terça-feira, 28 de julho de 2020

MIGRAÇÃO DOS ESPÍRITOS E PARAÍSO PERDIDO


O capítulo XI de "A Gênese", de Allan Kardec, tratando da gênese espiritual, é de uma clareza e de uma lógica meridianas, valendo muito reler-se o texto por inteiro. E no que concerne às migrações dos espíritos e à progressão dos mundos compreende aspectos por demais interessantes, sob nossa óptica, naturalmente. Refere-se à raça adâmica com reflexões de muita propriedade. Nossa posição, nesse caso, diverge das demais escolas filosóficas espiritualistas em geral, que aceitam literalmente os livros sagrados; mas os interpreta como pode, sem os desconsiderar, retirando dos mesmos filigranas de alto valor. Lembra Kardec, a certa altura, que a mitologia pagã na realidade não é senão um vasto quadro alegórico dos diversos lados bons ou maus da humanidade.

Não é sem razão que a tradição vinda dos povos mais remotos nos fala do paraíso perdido, dos anjos decaídos, da salvação pela fé. Entendemos que o paraíso perdido serão os mundos felizes de onde vieram os emigrantes do espaço para novo campo operacional, trabalhando a própria melhoria. Não podendo entender que nos planos sublimados tinha havido em qualquer tempo algum levante dos espíritos puros, angelicais, uma bipartição do poder de Deus entre o Senhor do Bem e o do mal... É fácil entender que os anjos decaídos seriam aqueles próprios espíritos rebeldes de que falamos, rebeldes ao progresso em seu habitat antigo. O Salvador deveria esclarecê-los quanto ao caminho a seguir para retornarem à felicidade dos eleitos. Da perseverança com que se fizessem fieis à segura orientação messiânica dependeria a bênção do retorno.

E então se lê: "- Essa transfusão que se opera entre a população encarnada e a desencarnada de um mesmo globo opera igualmente entre os mundos, quer individualmente, nas condições normais, quer em massa, em circunstâncias especiais."

Daí, quando um mundo atinge período de transformação, operam-se mutações e ocorrem essas migrações coletivas. São excluídos dele os que poderiam perturbar-lhe o ambiente, a sua atmosfera psíquica, agora mais adiantados os que permanecem. Tendo, porém, progredido muito em relação a núcleos planetários nascentes, serão valiosos colaboradores do progresso desses outros mundos. Expulsos por teimosia em aceitar as bases de uma vida mais iluminada, mais espiritualizada, expiarão essa rebeldia através do trabalho árduo, por séculos ou milênios, com o suor do rosto, mas sem prejuízo do avanço até então conquistado. O mundo, de que foram expulsos, era para eles o lugar aprazível de que se recordarão como sendo um jardim de delícias - o paraíso perdido. E, porque têm a noção da própria culpa, reconhecem-na como sendo esta o pecado que deu origem à expulsão do seu paraíso, a culpa originária, ou seja, o pecado original. Tecem em torno disso a fantasia que se amolda aos recursos da nova experiência. Diremos de nossa parte que, ao invés de ser isso um castigo será antes uma oportunidade. Vão à luta. Estariam trocando o inferno de uma implacável condenação eterna pelo esforço com que, pelo trabalho, contagiam os seres mais atrasados de sua nova sociedade com os seus conhecimentos, que não se perderam, com sua cultura, com sua habilidade. Nada obstante não se haverem desvestidos dos velhos sentimentos do orgulho e da prepotência, e temos disso confirmação nas páginas da história da civilização, um retrato sem retoques.

[...] Kardec interpreta Adão como personificando a nova humanidade. A árvore da vida como o conhecimento das coisas, consciência do bem e do mal. Comer ou não do fruto proibido, seja lá como for, a lei do livre-arbítrio e a responsabilidade pelos atos praticados. A morte prometida, que afinal não houve - e que poderiam eles entender por morte, se não a haviam ainda experimentado -, as consequências dos desvios no caminho do dever. O pecado de Adão e Eva, se porventura algum houvera, seria em si o da desobediência. E raciocina o Codificador: "- Se Adão não houvesse pecado, a Terra estaria inculta e os objetivos de Deus não estariam cumpridos". No caso, Deus os condenou para a seguir recomendar que se fizessem multiplicar... Adão andava nu, sentiu-se envergonhado, criou-se-lhe, instantâneo, o senso do pudor, o que não seria natural àquela altura dos acontecimentos.

Quanto à serpente palradora (faladora), Kardec vai às origens idiomáticas e encontra várias acepções para a palavra hebraica, concluindo que ela pode significar o desejo de saber das coisas; ou a insinuação de maus conselhos...

Caim, perdoado do fratricídio, encontra mulher, não se diz como. E edifica uma cidade, não se diz com que operários nem para que população. Seriam viventes à época, como seres humanos, seus pais, essa mulher e seu filho... Percebe-se nestas contradições que, pelo menos, a primogenitura de Adão está muito comprometida.

E tem mais: Como entender que as gerações, interminavelmente, devam herdar a responsabilidade desse célebre e não esclarecido pecado original?... Pior ainda, partindo de admitir-se - não é o nosso caso - a tese segundo a qual a alma sairia prontinha, feita na hora, para cada novo corpo... Como, essa cumplicidade? E que prossegue irredutível apesar das absolvições concedidas aos fieis com o banho lustral...

Moral da estória: A Gênese biológica, que acompanha a ciência, e a espiritual, à luz dos conceitos espíritas, encontram cabimento mais lógico nas circunstâncias; e sobretudo não se chocam entre si com as próprias contradições. Na verdade, não se encontram expostas em algum livro de tradição milenar. Mas no livro da vida da própria humanidade terrena.

Mais ainda: "A qualificação de juízo final não é exata, visto que os espíritos passam por tais julgamentos a cada renovação dos mundos que habitam, até que atinjam um certo grau de perfeição. Não há, pois, absolutamente um juízo final, mas antes julgamentos gerais em todas as épocas de renovação, parcial ou total, da população dos mundos, em consequência das quais ocorrem as grandes emigrações e imigrações de espíritos." ("A Gênese", A. Kardec, cap. XVII)


Alberto Souza Rocha



Fonte: do livro "Reencarnação em Foco", Casa Editora O Clarim, Matão, SP
Fonte da Gravura: https://pixabay.com/pt/photos/cobra-apple-para%C3%ADso-eva-b%C3%ADblia-1322240/

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