As Igrejas Cristãs na atualidade professam que todos os ensinamentos de Jesus estão contidos na Bíblia, tendo sido interpretados, no decorrer dos séculos, pelos credos, dogmas e outros ensinamentos transmitidos pela hierarquia eclesiástica. Apesar das passagens da Bíblia que falam claramente sobre ensinamentos reservados e dos escritos dos padres da Igreja Primitiva referindo-se aos Mistérios de Jesus, a atitude ortodoxa é de que não existe um lado interno na tradição cristã. Caso isso fosse verdade, essa seria a única grande religião sem ensinamentos esotéricos. Essa postura da Igreja não é de se estranhar, pois, como disse o bispo Leadbeater, da Igreja Católica Liberal, “com a passagem do tempo, todas as religiões gradualmente se distanciam da forma original em que foram plasmadas por seus fundadores. Quase sempre esta mudança é para pior.”
Porém, existe um lado interno na tradição cristã, que são os ensinamentos reservados e as práticas estabelecidas por Jesus, preservadas e desenvolvidas por seus discípulos e grandes praticantes. Pelo fato de lidarem com os aspectos ocultos da natureza e do homem, são geralmente preservados pela tradição oral ou apresentados de forma alegórica. Esses ensinamentos visam identificar o objetivo último da vida do homem no mundo e orientar os praticantes como alcançá-lo o mais rápido possível. O lado interno, portanto, é equivalente ao lado esotérico ou oculto da tradição.
Como os ensinamentos esotéricos, por definição, são ministrados de forma reservada a um número relativamente pequeno de discípulos mais avançados e, geralmente, sob o juramento de sigilo, muito pouca informação a esse respeito chega ao domínio público. Essa situação tem um paralelo na tradição dos mistérios, sobre a qual tanto se fala, mas pouco se sabe fora do círculo de seus iniciados.
Apesar de quase ignorado por muitos séculos, o lado interno da tradição cristã é uma realidade. Jesus falava de acordo com a capacidade de discernimento de cada um, “segundo o que podiam compreender” (Mc 4,33), sendo que para seus discípulos ministrava ensinamentos reservados, como fica claro na seguinte passagem: “Quando ficaram sozinhos, os que estavam junto dele com os Doze o interrogaram sobre as parábolas. Dizia-lhes: ‘A vós foi dado o mistério do Reino de Deus; aos de fora, porém, tudo acontece em parábolas.’” (Mc 4,10-11)
Se aceitamos o teor dessa passagem, que é confirmado em outras partes dos evangelhos e em documentos apócrifos, podemos assumir que a tradição cristã, pelo menos em seus primórdios, teve um lado interno, estabelecido diretamente por Jesus.
Paulo confirma esse fato em suas epístolas quando fala de verdades veladas, reservadas aos perfeitos, ou seja, aos que tinham sido iniciados nos mistérios de Jesus: “Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa e oculta, que Deus, antes dos séculos, de antemão destinou para a nossa glória.” (1Co 2,7) E, referindo-se aos dons da graça de Deus, o apóstolo diz: “Desses dons não falamos segundo a linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas segundo aquela que o Espírito ensina, exprimindo realidades espirituais em termos espirituais.” (1Co 2,13)
Na Epístola aos Hebreus é mencionado que, mesmo com o passar do tempo, a maior parte dos membros das comunidades cristãs primitivas ainda não estava apta a receber os ensinamentos internos: “Muitas coisas teríamos a dizer sobre isso, e a sua explicação é difícil, porque vos tornastes lentos à compreensão. Pois, uma vez que com o tempo vós deveríeis ter-vos tornado mestres, necessitais novamente que se vos ensinem os primeiros rudimentos dos oráculos de Deus, e precisais de leite, e não de alimento sólido. De fato, aquele que ainda se amamenta não pode degustar a doutrina da justiça, pois é uma criancinha! Os adultos, porém, que pelo hábito possuem o senso moral exercitado para discernir o bem e o mal, recebem o alimento sólido.” (Hb 5,11-14)
No Evangelho de João existem várias passagens de natureza profundamente esotérica apresentadas de forma velada. Existem, também, indicações de que outros evangelhos de natureza esotérica foram escritos mas não foram conservados pela tradição ortodoxa, como o Evangelho de Matias, referido por Jerônimo, o Evangelho secreto de Marcos, e os Evangelhos de Tomé e de Felipe, encontrados na biblioteca de Nag Hamaddi. Clemente de Alexandria, um dos maiores patriarcas da Igreja, falando sobre o trabalho de Marcos e os ensinamentos secretos de Jesus, escreve: “(Desta forma) ele (Marcos) organizou um evangelho mais espiritual para aqueles que estavam sendo purificados. No entanto, não divulgou as coisas que não deveriam ser reveladas, nem escreveu os ensinamentos hierofânticos do Senhor... Incluiu certas explicações que, ele sabia, conduziriam os ouvintes ao santuário mais interno daquela verdade oculta por sete (véus).”
A prática de diferenciar os níveis de ensinamento conforme a preparação dos ouvintes era comum entre os judeus, tanto da tradição rabínica como dos essênios, que transmitiam dois tipos de ensinamentos, um externo para o povo e os neófitos, e outro interno (esotérico), para os estudantes avançados.
Os grandes seres que legaram ensinamentos à humanidade, que mais tarde transformaram-se em religiões, sempre levaram em consideração as necessidades específicas das almas em diferentes estágios evolutivos. Para as massas eram ministradas instruções simples, voltadas para as necessidades prementes de orientação moral, de consolação e de esperança para os aflitos. Assim, as parábolas e outros ditados de Jesus contêm, numa primeira leitura, uma “moral da estória”, um ensinamento prático, geralmente apresentado com imagens da vida diária de seus ouvintes. Porém, para as pessoas mais instruídas e já despertas espiritualmente, as mesmas parábolas, devidamente interpretadas, ofereciam outra camada de ensinamentos mais profundos que haviam sido velados pela alegoria. Finalmente, para seus discípulos mais chegados, foram ministrados ensinamentos secretos conservados pela tradição oral e só mais tarde confiados à linguagem escrita, ainda que de forma altamente simbólica.
O bispo Leadbeater afirma categoricamente que existe um lado esotérico do cristianismo, apesar dos protestos em contrário das correntes ortodoxas dominantes. Em suas pungentes palavras: “Originalmente, o cristianismo era uma doutrina de magnífica elaboração — aquela doutrina que repousa nos fundamentos de todas as religiões. Quando a história do Evangelho, que tinha significação alegórica, foi degradada a uma pseudo narrativa histórica da vida de um homem, a religião tornou-se confusa. Por essa razão, todos os textos relativos às coisas elevadas foram distorcidos e, portanto, não mais correspondem à verdade subjacente. Por ter o cristianismo esquecido muito de seu ensinamento original, é costume atualmente negar que algum dia tenha tido qualquer instrução esotérica.”
Nos primeiros séculos de nossa era os ensinamentos internos de Jesus foram preservados principalmente pelos grupos conhecidos como gnósticos, que transmitiam oralmente seus segredos, de forma gradual, aos seus seguidores. A massa dos fiéis recebia os ensinamentos da tradição aberta, muitos dos quais derivados dos ensinamentos esotéricos. Com o tempo, porém, a corrente ortodoxa passou a dar uma interpretação de cunho histórico e literal às verdades profundas, transformando-as em dogmas. Um estudioso chega a sugerir que: “Os dogmas tradicionais da Igreja que chegaram a nós ao longo dos séculos são materializações grosseiras do verdadeiro ensinamento sobre a natureza e origem espiritual do homem contido na gnosis. Esses dogmas são o resultado do historicismo literal das narrativas — alguns casos, porém, tendo uma base semi histórica — que tinham a intenção original de servir como alegorias cobrindo profundas verdades espirituais.
A verdade, portanto, não é que o gnosticismo seja uma "heresia", um afastamento do verdadeiro cristianismo, mas precisamente o oposto, isso é, que o cristianismo em seu desenvolvimento dogmático e eclesiástico é uma caricatura dos ensinamentos gnósticos originais.
Com o crescente acervo de informações sobre o lado esotérico dos ensinamentos de nossa tradição, seria lícito perguntar por que esses dados não foram apresentados de forma sistemática para o grande público? A verdade é que nunca houve interesse nesse particular dentro da Igreja. Ao contrário, as autoridades eclesiásticas, depois de Clemente de Alexandria e Orígenes, sempre negaram que houvesse um lado esotérico da tradição cristã. Um dos principais fatores para essa atitude remonta à aliança da incipiente Igreja com o Imperador romano Constantino no início do século IV. O cristianismo popular, introduzido por Constantino como religião oficial do Império Romano não podia se dar ao luxo de aceitar uma visão interna e esotérica, fora do controle da hierarquia. A nova religião tinha que servir como instrumento de garantia do reino terrestre. Um reino espiritual não tinha lugar nesse esquema. Para a Igreja Romana, essa aliança trouxe inúmeras vantagens, como a cessação das perseguições e o poder temporal sobre assuntos religiosos.
Porém, o preço pago foi demasiado alto: o afastamento do que havia de mais precioso na herança cristã e a alienação de milhares de buscadores sinceros que foram anatemizados ao longo dos séculos. Dessa tentação não escaparam, mais tarde, as Igrejas da reforma protestante, que também se uniram aos príncipes desse mundo.
A Bíblia permaneceu a suprema fonte da tradição, em que pese a importância concedida à tradição oral, principalmente nos meios monásticos. Toda tentativa de sistematização dos ensinamentos do Mestre sempre foi vista com extrema suspeita, pois o resultado de qualquer nova apresentação dos ensinamentos iria, no mínimo, afetar as prioridades e valores relativos da estrutura dogmática estabelecida pela Igreja. A atitude usual, porém, ia muito além da suspeita, chegando à rejeição peremptória das novas interpretações, pois, por definição, seriam diferentes da ortodoxa, sendo, portanto, taxadas de heresias e combatidas literalmente a ferro e fogo. Dado o poder quase absoluto da Igreja a partir do século IV até o século XIX, todas as tentativas de sistematização, inclusive dos ensinamentos esotéricos de Jesus que vieram a público, não tiveram sucesso, geralmente terminando com os escritos e seus escritores sendo execrados ou lançados na fogueira.
Com a liberdade de pensamento e expressão conquistada no século passado e consolidada a partir da segunda metade deste século (20), um número crescente de estudos vem sendo realizado: inicialmente comparando os provérbios e parábolas semelhantes nos evangelhos sinóticos, que levaram à teoria do Evangelho Q (inicial da palavra alemã Quelle, que significa fonte, para a suposta fonte original das logia* de Jesus) e, mais recentemente, a comparação e análise das formulações dos sinóticos com as equivalentes nos evangelhos gnósticos, principalmente com o Evangelho de Tomé. As interpretações das parábolas de Jesus foram outro grande avanço no entendimento dos ensinamentos do Mestre.
Partimos, portanto, da hipótese de que os ensinamentos de Jesus, o vivo, como o Mestre era chamado pelos gnósticos, foram o instrumento para trazer salvação aos homens, entendida como a admissão ao Reino dos Céus. Esses ensinamentos seriam a medicação salvadora receitada pelo grande terapeuta à humanidade. O diagnóstico foi feito, a medicação receitada. Resta a cada ser humano exercitar seu livre arbítrio e decidir se toma a medicação necessária, em tempo hábil, na atual encarnação. Caso o diagnóstico e a prescrição sejam aceitos, deve-se envidar todo o esforço possível para fazer o tratamento, que é, como na homeopatia, feito a longo prazo, ativando os princípios curadores existentes no interior de cada um. A revelação foi feita, a ajuda divina está disponível, mas o paciente deve fazer a sua parte.
Victor Rebelo
Fonte: do opúsculo "Jesus e o Espiritismo", da Coleção "Sem Mistérios", Vol. 4
Anexo da "Revista Cristã de Espiritismo", Ed. Escala
www.editoraescala.com.br
Digitalizada por L. Neilmoris, 2008
www.luzespirita.org
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/photos/b%C3%ADblia-religi%C3%A3o-cristianismo-879084/
Nota:
* palavra, discurso, linguagem; termo usado para as supostas palavras originais de Jesus, o Vivo, ditas secretamente aos seus discípulos, e que vem confirmar os evangelhos canônicos, ratificando sua autenticidade.
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