa suficiente.
As transformações progressivas só podem ser concebidas como possíveis na hipótese de se supor estarem potencialmente contidas no elemento original mais simples, qualquer que seja ele, colocado na base da evolução.
O raciocínio é rigoroso e parece cientificamente irrefutável. Por conseguinte, bom ou mau grado, é-se conduzido à pesquisa dessa causa primeira, que se esperava evitar.
Outra dificuldade: a matéria, tomada como base da evolução, não mais ofereceria o sólido ponto de apoio que se acreditava nela encontrar. Suas qualidades as mais essenciais – expansão, impenetrabilidade – apareciam como efetivamente ilusórias, sempre que submetidas à análise. De solidez, os sólidos somente apresentavam a aparência, e essa aparência era essencialmente relativa aos nossos sentidos.
Com Ampère, Faraday, Tyndall etc., não mais se poderia enxergar num corpo tido como sólido nada além de um agregado de milhares de átomos móveis, gravitando uns em volta dos outros, não se tocando em parte alguma e separados por distâncias relativamente consideráveis.
O átomo, ele próprio, já agora aparecia como uma necessidade de lógica, uma cômoda ficção sem realidade verdadeira. O atomismo transformava-se em dinamismo: o átomo não era mais do que um turbilhão (Helmotz), um centro de forças; e as forças, por sua vez, levavam logicamente ao movimento.
As descobertas recentes da radioatividade da matéria dão forte apoio às concepções dinâmicas, mostrando-nos – na agregação de elementos que constituem o átomo químico – reservas de energia formidáveis, antes inimagináveis.
O materialismo, portanto, não apresenta a mais que o espiritualismo nem valor nem importância científica. “O materialista – Guyau assevera, [ii] admiravelmente –, crê praticar ciência positiva; ele mesmo, no entanto, assim como o idealista, realiza “poesia metapsíquica”; acontece apenas que seus poemas, com suas construções imaginativas, são escritos em língua de átomos e de movimentos, ao invés de o serem em língua de ideias... Esses dos nossos sábios que de tal modo especulam a respeito da natureza das coisas são Lucrécias que se ignoram.”
Em realidade, o único sistema de filosofia científica atual é o monismo, com sua grandiosa concepção de um princípio único, ao mesmo tempo inteligência, força e matéria, englobando tudo o que existe e tudo o que é possível, causa primeira e causa final, cujas diferenciações são meras formas diversas de movimentos.
Essa doutrina acha-se de acordo com todas as verificações científicas, apoiando-se não somente nas ciências naturais, como em tudo o que nos ensina a física, a mecânica e a química, na tangente da imortalidade da matéria e da força; lançando base, do mesmo modo, nas suas transformações e na sua unidade provável.
As consequências do monismo são das mais importantes. Inicialmente, trata-se da rejeição definitiva da concepção de uma divindade exterior ao Universo, mas não da divindade. Essa é, com efeito, uma “hipótese inútil”, conforme ao velho e irrefutável argumento panteísta que nos mostra a causa primária já por si só sem causa, como totalmente incompreensível para nós, tanto fora do universo, quanto nele mesmo; de maneira que, colocar essa causa primária fora desse contexto é simplesmente aumentar a dificuldade, sem a resolver.
No mais, ainda do ponto de vista moral, estamos em face de uma hipótese verdadeiramente pouco racional, como bem o demonstrou Guyau. A despeito das sutilezas teológicas e dos paradoxos do otimismo, o Deus Todo-poderoso seria responsável por todo o mal verificado no universo.
Em vão Haeckel pretende colocar no monismo – tal como o concebe – uma espécie de ideal religioso. Falta-lhe, no entanto, tudo o que em essência caracteriza as religiões; uma explicação do Universo, não somente do ponto de vista físico, mas também moral; uma esperança e uma consolação. Faz-nos em vão entrever como explicação do mal o aprimoramento da espécie e a felicidade futura.
A perspectiva do aperfeiçoamento da espécie, não rigorosamente correta, aliás, não passa de relativa compensação ao sacrifício da individualidade, aos incompensados sofrimentos dos seres viventes. As esperanças de justiça e de felicidade pessoal tomam cores desmaiadas e, desde já, o pessimismo aparece como consequência inevitável dessa interpretação científica do Universo.
Nenhuma das objeções feitas ao pessimismo podem manter-se de pé diante da simples e antiquíssima verificação da predominância das dores sobre os prazeres, na vida terrestre. Essa predominância é, ai de mim, inegável!
Evidencia-se, primeiramente, para todos os homens um pouco elevados. Seus prazeres, exceções feitas, não são completos; ressentem-se eles da limitação de suas forças e de suas faculdades, da impossibilidade de realizar suas esperanças, bem como da de atingir plenamente seus ideais. Por outro lado, sua sensibilidade muito desenvolvida multiplica-lhes as ocasiões dolorosas, e a própria dor e o instinto – ou a consciência da universal solidariedade – obrigam-nos a se ressentirem de todas as misérias, injustiças e sofrimentos, próximos ou afastados.
Para os medíocres, que constituem a massa da humanidade, as conclusões pessimistas são menos evidentes. A existência terrestre com frequência parece oferecer-lhes um grau satisfatório de felicidade, uma vez que suas faculdades físicas e psíquicas, sua elevação moral e sua sensibilidade são adequadas às condições vitais ambientes.
Indubitavelmente, essas criaturas não são passíveis de experimentar dessas grandiosas sensações de emotividade sublimada, que elevam o ser esclarecido a um plano superior ao das realidades banais; vêem-se eles abraçados por uma multidão de pequeninas satisfações, infinitamente mais frequentes e, para eles, plenamente satisfatórias. Se não evitam o mal, permanecem, de um modo geral, inacessíveis ou pouco sensíveis a numerosos motivos de sofrimentos que, incessantemente, afetam os mais bem dotados seres.
Apesar de tudo, parece, de fato, que, mesmo em relação aos homens medíocres, a soma de sofrimentos equilibra-se com a dos prazeres. Prova acessória, mas nem por isso pouco interessante, de que a vida terrena confere poucas satisfações reais, está na utilização perpétua e no abuso frequente que, em todos os tempos e lugares, a humanidade fez dos narcóticos. Estes são variáveis, mas, na essência, serão sempre: álcool, erva-santa, haxixe, ópio, éter etc., isso pouco importa; parece que o homem, na obtenção de algumas ilusões, ou, simplesmente, de repouso e esquecimento, não pode dispensar um ou outro deles. Além disso, ao lado desses narcóticos orgânicos, quantos narcóticos morais, de ainda maior potência: quimeras religiosas e superstições, devaneios místicos, crenças maravilhosas etc.
De qualquer modo, não se trata – tanto quanto os narcóticos – de ilusões reconfortadoras, às quais o mais infeliz dos homens luta por não renunciar, e que o fazem amar a vida, menos pelo que lhe confere do que por aquilo que o leva a esperar?
A existência individual toma os ares de um mal se, privada de suas ilusões, ela assim se desenrola, do nascimento à morte. Essa não é, felizmente, a conclusão definitiva da filosofia científica. Novos conhecimentos no domínio da psicologia teórica e experimental talvez permitam uma conclusão inteiramente diferente.
O monismo não é inconciliável com as esperanças da imortalidade individual. A partir do momento em que a inteligência não mais é considerada como uma secreção da matéria, e sim como um modo de movimento do princípio único, não mais há lógica na afirmação do aniquilamento da inteligência pela morte do organismo. “Frequentemente opõem ao nosso monismo – diz Haeckel – o fato de que ele recusa de modo peremptório a existência da imortalidade. No entanto, não há verdade nisso... O universo, em seu conjunto, é imortal. O perecimento no seio do universo da menor parcela de matéria ou de força é tão pouco provável quanto a morte dos átomos do nosso cérebro, ou das forças do nosso espírito.”
E, prossegue o precitado autor, proclamando que o que desaparece pela morte é simplesmente a consciência, a memória individual. A força-inteligência do ser desagrega-se e transforma-se, como, em si mesma, se desagrega e se transforma a matéria orgânica.
Mas, estamos em face de mera afirmação, nada provando a impossibilidade de demonstração em sentido contrário. Guyau previa a iminente evolução da filosofia científica num sentido idealista: “O século XIX – diz ele – aportará a descobertas ainda mal formuladas – e igualmente importantes –, talvez, no mundo moral; tão importantes quanto as de Newton ou de Laplace, no mundo sideral...” [iii]
Na sua Irreligião do futuro, em importante capítulo, o mencionado autor estuda a possibilidade da imortalidade no naturalismo monista. A imortalidade, segundo ele, poderia transformar-se em aquisição final da evolução. Poderia ser também o resultado de uma espécie de penetração recíproca das consciências superiores, que encontrariam seguimento umas nas outras. E o que há de melhor na consciência individual poderia permanecer na consciência de um ser animado, mantendo-se-lhe unida após a morte.
Aí estão concepções invulgarmente belas, embora excessivamente vagas e imprecisas, se tomadas, no dizer de Guyau, como elementos de satisfação de nossas esperanças de imortalidade.
Seja-nos permitido tomar a fio um estudo metódico sobre algumas das descobertas previstas por esse grande pensador, descobertas essas recentes e ainda obumbradas, as quais, porém, a filosofia não mais tem o direito de desdenhar. Talvez, no decorrer do tempo, venhamos a hesitar na proclamação da quimera da concepção da imortalidade no naturalismo monista.
Dr. Gustave Geley
Notas:
[i] Berthelot, Science et Philosophie.
[ii] Guyau, L’Irreligion de L’avenir, Paris, F. Alcan.
[iii] L’Art au point de vue sociologique, Introdução, Pais, F. Alcan.
(*) BOTÂNICA fruto, variedade de aquênio, de diversas árvores (carvalho, sobreiro, azinheira etc.), protegido por uma cúpula, conhecido popularmente como bolota.
Fonte: do livro "O Ser Subconsciente", Ed. FEB
Via site: "Vade Mecum Espírita"
http://www.vademecumespirita.com.br
Fonte da Gravura: Acervo de autoria pessoal
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