O misticismo, que pretende desvendar verdades extraordinárias no domínio profundo do universo em relação com o homem, não parece concernir aos patriarcas, a Moisés, e nem mesmo aos profetas. Esses grandes homens esforçavam-se por ligar-se unicamente a Deus, sem preocupar-se com as coisas misteriosas, insuspeitadas, à margem de Deus, já que a seus olhos, tudo o que existe, visível e invisível, só pode emanar da potência criadora divina. Em outras palavras, para eles, apegar-se profundamente, intimamente, à Divindade é possuir pela revelação a chave de tudo o que nos parece misterioso, incompreensível.
Visto sob esse ângulo, o misticismo, tal como hoje o conhecemos, parece incompatível com a espiritualidade dos hebreus ilustres da Alta Antiguidade. Sua essência, no entanto, é espiritual, se o concebermos fora de toda consideração de ordem fictícia, mágica, supersticiosa, embora se situe num plano inferior, se assim se pode dizer, ao do verdadeiro misticismo. O misticismo real é apanágio dos homens de gênio, que encontram, sem procurar, o mistério do ser. Abrange a alta metafísica, a estrutura íntima do universo, concebido como um reflexo da Divindade. É para Deus que tende o místico, é nele se concentrando em profunda meditação, é amando-o que consegue ver coisas extraordinárias que o tornam feliz, alegre e otimista aqui na Terra. Sob esse aspecto, os patriarcas Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, e os profetas, a quem Deus se revelou mais de uma vez, podem, assim, ser considerados como místicos, já que seu amor extremo os põe em comunhão íntima com Ele. O primeiro filósofo foi Abraão, que procura, medita, se concentra para descobrir aquele que rege verdadeiramente o universo. Os ídolos, os deuses que conheceu em casa de seus pais, objetos inertes, são absurdos. Tampouco o Sol, a Lua, as estrelas podem ser como deuses, já que são movidos por uma força superior a eles. Espiritualmente, invisivelmente, pouco a pouco, descobre o Deus verdadeiro, senhor de todo o universo. Moisés jejua e recolhe-se durante quarenta dias no Monte Sinai para ter a felicidade de conhecer a Deus de perto. Os grandes profetas, embora excepcionalmente favorecidos, só vêem a Deus em estado de êxtase, mais ou menos como mais tarde os essênios, os grandes cabalistas ou os santos.
A filosofia, na sua especulação mais profunda, movendo-se no meio da lógica pura (Fílon, esse grande místico, já o havia observado), vê-se impotente para resolver problemas de ordem metafísica que se lhe apresentam, a ela como ao misticismo. Para resolvê-los tem de recorrer ao misticismo, ao qual o racionalismo, seu guia individual, deve subordinar-se, como foi o caso de Espinosa. Uma filosofia não pode atingir a transcendência pelo raciocínio rigoroso do lógico, mas só por uma visada essencialmente mística e intuitiva.
Por isso dizemos que o misticismo ultrapassa a filosofia. Mas a filosofia pode, como já o demonstramos em outra parte, revestir-se de um caráter místico. É o que ocorre em Platão, Fílon, Plotino, Espinosa, Bergson.
Henri Sérouya
Fonte: do livro "A Cabala", Henri Sérouya, Difusão Europeia do Livro, SP, 1970, pp. 11-2.
Fonte da Gravura: Artista ucraniano Alexey Leonov
http://leonov.idea.in.ua/
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