“Despertar”, “morrer”, “nascer” representam três estágios sucessivos de um processo. Volta e meia, encontramos nos Evangelhos referências à possibilidade de “nascer”. São feitas diversas referências à necessidade de “morrer” e muitas à necessidade de “despertar” ou de nos mantermos despertos, como “Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora...”. Mas essas três possibilidades — despertar ou não dormir, morrer e nascer — nunca são apresentadas como conceitos correlacionados, apesar de seu relacionamento ser o ponto mais importante.
“Nascer” está relacionado ao primeiro estágio do crescimento da essência, o começo da formação da individualidade e o surgimento de um “eu” unificado e indivisível. Mas, a fim de poder perceber ou mesmo começar a perceber isso, a pessoa precisa morrer no sentido de se tornar livre de uma miríade de apegos e de identificações mesquinhas que a mantém no lugar em que ela está. Estamos apegados a tudo na vida — à nossa imaginação, à nossa estupidez e, talvez mais do que qualquer outra coisa, ao nosso sofrimento. Precisamos nos libertar desse apego às coisas, dessa identificação com as coisas, que mantém vivos milhares de “eus” inúteis em nós. Esses “eus” precisam morrer a fim de que um “eu” maior possa nascer. Mas como? Eles não querem morrer.
É aí que entra em cena a possibilidade do despertar, isto é, do despertar para nossa insignificância. Despertar significa perceber nossa total e absoluta mecanicidade e nosso desamparo. E não basta perceber isso de modo intelectual. Precisamos ver isso nos fatos evidentes, simples e concretos, em nossa própria vida. Quando começamos a nos conhecer um pouco melhor, vemos muitas coisas que nos horrorizam. Ao vermos algo que nos choca, nossa primeira reação é mudar aquilo, livrarmo-nos daquilo. Por mais que tentemos, por mais que nos esforcemos, sempre fracassamos, e tudo permanece como está. Então percebemos nossa impotência, nosso desamparo, nossa insignificância. Ou, novamente, quando começamos a nos conhecer, vemos que não temos nada que nos pertença de fato. Vemos que o que considerávamos nosso — nossas posições, nossos pensamentos, convicções, gostos, hábitos, até nossos defeitos e vícios — não nos pertence. Tudo isso foi formado mediante imitação ou tomado de empréstimo, já pronto, de outra pessoa. Ao percebermos isso, podemos sentir nossa insignificância. E, ao sentir nossa insignificância, devemos nos ver como realmente somos, não apenas por um momento, mas constantemente, sem nunca nos esquecermos.
A percepção contínua de nossa insignificância e de nosso desamparo irá acabar nos dando a coragem de “morrer” — não apenas mentalmente, mas de fato — por meio da renúncia permanente a esses aspectos em nós mesmos, os quais são obstáculos ou não são necessários para nosso crescimento interior. Esses obstáculos são, em primeiro lugar, nossos “falsos eus” e, depois, todas as ideias fantásticas sobre nossa “individualidade”, “vontade”, “consciência”, “capacidade de fazer”, bem como nossos poderes, iniciativas, determinação, e assim por diante.
Porém, a fim de podermos nos conscientizar permanentemente de alguma coisa, precisamos vê-la antes, mesmo que apenas por um instante. Qualquer poder e capacidade de percepção recém-adquiridos aparecem sempre da mesma maneira básica. No começo, aparecem em flashes, em momentos raros e breves, depois com mais frequência e por mais tempo e, finalmente, após muito tempo e esforço, tornam-se permanentes. Isso também se aplica ao despertar. É impossível despertar de modo pleno de uma só vez. Primeiro precisamos despertar por breves momentos, um ou dois momentos de vez em quando. Todavia, após ter feito certo esforço, superado certos obstáculos e tomado uma decisão irrevogável, precisamos morrer de uma vez e para sempre. Isso seria muito difícil ou mesmo impossível caso não fosse precedido por um processo gradual de despertar.
Há, no entanto, mil coisas que nos impedem de despertar, que nos mantêm sob o poder de nossos sonhos. No intuito de agirmos de modo consciente e despertarmos, precisamos conhecer a natureza das forças que nos mantêm em estado de sono. Precisamos compreender que o sono em que existimos não é um sono comum, mas uma espécie de hipnose, um estado hipnótico mantido e reforçado continuamente. Poderíamos pensar que há forças que se aproveitam do fato de estarmos em um estado hipnótico, mantendo-nos nele e impedindo-nos de vermos a verdade e de compreendermos nossa posição.
Existe uma parábola oriental sobre um mago rico que tinha muitas ovelhas. Ele também era muito sovina e se recusava a contratar pastores ou a pagar por uma cerca ao redor de seus pastos. Por isso, volta e meia as ovelhas vagavam pela floresta e caíam em ravinas. E, sobretudo, fugiam, pois sabiam que o mago queria seu couro e sua carne, e elas não queriam isso. Por fim, o mago encontrou uma solução: hipnotizou as ovelhas. Primeiro, fez com que pensassem que eram imortais e que nada lhes aconteceria quando tirassem sua pele, mas que isso seria muito bom para elas e que elas gostariam disso. Segundo, sugeriu que ele era um “Bom Mestre”, que gostava tanto de seu rebanho que faria qualquer coisa neste mundo por elas. Terceiro, sugeriu que, se algo fosse acontecer com elas, não seria naquele momento, ou não naquele dia pelo menos, e que por isso elas não tinham motivo para pensar a respeito. Finalmente, o mago fez com que seu rebanho pensasse que não eram nem mesmo ovelhas. A algumas, sugeriu que eram leões, elefantes ou águias; a outras, que eram homens e, a outras, que eram magos. Depois disso, ele nunca mais precisou se preocupar com suas ovelhas. Elas não fugiram, ficaram esperando pacientemente pelo dia em que o mago precisaria de sua pele e de sua carne.
Essa parábola é uma excelente ilustração da posição do homem. Se pudéssemos ver e compreender de fato o horror de nossa verdadeira situação, não seríamos capazes de suportá-la nem por um segundo. Começaríamos imediatamente a tentar encontrar um modo de escapar e logo o encontraríamos, pois existe uma saída. A única razão pela qual não a enxergamos é que estamos hipnotizados. “Despertar”, para o homem, significa “acordar da hipnose”. Logo, isso é possível, mas, ao mesmo tempo, difícil. Não há motivo orgânico para estarmos adormecidos. Podemos despertar, pelo menos na teoria. Na prática, porém, isso é quase impossível. Assim que despertamos por um momento e abrimos os olhos, todas as forças que nos fizeram adormecer ficam dez vezes mais poderosas. No mesmo instante voltamos a dormir, sempre sonhando que estamos acordando ou que estamos despertos.
No sono comum, às vezes acontece de querermos despertar sem conseguir. Às vezes pensamos estar acordados, mas ainda estamos dormindo, e isso pode acontecer várias vezes até conseguirmos despertar de fato. No sono comum, porém, após despertarmos, nos vemos em um estado diferente. Não é o caso do sono hipnótico. Não há maneira precisa de dizer se despertamos mesmo, pelo menos no começo. Não podemos nos beliscar a fim de ter certeza de que não estamos dormindo. E se, Deus nos livre, alguém tiver ouvido falar de alguma maneira de descobrir se estamos dormindo, nossa fantasia a transformará em sonho na mesma hora.
Georges Ivanovitch Gurdjieff
Fonte: do livro "Em Busca do Ser - O Quarto Caminho para uma Nova Consciência"
Ed. Pensamento, 1ª ed. digital, 2019, São Paulo/SP
www.editorapensamento.com.br
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/illustrations/conto-de-fadas-noite-m%c3%basica-peixe-1180921/
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