domingo, 6 de setembro de 2020

ILUMINAÇÃO PELO CAMINHO DAS TREVAS


[…] Liberto de tudo o que é visto e de tudo o que vê, penetra na treva do não-conhecimento, a treva autenticamente mística e, renunciando às percepções intelectivas, chega à total intangibilidade e invisibilidade; entrega-se inteiramente ao que está acima de tudo e de nada (e não é ele próprio nem outro), unindo-se da forma mais perfeita ao que é completamente incognoscível mediante a total inatividade do conhecimento, conhecendo além do espírito graças ao ato de nada conhecer […] (Areopagita)

Chegar a esta treva mais que luminosa é o que suplicamos e, pela privação da visão e pelo não-conhecimento, ver e conhecer Aquele que está acima da contemplação e do conhecimento, precisamente pelo ato de não ver nem conhecer – nisto consiste, de fato, a verdadeira observação e conhecimento -, e celebrar Aquele que é mais que substancial de um modo mais que substancial, pela aférese* sistemática das coisas existentes; tal o artista que esculpe uma estátua ao natural, desbastando todas as excrescências que entravam a contemplação pura da figura oculta, e apenas mediante essa aférese faz aparecer a formosura escondida tal como ela é em si mesma.

... "treva de silêncio, mais que luminosa... que na maior obscuridade é mais que manifesta, mais que brilhante e completamente intangível e invisível…". A ela se chega – lê-se – pelo distanciamento (ekstasei) ou renúncia "de tudo" e "de todas as coisas" com o auxílio, porém, da Trindade, ela que "guarda a sabedoria divina dos cristãos". A treva é a ocultação dos mistérios da teologia (theologia mysteria) contidos nos escritos místicos (mystikon logion).

Assim ouvimos de São João da Cruz:

Das muitas imperfeições em que vivem os principiantes, o que até aqui referimos é suficiente para mostrar quão grande seja a necessidade de que Deus os ponha em via de progresso. Realiza-se isto na noite escura de que entramos a falar. Aí, desmamando-os Deus de todos os sabores e gostos, por meio de fortes securas e trevas interiores, tira-lhes todas estas impertinências e ninharias; ao mesmo tempo, faz com que ganhem virtudes por meios muito diferentes. Por mais que a alma principiante se exercite na mortificação de todas as suas ações e paixões, jamais chegará a consegui-lo totalmente, por maiores esforços que empregue, até que Deus opere passivamente nela por meio da purificação da noite.

É que na noite escura, — verificando-se a palavra do Profeta: “Luzirá tua luz nas trevas” (Is 63,10), — Deus iluminará a alma, dando-lhe a conhecer, não somente a própria miséria e vileza, mas também Sua divina grandeza e excelência. Uma vez amortecidos os apetites, gostos e apoios sensíveis, fica o entendimento livre para apreender a verdade, pois é certo que esses gostos e apetites do sentido, mesmo sendo em coisas espirituais, sempre ofuscam e embaraçam o espírito. Além disto, aquela angústia e secura da parte sensitiva vem ilustrar e vivificar o entendimento, segundo declara Isaías: “A vexação nos leva a conhecer a Deus” (Is 28,19). Assim vemos que à alma vazia e desembaraçada, bem disposta a receber o influxo divino, o Senhor, por meio desta noite escura e seca de contemplação, vai instruindo sobrenaturalmente em sua divina Sabedoria, como o não fizera até então pelos gostos e sabores sensíveis.

Surge, porém, a dúvida: por que à luz divina (que, conforme dissemos, ilumina e purifica a alma de suas ignorâncias) chama a alma agora “noite escura”? A isto se responde: por dois motivos esta divina Sabedoria é não somente noite e trevas para a alma, mas ainda pena e tormento. Primeiro, por causa da elevação da Sabedoria de Deus, que excede a capacidade da alma, e, portanto, lhe fica sendo treva; segundo, devido à baixeza e impureza da alma, e por isto lhe é penosa e aflitiva, e também obscura.

Para provar a primeira afirmação, convém supor certa doutrina do Filósofo: quanto mais as coisas divinas são em si claras e manifestas, tanto mais são para a alma naturalmente obscuras e escondidas. Assim como a luz, quanto mais clara, tanto mais cega e ofusca a pupila da coruja; e quanto mais se quer fixar os olhos diretamente no sol, mais trevas ele produz na potência visual, paralisando-a, porque lhe excede a fraqueza. Do mesmo modo quando esta divina luz de contemplação investe a alma que ainda não está totalmente iluminada, enche-a de trevas espirituais; porque, não somente a excede, como também paralisa e obscurece a sua ação natural. Por este motivo, São Dionísio e outros místicos teólogos chamam a esta contemplação infusa “raio de treva”. Isto se entende quanto à alma não iluminada e purificada, pois a grande luz sobrenatural desta contemplação vence a força natural da inteligência, privando-a do seu exercício. Por sua vez disse David: “Nuvens e escuridão estão em redor d’Ele” (SI 96,2); não porque isto seja realmente, mas por ser assim para os nossos fracos entendimentos, os quais, em tão imensa luz, cegam-se e se ofuscam, não podendo elevar-se tanto. Esta verdade o mesmo David o declarou em seguida, dizendo: “Pelo grande resplendor de sua presença, as nuvens se interpuseram” (SI 17,13), isto é, entre Deus e nosso entendimento. Daí procede que este resplandecente raio de secreta Sabedoria, derivando de Deus à alma ainda não transformada, produz escuras trevas no entendimento.

A terceira espécie de sofrimento e pena que a alma agora padece provém de outros dois extremos que aqui se encontram: o divino e o humano. O divino é esta contemplação purificadora, e o humano a própria alma que a recebe. O divino a investe a fim de renová-la, para que se torne divina; despoja-a de suas afeições habituais e das propriedades do homem velho, às quais está a mesma alma muito unida, conglutinada e conformada. E de tal maneira é triturada e dissolvida em sua substância espiritual, absorvida numa profunda e penetrante treva, que se sente diluir e derreter na presença e na vista de suas misérias, sofrendo o espírito como uma morte cruel. Parece-lhe estar como tragada por um bicho no seu ventre tenebroso, e ali ser digerida: assim padece as angústias que Jonas sofreu no ventre daquele monstro marinho. De fato, é necessário à alma permanecer neste sepulcro de obscura morte, para chegar à ressurreição espiritual que espera.

Pelo que já foi dito, vemos claramente que esta obscura noite de fogo amoroso, como vai purificando a alma nas trevas, assim também nas trevas a vai inflamando. Observamos igualmente que, assim como se purificam os espíritos na outra vida por meio de um tenebroso fogo material, de maneira semelhante são purificadas e acrisoladas as almas nesta vida presente, por um fogo amoroso, tenebroso e espiritual. E está aí a diferença: lá no outro mundo, a expiação é feita pelo fogo, e aqui na Terra a purificação ilustração se opera tão só mediante o amor. Tal é o amor que pediu David ao dizer: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro” (Sl 50,12): que a pureza de coração não é outra coisa senão o amor e graça de Deus. Nosso Salvador chama bem-aventurados aos puros de coração, o que é tanto como chamá-los enamorados, pois a bem-aventurança não se dá por menos que por amor.

Não quero deixar de indicar agora o motivo pelo qual a luz divina, embora sendo sempre luz para a alma, não a ilumina logo que a investe, como fará depois, mas causa primeiramente as trevas e sofrimentos já descritos. As trevas e demais penas que a alma sente quando esta divina luz investe não são trevas e penas provenientes da luz, e sim da própria alma; a luz apenas esclarece para que sejam vistas. Desde o princípio, portanto, esta divina luz ilumina, mas a alma tem de ver primeiro o que lhe está mais próximo, ou por melhor dizer, o que tem em si mesma, isto é, suas trevas e misérias, as quais vê agora pela misericórdia de Deus. Antes não as via, porque não lhe era infundida essa luz sobrenatural. Aqui se mostra a razão de sentir, no princípio, somente trevas e males. Depois, porém, de purificada por este conhecimento e sentimento, então terá olhos para ver, à luz divina, os bens da mesma luz. Expelidas, enfim, todas as trevas e imperfeições da alma, parece que aos poucos se revelam os proveitos e grandes bens que a mesma alma vai conseguindo nesta ditosa noite de contemplação.

Pelo que já dissemos, fica entendido quão grande mercê faz Deus à alma em limpá-la e curá-la com esta forte lixívia e este amargo remédio; purificação essa que se faz na parte sensitiva e espiritual, de todas as afeições e hábitos imperfeitos arraigados na alma, tanto a respeito do temporal e natural, como do sensitivo e espiritual. Para isto, Deus põe a alma na obscuridade, quanto às suas potências interiores, esvaziando-as de tudo que as ocupava; faz passar pela aflição e aridez às afeições sensitivas e espirituais; debilita e afina as forças naturais da alma acerca de todas as coisas que a prendiam, e das quais nunca poderia libertar-se por si mesma, conforme vamos dizer. Deste modo, leva-a Deus a desfalecer para tudo o que naturalmente não é Ele, a fim de revesti-la de novo, depois de a ter despojado e desfeito de sua antiga veste. E assim a alma é renovada, como a águia, em sua juventude, e vestida do homem novo, criado segundo Deus, como diz o Apóstolo (Ef 4,24). Esta transformação nada mais é do que a iluminação de entendimento pela luz sobrenatural, de maneira que ele se una com o divino, tornando-se, por sua vez, divino. É igualmente a penetração da vontade pelo amor divino, de modo a tornar-se nada menos que vontade divina, não amando senão divinamente, transformada e unida com a divina vontade e o divino amor. Enfim, o mesmo se dá com a memória, e também com as afeições e apetites, que são todos transformados e renovados segundo Deus, divinamente. Esta alma será agora, pois, alma do Céu, verdadeiramente celestial, mais divina do que humana. Todas estas transformações até agora referidas, da maneira que havemos descrito, vai Deus realizando e operando na alma por meio desta noite, ilustrando-a e inflamando-a divinamente, com ânsias de Deus só e nada mais.

Quanto mais a alma se aproxima d’Ele, mais profundas são as trevas que sente, e maior a escuridão, por causa de sua própria fraqueza. Assim, quem mais se acercou do sol, haveria de sentir, com o grande resplendor dele, maior obscuridade e sofrimento, em razão da fraqueza e incapacidade de seus olhos. Tão imensa é a luz espiritual de Deus, excedendo tanto ao entendimento natural, que, ao chegar mais perto d’Ele, o obscurece e cega. Esta é a causa por que no Salmo 17 diz David, referindo-se a Deus: “pôs seu esconderijo nas trevas como em seu tabernáculo: águas tenebrosas nas nuvens do ar” (Si 17,12). As “águas tenebrosas nas nuvens do ar” significam a obscura contemplação e divina Sabedoria nas almas, conforme vamos dizendo. Isto, as mesmas almas vão sentindo aos poucos, como algo que está próximo a Deus, e percebem este tabernáculo onde Ele mora, no momento em que Deus as vai unindo a Si mais de perto. E, assim, o que em Deus é luz e claridade mais sublime, é para o homem treva mais escura.

* cortar, separar, retirar


Fraternidade Martinista



Fonte: https://fraternidademartinista.wordpress.com/author/fraternidademartinista/
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